
O primeiro filme passado na 41ª edição do Fantasporto foi um documentário dedicado ao Porto profundo, popular e em vias de extinção
O primeiro filme passado na 41ª edição do Fantasporto foi um documentário dedicado ao Porto profundo, popular e em vias de extinção
Nada mais simbólico que a forma como a edição 2021 do Festival Internacional de Cinema do Porto abriu: aproximou-se, física e simbolicamente da cidade medieval e popular, ou seja, da Ribeira e do Douro. Fê-lo descendo do cineteatro Rivoli para o Hard Club (Mercado Ferreira Borges) e projetando como primeira fita um documentário sobre a agonia de uma cidade bairrista, popular mas em vias de descaracterização. Trata-se de “Toponímia, as Memórias do Porto”, realizado por António Pinto.
O título é de alguma forma enganador, uma vez que não se trata de uma viagem pelas ruas mas pelas gentes e pelas suas recordações que cristalizam formas de vida em vias de desaparecimento. Durante quase hora e meia desfilam as recordações e os testemunhos de lavadeiras, costureiras, alfaiates, amoladores, sapateiros, tipógrafos, barqueiros, ardinas, guarda-freios e muitos outros.
Toda esta gente tem, na sua esmagadora maioria, uma coisa em comum: nasceu nos bairros populares, das Fontainhas à Ribeira, mas hoje vive em bairros sociais à margem da cidade, com casas mais amplas e arejadas mas onde, como se constata lendo os jornais, há outro tipo de problemas.
Na Ribeira, tal como a filmou Manoel de Oliveira, havia pobreza e insalubridade mas estreitavam-se laços de solidariedade e companheirismo e imperavam fortes tradições de vida em comum. Este é o paradoxo das cidades portuguesas com maior carga histórica, a começar pelo Porto e por Lisboa.
Na Invicta, basta descer da Estação de São Bento para a Ribeira, percorrendo a Rua das Flores ou a Mouzinho da Silveira, para apreciar um enorme trabalho de recuperação urbana que devolveu vida a prédios arruinados e ruas de ar sinistro. Mas se olharmos para o interior destes prédios ou atentarmos nas lojas dos rés-do-chão veremos que a recuperação foi feita única e exclusivamente na perspetiva turístico-imobiliária, daí resultando a descaracterização dos bairros e a expulsão para a periferia de moradores pobres que ali viviam há gerações e aos quais não foi dada alternativa pelo chamado progresso.
O mesmo se tinha passado anos atrás na zona do Carmo, com a decisão de deslocar as grandes faculdades (Engenharia, Economia, etc) para a periferia, tirando de ruas como a de Cedofeita a numerosa população estudantil que ali vivia e dava dinâmica económica e social aos bairros.
Disto tudo, direta ou indiretamente, nos falou este documentário, cujo realizador explicou ter como objetivo fixar “os sons e as memórias ainda presentes na cidade”.
Seguiu-se a projeção de uma fita na linha do que nos habituámos a esperar de um Fantasporto: “Ten Minutes to Midnight” do norte-americano Erik Bloomquist, a história dentro da história, ou seja o que pode acontecer à realizadora de uma emissão de rádio que, tendo sido picada por um morcego, fica fechada no estúdio, juntamente com o resto da equipa durante uma tempestade infernal. Com o pormenor divertido de a actriz Caroline Williams ter entrado na versão de “Massacre no Texas” filmada por Tobe Hopper e que passou neste festival há um bom par de anos.
Este primeiro dia, com horários fortemente condicionados por razões sanitárias, encerrou da melhor forma com a homenagem ao grande cinema, concretizada através da projeção dessa obra-prima que é “Morte em Veneza” de Luchino Visconti.
Para hoje espera-se terror, ficção científica e bruxaria em doses variáveis, ou não estivéssemos no Fantasporto… E assim será até ao próximo dia 4 de maio.
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