O que é está mal na cultura? Três reflexões sobre como aumentar o consumo em Portugal: “As pessoas estão carentes de experiências”
Como um editor, um autarca e uma programadora veem a questão das práticas culturais
Como um editor, um autarca e uma programadora veem a questão das práticas culturais
No inquérito às práticas culturais dos portugueses encomendado pela Fundação Gulbenkian ao Instituto de Ciências Sociais e apresentado esta quarta-feira, os resultados são inegavelmente desanimadores. Entre outros dados, 61% dos portugueses não leram um só livro no último ano e só 31% e 28%, respetivamente, visitaram algum monumento histórico ou um museu, e apenas 6% galerias de arte e sítios arqueológicos. Para explorar o significado destes números e o que se pode fazer para inverter tendências, o Expresso falou com três agentes culturais de áreas diferentes.
O presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros e diretor do grupo Leya, Pedro Sobral, não ficou surpreendido com o estudo, mas faz uma ressalva. “Temos de separar o consumo de livros dos indices de leitura. Os números não espantam. Há muito que a APEL diz que os índices de leitura e literacia são dramáticos. Somos o penúltimo país da União Europeia em índices de leitura. E o último entrou na UE há pouco tempo”.
Nem sempre tudo evolui uniformemente mal. “O consumo de livros correu bem no ano passado”, diz. “Em relação a 2019, a queda foi de 3%. Em 2020 tinha perdido 17%, o que significa que recuperou grande parte”.
Pedro Sobral explica que a esmagadora dos livros comprados são-no para oferecer, não para ler, como se depreende do facto de serem vendidos num período de poucos meses a partir de setembro. “As pessoas oferecem mas não leem, o que é muito preocupante”, diz, por estar necessariamente associado a
baixos níveis de desenvolvimento económico e social. “Portugal, com estes índices de leitura, por muito que faça nos próximos anos, não vai avançar muito. A leitura devia ser tão banal como beber um copo de água. Em vez disso, os livros são vistos como um bem de luxo”.
Em parte, isto tem a ver com carências económicas que são reais, estruturais. Em Portugal subsistem índices de pobreza muito elevados, e os índices de frequência do ensino superior, embora tenham subido consideravelmente, são acompanhados por uma taxa de abandono elevada. “Temos de perceber que isto é um problema urgente. Há muito que não existem políticas que, juntamente com a sociedade civil, possam incentivar a existência de livros em casa e o acesso ao livro cada vez mais cedo”.
Quanto ao papel de internet e dos videojogos na dissuasão da leitura entre os jovens, considera-os uma falsa questão. “A questão do tempo de ecrã é um problema, mas é ultrapassável. Hoje há formatos que o resolvem. O audio-livro, por exemplo. Uma pessoa pode correr enquanto ouve um livro. O jogo até pode ser complementar, tal como há séries da Netflix que têm efeito positivo na leitura, e jogos que saem de obras literárias. Há espaço para tudo. Os espaços têm é de ser distribuídos”.
Menos fácil de ultrapassar é a pobreza crónica e os salários médios baixos em Portugal. “Enquanto isso não estiver resolvido, é evidente que o consumo cultural, livro incluído, vai ser sempre um problema”.
Reconhecendo que a maioria dos agregados familiares não tem livros em casa, Sobral insiste no papel decisivo da escola, que considera tão importante como a família nessa matéria. Critica a forma pouco atrativa como muitas vezes são dadas as obras literárias na escola, e acrescenta: “A leitura é uma ferramenta absolutamente essencial para viver em sociedade. Não é coincidência o baixo nível de atitude crítica que os portugueses têm”. A própria permeabilidade a noticias falsas e a populismos, de direita ou de esquerda, tem muito a ver com a capacidade de avaliar informação.
Não é uma resistência à leitura, enquanto tal, que está em causa. Os jovens leem hoje mais, desde logo na internet, e influenciadores no TikTok têm criado autênticos fenómenos literários, lembra Sobral. “Os grandes fenómenos comerciais em Portugal, como em muitos países, são fenómenos juvenis. Veja-se o Harry Potter, veja o “Um de Nós Mente”. Acho que, em média, os jovens estão a ler mais. Leem é de uma forma muito mais esparsa, muito mais caótica”.
O presidente da câmara do Fundão, Paulo Fernandes, diz que não é por falta de esforço dos municípios que os indicadores do consumo de cultura em Portugal são tão negativos comparados com o resto da Europa. “Hoje é reconhecido que os municípios são um dos grandes pilares da oferta de cultura no nosso país. São gestores de grande parte dos equipamentos culturais no nosso país e têm um papel relevante, enquanto programadores, na diversidade da oferta”.
Também ele enfatiza a importância da relação entre cultura e educação, sempre com um apoio reforçado do Ministério da Cultura aos municípios. “Vemos com bons olhos estes últimos programas da rede de teatros, que claramente são programas de nova geração em termos de descentralização.”
Vertentes a melhorar: a criação de novos públicos, os serviços educativos, os mecanismos de programação em rede. “Eu sou de um município do interior do país e, apesar do esforço que fazemos, é essencial a programação colaborativa entre vários municípios aqui da região, de modo a podermos facilitar o acesso aos bens culturais de forma diversificada e eclética a todos os diferentes públicos”.
“Os profissionais da cultura terão de ter melhores condições, nomeadamente aqueles que hoje fazem parte de estruturas permanentes”, acrescenta. O estatuto do artista recentemente aprovado deve passar do papel para a operacionalização.
