A segunda metade do século XVI, início do XVII, é muitas vezes descrita como a Idade de Ouro da música portuguesa. Foi o período em que viveram compositores como Manuel Cardoso (1566-1650), Duarte Lobo (1565-1646) e Pedro de Cristo, cujas obras são hoje gravadas com regularidade por alguns dos grupos internacionais de referência nessa área.
Um desses grupos é os Cupertinos. Sediados na Fundação Cupertino de Miranda, em Famalicão, em 2019 receberam a distinção da prestigiada revista Gramophone para o melhor CD de música coral antiga. Lançado na editora Hyperion, o CD contém o Requiem e outras obras de Manuel Cardoso. Já este ano, o grupo lançou na mesma editora um segundo CD, agora com missas de Duarte Lobo.
"Sabemos que as obras destes compositores que chegaram até nós são uma pequena parte do que eles produziram", diz Luís Toscano, diretor musical dos Cupertinos. É possível que alguns deles também tenham escrito música fora de contextos litúrgicos, como fizeram contemporâneos deles como Monteverdi (1567-1643), por exemplo, mas não conhecemos essas obras. Coimbra, Évora, Lisboa são algumas das cidades (e "escolas") a que ficaram associados. Num ou noutro caso, nomeadamente o de Duarte Lobo, houve edições internacionais da sua obra ainda em vida.
Trabalho musicológico de fundo
Ao longo do último ano, os Cupertinos têm ensaiado no auditório da fundação, ocupando não só o palco como a plateia, a fim de manterem uma distância superior a dois metros entre os participantes. Os membros nucleares do grupo são oito, mas para gravações e para alguns concertos são dez. "A distribuição habitual são três sopranos, dois altos, dois tenores e três baixos", diz. "Isso permite uma complementaridade e uma continuidade a nível de registos vocais, do mais agudo ao mais grave."
Quanto à história dos Cupertinos, Toscano lembra-a sumariamente. "O grupo foi estabelecido em 2009 na Fundação por entusiasmo e iniciativa do presidente do Conselho de Administração, o dr. Pedro Alves Ribeiro, para homenagear e honrar a música vocal portuguesa. Começou com um foco mais vasto, que vinha deste período agora em causa até ao século XX. Posteriormente, quando fui convidado para assumir a direção, ficou estabelecido que nos dedicaríamos quase em exclusivo à música portuguesa deste período. Quando digo música portuguesa, isso inclui também compositores ativos nessa altura em Portugal, ou obras de compositores estrangeiros que sabemos que eram executadas em Portugal."
Nos anos desde então, os Cupertinos já interpretaram mais de 250 obras, das mais mais de cem em primeira audição moderna, explica Toscano. Isso implica um trabalho musicológico subjacente. "Desde o princípio, há protocolos. Um deles é com a Universidade de Coimbra, que tem um dos maiores acervos de música deste período, tanto manuscrita como impressa, em toda a Europa."
Aí Toscano faz questão de destacar a ligação às Jornadas Mundos e Fundos, coordenadas pelos professores José Abreu e Paulo Estudante. "São jornadas do centro de estudos clássicos e humanísticos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Isso é fundamental, pois esta parceria e contacto direto, mesmo com amizade, tem permitido juntar a parte de investigação à da performance, e elas alimentam-se uma à outra".
Um concerto “intimista”
O concerto desta quarta-feira, no Museu de Aveiro, inclui obras de Pedro de Cristo (1540-1618) e Filipe de Magalhães (1571-1652), bem como de vários anónimos e do famoso Josquin Des Prez (1450-1521), talvez o maior compositor da Renascença, sobre cuja morte passam quinhentos anos em 2021. O programa contém obras que celebram momentos da primeira fase da vida de Cristo, desde a Anunciação até à Epifania.
Vai ser um cenário bastante diferente daquele ao qual o grupo está associado: o da agora basílica de Bom Jesus (o Santuário do Bom-Jesus do Monte foi elevado a basilica-menor em 2015), que "é a imagem do grupo e o nosso sítio por excelência para concertos e para gravações. Todas as nossas gravações foram feitas lá", segundo Toscano.
As características acústicas da basílica são especialmente favoráveis aos Cupertinos. "Tem uma reverberação que permite uma mistura ótima do som, para nós, aproveitando bem o espaço sem perdermos o contacto uns com os outros. Ao mesmo tempo, a reverberação, não é tão grande que encubra o texto. Consegue-se transmitir a palavra, que é a base a partir da qual estas obras foram compostas. Há espaços onde passar o texto é complicado, mas ali não."
Comparado com esse espaço, o do concerto do Dia de Reis "é mais desafiante", nas palavras de Toscano. É a Igreja do convento de Santa Joana, um lugar muito mais pequeno onde a reverberação é muito menor, ou quase inexistente. "Por outro lado, é bastante mais intimista, mais direto", diz o diretor do grupo. Na audiência poderão estar cerca de trinta pessoas. Para facultar entrada ao maior número possível de interessados, o grupo decidiu cantar a partir do coro alto da igreja. Antes do concerto já havia lista de espera.