Dobrar o cabo das legendas

É mais do que um acaso e menos do que um imperativo. No que toca à tradução audiovisual, cada país fez a sua escolha em função de uma história e de um mercado
É mais do que um acaso e menos do que um imperativo. No que toca à tradução audiovisual, cada país fez a sua escolha em função de uma história e de um mercado
Jornalista
Para um português, ligar a televisão ou assistir a um filme em Espanha — ou em França ou na Alemanha — pode ser uma experiência dolorosa. Ingrid Bergman em “Casablanca” a aparecer com uma voz alheia e estridente a dizer, em castelhano, “Tócala una vez, Sam, por los viejos tiempos” provocará certamente um arrepio na espinha. Tal acontece não porque a frase seja sem sentido ou a tradução mal conseguida. Acontece simplesmente porque um português — ou um dinamarquês — não está habituado a ouvi-la noutra língua que não o inglês, e o desconforto de a reconhecer sob inflexões fonéticas tão diversas equivale a vestir um fato de mergulho para entrar num jantar de gala.
Entre as várias barreiras que separam a Europa, esta é uma das menos importantes. Mas não deixa por isso de ser percetível e indicadora de um processo e de uma história. Há os que preferem as dobragens, os que defendem as legendas e, minoritários, os que optam pelo voice-over — um narrador a traduzir as falas, mantendo-se o som original. O mapa está mais ou menos definido, com os países nórdicos, a Holanda, os Balcãs, o Reino Unido, a Grécia e Portugal a optarem claramente pelos subtítulos, e a Espanha, a Franca, a Itália e a Alemanha a preferirem a dobragem. A Bélgica que fala francês gosta de ouvir os filmes dobrados, enquanto a metade flamenga do país aprecia ouvir a língua original. Países como a Polónia e a Rússia servem-se do voice-over, a alternativa mais barata de tradução audiovisual.
Com efeito, uma das razões mais fortes para a dobragem ou a legendagem se tornarem o método predileto de um país é a económica. A opção dispendiosa da dobragem é viável num mercado dirigido a 95 milhões de falantes de uma língua como o alemão, mas não o será para o universo mais reduzido de cinco milhões de finlandeses. A Alemanha leva esta indústria mesmo a sério, existindo o costume de ser sempre a mesma voz a dobrar um determinado ator. Em Espanha, outro dos países europeus com maior tradição de dobragem, os trabalhadores desta área estão profissionalmente representados — há dois anos chegaram a fazer uma greve que levou a que alguns episódios de séries muito populares, como “Anatomia de Grey” ou “A Teoria do Big Bang”, fossem emitidos em inglês. Para um país como Espanha, exibir uma série na versão original legendada continua a ser quase um sacrilégio. E a importância da dobragem neste país, ainda que atualmente comece a esmorecer, é considerada um estudo de caso — até pela contradição de os espanhóis preferirem amplamente a produção televisiva e cinematográfica proveniente de países de língua inglesa.
A tradição de legendar ou dobrar tem uma origem, primeiro, ideológica. Em Espanha, remonta aos anos do franquismo, quando só eram permitidas produções em língua castelhana e as línguas regionais, como o basco ou o catalão, eram proibidas. A censura teve um papel crucial, avalizando que os guiões originais fossem adaptados a versões mais convenientes ao regime. Como comenta Carmen Gil Ariza, especialista em tradução e interpretação de Málaga, no “Translation Journal”, “as datas mais importantes da censura em Espanha são 1937, quando os serviços se estabelecem em Sevilha e Salamanca, e 1941, quando a dobragem obrigatória torna as versões originais dos filmes estrangeiros ilegais.”
Na opção pelo tipo de tradução audiovisual “parece haver uma motivação política relacionada com a emergência do totalitarismo”. Esta é uma das conclusões do estudo “TV or not TV? The impact of subtitling on English skills”, assinado em 2016 por várias entidades, entre as quais a City, University of London e a Luxembourg School of Finance. Era comum aos ditadores pensarem “que o uso da língua local nos filmes fortaleceria o orgulho nacional”. Em Itália, onde tal como em Espanha se falava mais do que uma língua, Mussolini aproveitou o embalo para introduzir uma lei que unificasse essa diversidade: todos os filmes tinham de ser dobrados num italiano ‘comum’.
Na Alemanha, a dobragem fixou-se como o método por excelência de tradução audiovisual no pós-guerra. E as características históricas deste período de ‘ressaca’ do nacional-socialismo fizeram com que filmes como “Casablanca” aparecessem numa versão própria, destinada a um povo alemão que não queria ou não podia ainda ouvir falar do que acontecera. “Os diálogos eram ajustados à mentalidade da sociedade do pós-guerra de forma suave e discreta”, escreve Thomas Bräutigam, investigador na área da comunicação, na revista do Goethe-Institut de Lisboa. “Era respeitado escrupulosamente o pacto social que inocentava ou recalcava o passado nacional-socialista, os crimes de guerra e o genocídio.” Assim, “Casablanca” viu eliminadas as cenas que mostrassem uniformes do regime, e “Difamação”, de Alfred Hitchock, transformou os nazis que negociavam urânio em narcotraficantes internacionais.
