“Do Lado de Fora”, um grupo de teatro criado por pessoas excluídas e sem abrigo: “Estou a voltar a ser o protagonista da minha vida”
"Do Lado de Fora" é um grupo de teatro formado no Porto por cidadãos em situação de sem-abrigo ou exclusão
Rui Oliveira
O Emílio começou a roubar para dar de comer à mãe, muito doente, com quem vivia. A mulher por quem fez tudo o que podia e o que não devia acabou por morrer no dia do seu aniversário. “Montei uma tenda à porta do cemitério. Assim que abria, eu corria para a campa da minha mãe”. Durante cinco anos, Artur nem vontade tinha para tomar banho. Outros cinco, foram passados na prisão. Hoje, aos 60 anos, é um homem de cara lavada, um dos rostos de um conjunto de pessoas em situação de sem-abrigo ou exclusão que fez nascer um grupo de teatro no Porto, um projeto que pretende promover a inclusão através da arte. “Todos nós temos um bocadinho de vilão, mas até os vilões têm um lado bom”, diz ao Expresso este ator improvável
“Este velho que aqui está não vale porra nenhuma”. É assim que Emílio Costa, com 60 anos completados este mês, começa por se apresentar ao Expresso. “Sempre fui um bandido. A minha vida foi toda a roubar, a traficar, tudo aquilo que possam imaginar”, confessa. Tinha apenas 15 anos quando começou a fazer tudo o que podia e o que não devia para ajudar a mãe, com quem vivia. “Entrei no mundo do crime por uma simples razão: para salvar a vida da minha mãe. Ela tinha uma doença, que até hoje não sei explicar. Só sei que a via definhar, a ficar magrinha de dia para dia”, conta. Lá em casa, eram poucos os alimentos que visitavam o frigorífico e a miséria era inquilina constante. “Eu tinha de fazer alguma coisa, não ia deixar morrer a minha mãe. Pedi ajuda aos meus irmãos e nenhum podia. Foi então que comecei a roubar”. Emílio usava a sua agilidade para assaltar casas. “No primeiro roubo que fiz com sucesso comprei logo um frigorífico para a minha mãe. A partir daí, nunca mais parei”, admite.
Emílio bateu no “fundo do poço” quando a mãe morreu, precisamente no dia do seu aniversário, data que nunca mais foi capaz de celebrar. Emílio foi incapaz de dizer adeus à pessoa que mais amava. “Montei uma tenda à porta do cemitério do Prado do Repouso. Mal o cemitério abria, eu corria para a campa da minha mãe. Não estava preparado para a morte dela e não conseguia reagir”, desabafa, num tom emocionado.
“Estive cinco anos sem tomar banho. Meti-me na droga, no álcool. Um dia quis lavar o rosto e não consegui, de tão sujo que estava. Foi aí que percebi: ‘Tenho de fazer alguma coisa ou então vou morrer’. A minha mãe não quereria um fim assim para mim. Peguei numa tesoura, aparei a barba, aparei o cabelo e comecei a cuidar de mim. Quando tudo estava a endireitar-se, fui preso. Estive cinco anos detido no Estabelecimento Prisional do Porto”, recorda Emílio Costa.
Quando saiu em liberdade, em 2012, “ainda foi pior”, pois “foram muitas as barreiras para conseguir arranjar um emprego ou uma casa”. Emílio ficou a viver na rua durante três longos meses.
Emílio só precisava de uma “primeira oportunidade para recomeçar”. Foi isso que a associação Arrimo lhe deu: uma pensão para onde foi viver e onde, passado algum tempo, começou a trabalhar. Desde que saiu da cadeia, nunca mais consumiu drogas. Atualmente, vive numa casa partilhada e paga 200 euros pela renda do quarto. “A alimentação vou buscar todos os dias à [associação de solidariedade e de ação social] ‘Asas de Ramalde’”, da qual só tem a agradecer e assume-se como um “embaixador”. Emílio tem um dom: o da palavra. “Entro com facilidade no coração do ser humano e a cozinheira põe-me sempre um bocadinho de comida a mais”, confidencia.
Em 2019, encontrou um outro tipo de alimento, aquele que o ajuda a reerguer-se e a acreditar que tem algo para dar à comunidade. “Num belo dia, uma das técnicas das Asas de Ramalde, perguntou: ‘Alguém quer fazer teatro?’ Aquela palavra, teatro, bateu aqui.”, afirma Emílio Costa, enquanto bate com a mão cerrada no lado esquerdo do peito. “Sempre gostei de teatro, mas nunca tive possibilidades para ir assistir a uma peça. Eu disse logo: estou dentro!”
Três anos depois, Emílio foi um dos atores principais para agora fazer nascer o grupo de teatro “Do Lado de Fora”, juntamente com a Ana, o Carlos, a Vilma, o Inácio, a Cândida, o Zé Miguel, a Daniela, o Artur, o Ricardo, o André, o Canção e os dois Ruis. Mais do que colegas em palco, são uma enorme família.
