Cultura

Rembrandt no sangue

Jan Six, negociante e historiador de arte, com o quadro de Rembrandt que terá descoberto e comprado num leilão por uns meros 153 mil euros
Jan Six, negociante e historiador de arte, com o quadro de Rembrandt que terá descoberto e comprado num leilão por uns meros 153 mil euros
FOTO KOEN VAN WEEL/AFP/GETTY IMAGES

Passaram-se décadas sem que alguém encontrasse qualquer nova pintura de Rembrandt. Até que um aristocrata holandês descobriu duas. E logo nas vésperas da celebração do 350º aniversário da morte do pintor

RUSSELL SHORTO/“THE NEW YORK TIMES”

A descoberta que mudou a vida de Jan Six aconteceu num dia de novembro de 2016. Six, de 40 anos, é um negociante de arte sediado em Amesterdão que adquiriu notoriedade mundial o ano passado com a notícia de que tinha encontrado um quadro até aí desconhecido de Rembrandt, o mais reverenciado dos mestres holandeses. Era o primeiro Rembrandt novo a aparecer nos últimos 42 anos. A descoberta não ocorreu durante pesquisas em igrejas antigas ou nos sótãos de velhas mansões rurais inglesas, mas, conforme Six me descreveu em maio passado, quando ele estava a ver o seu correio. Tinha acabado de levar para a escola os dois filhos pequenos (à maneira holandesa, i.e. de bicicleta: um sentado entre as barras do guiador e o outro atrás). O clima típico dessa estação, vento severo e chuva cuspida, jamais dissuadiria um verdadeiro residente de Amesterdão de montar a sua bicicleta — e as raízes de Six na cidade são o mais antigas possível — mas quando chegou ao seu escritório ele já sentia os efeitos. Waterkoud (“frio de água”) é a palavra holandesa para a humidade gelada dos Países Baixos que entra nos ossos.

O antídoto para esse sentimento é resumido por outra palavra. Gezelligheid — conforto, numa tradução bastante livre — é a condição a que os holandeses aspiram no interior das suas casas. É frequentemente aquilo que celebram as velhas telas da Era de Ouro no século XVII, a época que é a especialidade de Six: cenas domésticas quentes, grupos a erguer canecas, naturezas-mortas com mesas cheias de comida. O escritório de Six, no rés do chão de um edifício na Herengracht, um dos principais canais da cidade — um canal onde o próprio Rembrandt costumava passear —, tem a sua quota-parte de Gezelligheid. O edifício data do princípio do século XVII. Traves antigas cruzam o teto. Das janelas veem-se ciclistas a passar e a superfície evocativa e sempre sombria do canal, espelhando os telhados inclinados nas fachadas dos edifícios no lado oposto.

Nessa manhã Six fez café e sentou-se a ver o seu correio. Pôs de lado as contas e outras chatices a fim de se concentrar nos catálogos dos próximos leilões de arte. Um dizia respeito a um evento em dezembro, na Christie’s londrina. Ele passou rapidamente os olhos, quase sem ligar; era para o leilão diurno, com objetos menores. As pinturas e esculturas mais importantes ficavam sempre reservadas para o serão. E de repente, segundo conta, ficou paralisado. Uma fotografia ligeiramente descolorida no catálogo mostrava um cavalheiro jovem de ar espantado, com um colarinho de renda e um penteado quase à Led Zeppelin. O que Six notou primeiro foi o olhar do sujeito (cuja identidade permanece desconhecida). “Ele atravessa a imagem”, diz. Six sentiu que já tinha visto anteriormente a imagem, mas depois de revirar a sua biblioteca à procura dela concluiu que não era a imagem que lhe parecia familiar mas a soma de todos os traços característicos de um Rembrandt da primeira fase. Segundo Six, esses traços incluem a humanidade daquele olhar, o traço de pincel “redondo” e uma tendência para empregar estilos de pintura diferentes numa mesma obra.