Em Portugal, igual objetivo foi cumprido pelo caminho oposto. Em 1948, uma lei do Governo salazarista proibiu a dobragem de filmes e séries, alegando a defesa da produção cinematográfica nacional. “Sabe-se hoje que esta lei, ainda que camuflada pela ideologia política da época, serviu para favorecer a legendagem em comparação com outros métodos de tradução. Ou seja, através da legendagem, a Comissão de Censura de Salazar tinha a possibilidade de controlar e filtrar a informação que chegava aos telespectadores através da censura prévia dos seus conteúdos, para que os cidadãos não fossem influenciados por ideologias ‘desviantes’ provenientes sobretudo dos países europeus mais próximos”, explica Ana Casimiro, tradutora de audiovisual, ao Expresso. Por outro lado, diz a especialista, a legendagem era (e é) um método “menos dispendioso”, o que se enquadrava na mentalidade do Estado Novo.
A escolha da dobragem ou legendagem mantém-se intacta em todos os países da OCDE desde meados do século XX. Nenhum trocou de método desde então, o que se explica pelos hábitos de mercado. Sim, neste particular o hábito faz o monge: onde se dobra prefere-se dobrar, onde há subtítulos não se concebe outra coisa.
Se a dobragem na Europa atual não passa de uma preferência à volta da qual se organizaram as indústrias, gerando postos de trabalho e receitas que uma simples troca de método viria a pôr em causa, na América Latina o método fixou-se por outros motivos. A preponderância da dobragem aumenta em países com grandes carências socioeconómicas e acesso mais condicionado à educação, como o Peru, a Venezuela, o Brasil e a Colômbia.
Num inquérito realizado pela TGI Latina, é notório como metade do grupo dos 10% da população ‘classe A’ prefere as legendas, enquanto 68% da ‘classe D’ — que configura acima de 40% da população — assinalam sentirem-se mais confortáveis com a dobragem, adotada na maioria dos países da América Latina à exceção da Argentina e o México, onde os subtítulos ganham cada vez mais terreno.
Há uma ligação direta entre o método de tradução audiovisual e o nível de domínio do inglês, hoje considerado a língua franca global. Segundo o já citado estudo “TV or not TV?...”, 65% dos cidadãos da EU assinalam o inglês como a língua estrangeira mais falada, sendo apreendida por mais de 80% dos estudantes europeus por um período de tempo variável entre seis e 13 anos. Por outro lado, os Estados Unidos controlam 85% do mercado mundial da ficção televisiva e cinematográfica. O estudo encontrou correspondências entre a qualidade do inglês de um país com o respetivo investimento no sistema educativo. Mas também considerou que “o inglês melhora nos países onde os filmes e os programas de televisão são legendados”, sublinhando que esta prática incrementa em 28,4% os conhecimentos da língua inglesa relativamente ao nível médio da EU.
O caso da Áustria e da Holanda é ilustrativo desta conclusão: ambos com menos de 20 milhões de habitantes e similar PIB per capita, o primeiro dobra os conteúdos audiovisuais e o segundo recorre à legendagem. Porém, só 53% dos austríacos falam um inglês fluente, contra 87% dos holandeses. No English Proficiency Index de 2018, o mapa que desenha o domínio do inglês coincide em grande parte com aquele que divide, na Europa, os países com dobragem ou legendas. Os nórdicos, incluindo o Reino Unido, estão no topo da lista — encabeçada pela Suécia, a Holanda, a Noruega e a Dinamarca, sendo que Singapura ocupa o terceiro lugar. Portugal situa-se no 19º lugar, enquanto Espanha ocupa o 32º, Itália o 34º e França o 35º. Existem situações em que os mapas divergem, como a da Alemanha — e das nações com a mesma matriz linguística — que, tendo uma tradição de dobragem enraizada há décadas, apresenta um elevado nível de inglês.
Este ano, o filme “Roma”, do mexicano Alfonso Cuarón, vencedor do Óscar para melhor filme estrangeiro, foi exibido nos cinemas de Espanha com direito a legendagem. Produzido pela Netflix, a plataforma achou por bem oferecer aos espectadores traduções do espanhol falado no México. O rastilho da crítica acendeu-se, com o realizador a qualificar a atitude de “paroquial e ofensiva” e os jornais a ridicularizarem as legendas — onde se chega ao ponto de traduzir “mamá” por “madre”. Irónico por sua vez é o facto de o México responder por 65% das dobragens da América Latina, um mercado que congrega 450 milhões de consumidores e que a ele acedem... sem legendagem.
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