Como exemplo positivo destaca o “programa nacional de capacitação e criação de uma rede de bibliotecas de nova geração”. No Fundão, uma cidade com 13 mil pessoas e um território rural com 27 mil, o número de livros requisitados por ano atinge os 15 mil.
“Mesmo na época do digital, a figura do livro continua a ter relevância. É um dos indicadores centrais do desenvolvimento de um país”. Paulo Fernandes acha também importantes os estudos como o agora divulgado: “Temos muita falta de informações concretas. Embora tendo sido feito no primeiro ano da pandemia, estes dados são essenciais para os municípios”.
Falando em dados, o autarca regista que no Fundão tiveram lugar, num ano, cerca de 170 atos culturais de natureza diversa. O investimento anual é de 800 mil euros, mas somando equipamentos culturais o valor global é de cinco milhões de euros.
“É uma programação eclética. Quando está enquadrada em ciclos – teatro, música eletrónica, os grandes marcos culturais, ciclo da cereja, aldeias históricas -, todos os espetáculos têm uma audiência média muito importante, quase sempre acima dos 50 por cento. Em eventos ao ar livre, a adesão ainda é maior”.
Num país onde a carência económica é um obstáculo inegável ao acesso à cultura por parte de uma fatia substancial dos cidadãos, o Fundão, como outros municípios, optou pela maior acessibilidade possível. “Muitos espetáculos são gratuitos, e entre os outros raros são os que tem preço acima de seis, sete euros”, diz Fernandes.
Jenny Silvestre, diretora da Academia Portuguesa de Artes Musicais (APARM), tem a formação mais eclética que se pode imaginar. Licenciada em Direito e doutorada em Ciências Musicais, fez uma pós-graduação financeira para estar em condições de responder aos desafios da sua atividade.
“O que faço desde sempre é direção artística e programação”, diz ao Expresso. “E toco cravo”. Iniciou a pós-graduação quando estava a preparar o doutoramento. “Na altura, em 2010, começava-se a falar muito de um conceito que era estranho para nós, o de industria criativa. E eu percebi que precisava de ter quadros mentais naquilo que era a gestão dessa indústria, se queria de facto desenvolver a minha situação”.
No que toca àquilo que oferece, a sua opção é clara. “Não são produtos intelectualizados, que a administração central do estado tem de vender ou de pagar. Nós é que temos de fazer valer a nossa oferta”.
“As pessoas estão carentes de experiências”, concretiza. “É isso que eu, acima de tudo, tento vender. Tem sido o instrumento que alavanca os meus projetos. Uma coisa é ouvir um CD, outra é assistir a um espetáculo. Nas “Cortes de Júpiter” [o espetáculo agora apresentado no Centro Cultural de Belém, comemorando os quinhentos anos de uma peça de Gil Vicente], fomos ao palco receber o público, demos as boas-vindas a toda a gente. Um momento de partilha coletiva. Não podemos só estar à espera do público, temos de ir ao encontro dele”.
Embora o tipo de música com que ela trabalha tenda a atrair público de uma faixa etária relativamente avançada, isso não significa que tenha de ser o único. “Os públicos trabalham-se desde tenra idade. Se houver crianças, elas até podem estar a correr, a brincar, mas acabam por se conectar. Eu posso ir ter com a criança, sentar-me no chão com ela.”
Recorda algumas episódios que a marcaram. Às vezes coisas pequenas, como no festival Sons de Almada, por exemplo, quando a cravista Mafalda Castro acabou de tocar uma peça e uma miúda exclamou “boa”. Durante um festival nos Capuchos, instalou almofadões entre o estrado e o público para as crianças. “Uma coisa que sempre tenho tentado desenvolver é a ligação entre as crianças e certo tipo de reportório que normalmente não é associado às crianças, mas que elas ouvem se for de uma forma descontraída. Vão se habituando”.
“Vem tudo da nossa experiência”, diz. “Ainda há bocadinho estava a falar com a responsável da cultura da Junta do Lumiar. Há quinze dias, fui apresentar um concerto no Museu Nacional do Teatro e da Dança, promovido pela Embaixada da Irlanda. Tinha uma guitarrista de guitarra barroca. Uma parte do concerto, eles dedicaram-no a tocar melodias populares irlandesas com textos em gaélico, uma língua superdifícil. Foi muito giro, porque eu não tinha dito nada ao embaixador ou ao staff dele. A emoção que se gerou ali naquele momento íntimo, quando eles de repente perceberam que havia músicos portugueses a fazer música barroca cantada em gaélico, criou ali uma sinergia muito simpática. No fundo, são as tais experiências da economia da experiência. Estamos a vivenciar momentos únicos, de partilha”.
“Penso que o caminho para a cultura tem de passar muito por aí”, conclui. “Eventos de qualidade – não é andar a vender banha da cobra -, com substância, mas que entrem em contacto efetivo com o público. Cada pessoa é um ser individual, um poço de sensibilidade, digamos assim”.
O problema não é só dos criadores, ou de cada um deles. “Portugal, enquanto não criar uma marca Cultura, tal como desenvolveu uma marca Portugal Turismo, nunca vai ter uma cultura musculada”. Num país com mais de 800 anos, em princípio, há bastante material com que trabalhar: “A cultura vai através da história das mentalidades. É isso que exploro. Se não aproximarmos o público da sua herança cultural, se não mostrarmos que somos hoje o que somos como fruto de uma linha evolutiva que é eminentemente cultural, nunca vamos conseguir aproximar não só o cidadão comum, como o próprio estrangeiro, que pode tomar contacto com esta herança. A história é um filme animado feito de homens e mulheres como os que somos hoje – simplesmente, de outros tempos. Nós estamos a fazer a nossa história a cada momento”.
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