É longa a relação de Anne Teresa De Keersmaeker com Lisboa. Veio pela primeira vez em 1987, aos Encontros Acarte, apresentar a icónica coreografia “Rosas danst Rosas” (1983). De então para cá tem sido presença regular. A Companhia Nacional de Bailado tem no repertório uma raridade: o único bailado que Keersmaeker criou para uma companhia que não a sua, “The Lisbon Piece” (1998). Foi ela também a inaugurar o programa “Artista na Cidade de Lisboa”, em 2012. Recentemente aventurou-se num território inesperado no seu percurso: no ano passado, coreografou o musical “West Side Story” para a Broadway. Agora acaba de receber o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva para a Divulgação do Património Cultural e, aos 61 anos, volta a dançar Bach no solo “As Variações Goldberg” — chega à Culturgest, em Lisboa, em março de 2022.
Este prémio distingue a dança que cria como património e como fazendo parte da tradição e herança da dança e do bailado, facto particularmente relevante tendo em conta a dificuldade que tem sido conseguir esse reconhecimento. Como vê esta valorização da dança experimental contemporânea que faz?
Qual é a herança da dança? As pessoas dançam desde o início dos tempos. Qualquer pessoa pode dançar, acredito mais nisso do que acredito que qualquer pessoa pode fazer música. As grandes danças festivas são celebrações da nossa humanidade. Podemos dançar sozinhos, juntos, num grande grupo de pessoas. É girar e rodopiar. Há tantas definições possíveis, mas é certamente sobre a relação entre o indivíduo e o coletivo, fazendo ressonância com algo muito ancestral, que vai à essência do que nos torna humanos. O corpo é o instrumento mais natural e ecológico que temos. Os nossos corpos, mesmo de um modo mecânico, ou de um modo essencial, são emocionais porque carregam vestígios de tantas experiências, não circunscritas às nossas vidas, mas às vidas dos nossos antepassados. Coreografar é organizar o espaço entre nós, por isso é sempre uma questão social. É escrever as pessoas. Na filosofia oriental diz-se que primeiro há uma intenção, depois uma energia e depois uma forma. Dançar é também uma forma de estar no mundo, de ler o mundo. Portanto, é também uma atividade intelectual. E, pela sua própria definição, é natural e espiritual. Isso é talvez aquilo que mais me entristece: a destruição da natureza, de que somos parte intrínseca, e da consciência de pertencer a algo que está para além de nós próprios.
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