“Estas pessoas tornaram-se na família que eu não tenho”
“Todos nós temos um passado. Uns mais felizes do que outros, mas haverá sempre alguém que te apoie, principalmente aqueles que conhecem o teu caminho. Mas também haverá sempre alguém que te julgue e te aponte o dedo, mesmo sem te conhecer”, atira Emílio.
“Do Lado de Fora”, grupo teatral apresentado esta quarta-feira no Salão Nobre da Junta de Freguesia do Bonfim, dá continuidade a um projeto de integração através da arte, focado em pessoas em situação de sem-abrigo ou exclusão social. “O principal objetivo é não deixar ninguém cair. Se alguém está mal, há sempre outra pessoa que lhe dá a mão e a levanta. Estas pessoas tornaram-se na família que eu não tenho e sinto-me muito orgulhoso em fazer parte dela”, afiança Emílio Costa, que ficou “todo arrepiado” quando subiu ao palco do Teatro Campo Alegre, a 8 de junho, dia em que o grupo apresentou a sua primeira criação, o espetáculo ‘É!’. “Sabes o que é receber um elogio, uma salva de palmas? Eu nunca tinha sentido isso na minha vida”, diz o agora ator que gosta de ser o vilão. “Todos nós temos um bocadinho de vilão, mas até os vilões têm um lado bom”, defende.
“Agora que nos deram palco vão ter de nos aturar”, assevera Artur Fontes, de 55 anos, entre risos. Apesar de esta ser a sua primeira experiência no mundo artístico, não tem dúvidas: graças a esta iniciativa é agora uma pessoa “mais confiante, mais disponível para novos desafios”. Voltou a sentir que faz parte da sociedade e agora sabe que tem “um papel a desempenhar na comunidade”.
Apesar de sofrer com a perturbação de hiperatividade e défice de atenção, a que se junta um transtorno bipolar, Artur realça que “é bom sentir novamente a criatividade, a adrenalina e o foco”. Até voltou a ter o “cérebro limpo, como quando tinha 20 anos” e “os interesses renasceram”: a leitura, o jornalismo ou a arte. “Tudo voltou a fervilhar dentro de mim. Estou, aos poucos, a voltar a ser o protagonista da minha vida”, garante o artista “Do Lado de Fora”. “Só queremos ganhar asas e não duvido que, juntos, vamos voar”, augura Artur Fontes, para quem o elenco de 14 participantes que integram este projeto é um “grupo muito forte e muito disponível para ajudar o próximo”.
Há mais de duas décadas que Artur está desempregado. Com 21 anos, não por vontade própria, foi empurrado para trabalhar no negócio da família, uma agência funerária. Aos 27, morreu-lhe o pai e o mundo de Artur implodiu. “Não é normal eu abrir-me assim, mas quero contar-te a minha história. Eu fui uma pessoa muito má”. Então porquê, Artur? “Após o falecimento do meu pai, dei cabo da minha vida, porque ela perdeu o sentido. Muita gente não chega a ganhar na vida inteira aquilo que eu destruí em pouco tempo. Afundei-me num consumo astronómico de entorpecentes. O vício era o meu refúgio para não pensar nas coisas. O luto foi muito complicado e demorei mais de 15 anos a fazê-lo”. A vida não esperou por Artur, que só queria fugir da realidade, por não ter forças para a suportar. “Entrei num processo de autodestruição e afastei-me da minha família, dos amigos, da namorada com quem tencionava casar”.
A “vida boémia” fez com que Artur se divorciasse da sua essência, dos seus sonhos. “Perdi-me bastante”, reconhece. “Felizmente nunca cheguei a viver na rua, porque tenho uma grande mãe que nunca me desamparou. É a pessoa mais importante que tenho na vida e sem ela não estaria aqui a falar contigo”, realça.
Uma das maiores felicidades que este projeto já concedeu a Artur foi precisamente a oportunidade de ter a mãe na plateia, a aplaudi-lo. “Ela gostou imenso de me ver em palco e é ela que me dá força para continuar”, testemunha o artista amador deste improvável grupo de teatro, criado com o objetivo de se transformar num movimento de cidadania.
“Do Lado de Fora” conta com a direção artística do ator, encenador e diseur de poesia Rui Spranger, para quem “este projeto permitiu que as pessoas quebrassem amarras, até porque as pessoas criam, cada vez mais, prisões de autodefesa e este grupo começa a soltar-se dessas prisões”.
Para Rui Spranger, a iniciativa incorpora também uma “vertente de consciencialização política, nomeadamente para combater estigmas, o que acentua a aposta em criações de teatro documental e biodramas”.
O grupo, contextualiza o diretor artístico, “é muito heterogéneo, com realidades muito diferentes, com pessoas que foram parar à rua por todas as causas que podem levar a isso”, tais como toxicodependência, problemas de saúde mental, perda completa de rendimentos ou criminalidade.
E se os integrantes deste grupo de teatro têm muito ganhar, Rui Spranger também já lucrou com esta experiência: “Ganhei humanização. Sempre quis ter um envolvimento mais social no meu trabalho artístico”.
A partir de 10 de janeiro, todas as terças-feiras, entre as 15h e as 17h, o grupo irá reunir-se para ensaiar, na Casa d’Artes do Bonfim.
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