Aconteceu no dia 18 de maio, a páginas tantas de uma longa rua do Príncipe Real, em Lisboa. As palavras para descrever tal acontecimento poderão ser várias: extraordinário, surpreendente, fascinante. Os mais pessimistas, que os há bastante em redor deste tema, poderão ir mais longe e dizer que a inauguração da Livraria da Travessa é um verdadeiro milagre. E se uma simples abertura pode não chegar para se evocar tal fenómeno, acrescente-se que a recém-chegada ao Príncipe Real não foi a primeira Livraria da Travessa a abrir portas: foi a décima. Mais: a livraria chega do Brasil, onde já existem nove ‘Travessas’, trazida pelo impulso do sucesso do negócio em terras de Vera Cruz, numa altura em que o normal é as livrarias resistirem até deixarem de resistir, e não abrirem novinhas em folha, prontas a entrar num mercado em crise.
Mas, e o mercado, está mesmo em crise? A pergunta é complexa, portanto fiquemo-nos pelos números. A Federação Europeia de Editores, dirigida pelo editor português Henrique Mota e que representa 29 associações nacionais de editoras — incluindo a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros — estima que em 2017 as vendas de livros na Europa tenham chegado aos 22,2 mil milhões de euros, um número similar ao de 2016 e que prova uma recuperação depois da crise económica: em 2008, as vendas chegaram quase aos 24 mil milhões, e em 2009, com a chegada da crise à Europa, caíram mil milhões de euros. Estes números provam também que o mercado não caiu a pique e se desmoronou no vazio com a crise. De todas as vendas europeias em 2017, 47,4% foram graças a livros de ficção e não ficção, 21,2% a manuais escolares, 18,5% a livros académicos e profissionais, e 12,9% a livros destinados a crianças.
No geral, o número de novos títulos publicados tem subido praticamente em todos os últimos 15 anos: em 2017, foram publicados 610 mil novos livros em toda a Europa, algo que se explica, em parte, pelo aparecimento das editoras digitais. Mas claro que há mercados nacionais mais pujantes do que outros, com Reino Unido, Alemanha, França e Espanha à cabeça da Europa. Em todos eles — grandes e pequenos — há uma tendência transversal: compram-se sempre mais livros nos últimos meses do ano (entre setembro e dezembro).
Em Portugal, compraram-se 11,7 milhões de livros em 2018, um número que não inclui os manuais escolares. Dois anos antes, tinham sido publicados pouco mais de 16,5 mil novos títulos. Dos quase 12 milhões de unidades totalizaram uma receita de 147 milhões de euros. Em média, cada português compra pouco mais de um livro por ano, e à volta de 40% dos portugueses leem — mas leem mesmo — pelo menos um livro no mesmo período. Em relação a 2009, o ano negro da crise, venderam-se menos três milhões de livros no território português (uma queda de 21,5%), o que leva a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros a concluir que o mercado está “estagnado”. Ainda assim, cerca de 15% das receitas das editoras portuguesas devem-se a exportações de livros para toda a Europa, uma das maiores taxas entre países europeus.
No que toca ao consumo interno, existem cerca de mil pontos de venda de livros espalhados por todo o país, mas à volta de 600 são em supermercados — ou seja, com uma oferta limitada. As pequenas livrarias e alfarrabistas têm sofrido nos últimos anos para manter as portas abertas; afinal, têm de ombrear com a grandeza voraz de cadeias como a Fnac e a Bertrand (desde 2010 parte da Porto Editora), o que não significa que chegar aos livros se tenha tornado uma missão impossível: nunca tivemos tantas bibliotecas e festivais literários como hoje. Além disso, feiras de livros um pouco por todo o país conseguem todos os anos impulsionar as vendas. A maior, a Feira do Livro de Lisboa, iniciou-se em 1930 e tornou-se um marco importante no comércio de livros português. Na edição de 2017 bateram-se todos os recordes: 500 mil visitantes e 400 mil livros vendidos. A edição de 2019 começa já a 29 de maio, e prolongar-se-á até 16 de junho. Se as vendas subirem, pode significar que os portugueses estão a reservar uma maior fatia do seu orçamento anual para comprar livros. Atualmente, essa percentagem é de 1,1%. O país europeu em que os habitantes destinam aos livros (e jornais) uma fatia maior dos seus rendimentos anuais é a Eslováquia (mais de 2%), seguida da Alemanha, Noruega, Islândia, Polónia e França. No extremo oposto, estão a Espanha — apesar de um amplo mercado editorial —, a Grécia e a Bulgária.
COMPRAS E LEITURAS DIGITAIS
O fenómeno do digital mudou não só a forma de ler, mas também de comprar livros. Nas vendas de livros online, a gigante Amazon é rainha absoluta, não tivesse sido esse o seu negócio original: em 2017, representava mais de 50% das vendas de livros online em todo o mundo (com uma presença demolidora nos Estados Unidos da América). Isto em papel, porque no que diz respeito a e-books e outros formatos digitais, a fatia da empresa norte-americana é superior a 80%. Em 2016, o Eurostat assinalava que apenas 8% dos portugueses tinham comprado pelo menos um livro online no último ano — uma percentagem que pode parecer baixa mas que ganha significado sabendo a percentagem de portugueses online que já compraram bens ou serviços online (27%, abaixo da média da UE de 35%).
A compra de livros através de cliques é mesmo um bom indicativo para perceber a desenvoltura dos mercados literários, pelo menos na Europa. Acima da média europeia estão os países com os mercados mais pujantes, como a Alemanha, os países escandinavos e o Reino Unido. Voltando a Portugal, refira-se que a Wook e a Bertrand — pertencentes à mesma empresa-mãe, a Porto Editora — são as principais livrarias virtuais portuguesas, sendo que a primeira afirma ter um catálogo de mais de 7 milhões de produtos, onde se incluem, obviamente, os e-books.
E-books esses cujos dados parecem poder ser lidos a duas velocidades. Por um lado, desde que a tecnologia foi inventada que chamaram a si parte das receitas no comércio dos livros. Ou seja, não se trata de uma moda fugaz que acabará por passar. Por outro, não descolaram sem parar, e estão muito, muito longe de engolir os “tradicionais” livros em papel, como uma parte do mercado chegou a prever que acontecesse. Os livros digitais têm uma presença imponente nos Estados Unidos da América — onde geram receitas anuais de quase cinco mil milhões de euros — e, bastante atrás, no Japão e na China (na ordem dos mil milhões). Na Europa, ainda há pouca penetração do digital, e os números tanto de utilizadores como de vendas têm vindo a cair no Reino Unido, o único sítio em que a leitura nos ecrãs tem tido alguma tração (17%). Em Portugal, o portal online Statista contabiliza as receitas de vendas de e-books em cerca de 13 milhões de euros, à volta dos 9% das receitas totais. Em 2017, os fãs dos e-books tinham sobretudo entre 25 e 34 anos, sendo curioso assinalar que, nos adultos mais jovens (18 a 24 anos), apenas 10% liam através do ecrã.
No fundo, vale a pena separar as páginas: uma coisa é publicar livros, outra coisa é comprá-los, e outra coisa totalmente diferente é, de facto, lê-los. E, apesar dos sintomas de doença e a certeza-não-tão-certa do digital, o papel ainda não morreu. Talvez não seja tão frágil quanto parece. Seja qual for o cenário no futuro — desde a morte de um deles à coexistência bem-sucedida de ambos, passando pela atual sobrevivência conturbada — o mais importante é que os livros estão e parece que vão continuar a estar em todo o lado, nas livrarias, alfarrabistas, feiras e bibliotecas, na internet, tablets, telemóveis e outros dispositivos obscuros: exatamente onde tiverem de estar, à disposição para serem lidos.