O quadro datava de algures entre 1633 e 1635. A pista-chave era aquele tipo particular de colarinho rendilhado, que foi a grande moda durante um curto período e rapidamente se desatualizou. O que realmente chamava a atenção de Six não era só o facto de a Christie’s não ter visto que o quadro era muito provavelmente da mão do mestre mas também que lhe tivessem posto a etiqueta “Círculo de Rembrandt”, considerando-o obra de um seguidor. “Vê o problema, certo?”, perguntou-me. Eu estava a tentar desvendar o puzzle quando ele me explicou: “No princípio da década de 30 Rembrandt ainda não era famoso, portanto não havia círculo. Eu soube logo que a Christie’s tinha feito asneira.” A partir daí, Six tornou-se um cão de caça a seguir o rasto. Descobriu que a proveniência do quadro remontava a Sir Richard Neave, um mercador inglês do final do século XVIII que tinha construído uma “séria coleção de arte”, onde constavam obras de Thomas Gainsborough e John Constable; a pintura ficara na mesma família durante seis gerações. Batia certo: fazia sentido que um quadro de um pintor de topo tivesse atraído um colecionador proeminente.

Six ficou tão excitado que saltou para a sua bicicleta e percorreu uma curta distância no centro de Amesterdão até à casa de Ernst van de Wetering, uma autoridade universalmente reconhecida em Rembrandt. Ainda ofegante, atirou-lhe com uma fotocópia da pintura. Como é próprio de uma pessoa cuja opinião tem peso, Ernst van de Wetering reage normalmente com reserva quando vê uma imagem pela primeira vez. Mas dessa vez ficou intrigado. “Parecia um Rembrandt, mas era completamente novo para mim”, disse-me mais tarde. Six voltou para casa e comprou um bilhete de avião. Conta que havia algumas pessoas na sala de exposição da Christie’s quando chegou; portanto, ficou a olhar para outros quadros até elas irem embora. Então dirigiu-se ao quadro, examinou-o e tirou fotografias dele. “Fiquei chocado, pois o aspeto dele ao vivo era diferente. Tinha muito mais profundidade”, afirmou.

Six dirigiu a sua atenção ao rendilhado no colarinho. A renda era um sinal de estatuto no século XVII, e Six acredita que Rembrandt tinha uma forma característica de mostrar aquele género de renda, tipo renda de bilros. Outros artistas do período executavam laboriosamente as suas intrincâncias pintando a branco por cima do casaco. Rembrandt fazia mais ou menos o oposto. Primeiro pintava o casaco, depois pintava de branco a área do colarinho e a seguir usava tinta preta para criar os espaços negativos no colarinho. E enquanto outros pintores tinham o cuidado de criar padrões repetidos, Rembrandt tecia um design em estilo livre. Para quem vê o quadro de muito perto, o colarinho parece uma confusão de hieróglifos; afastamo-nos um pouco, e é coerente. Para Six, isto era um aspeto do génio de Rembrandt. “Ele percebia que uma cópia pintada de um padrão repetido, mesmo que reproduza o original, na verdade tem um ar artificial.” Após deixar o salão da Christie’s, foi a uma loja de livros de arte que ficava ao virar da esquina e encontrou o guia de referência para a obra completa de Rembrandt — “A Corpus of Rembrandt Paintings”. Começou a folhear a parte sobre as obras da década de 30 e parou quando descobriu aquilo de que estava à procura: o “Retrato de Philips Lucasz”, de 1635. O original, convenientemente, encontrava-se na National Galley, do outro lado da cidade. Correu para lá, e não tardou a achar-se em frente à obra, alternando o olhar entre ela e a imagem na sua câmara. À medida que a intuição se transformava em quase certeza, sentiu o sangue acelerar. “Sabia que quem tinha pintado isto tinha pintado aquilo”, diz.

UMA HISTÓRIA DE FAMÍLIA

Jan Six é um homem alto e magro, quase humilde na forma impecável como se veste, e com a expressão habitual de quem carrega um fardo. O fardo, por acaso, é mesmo o seu nome — na realidade, Jan Six XI. Com quatro séculos de história, a sua família aristocrática tem chamado Jan Six ao primogénito em quase todas as gerações. O primeiro Jan Six, um homem de arte, cultura e política, foi um verdadeiro representante da Era de Ouro holandesa, o período em que uma explosão de criatividade de arte na ciência e no comércio empurrou a pequena nação para a vanguarda da vida e do pensamento europeus. Esse Jan Six era de facto um amigo de Rembrandt van Rijn. Quando decidiu ter o seu retrato pintado, algures na década de 50, pediu a Rembrandt que lhe fizesse a honra. O resultado é uma das obras mais admiradas do mestre, um espantoso estudo meditativo de sofisticação autoconsciente na meia-idade, feita no estilo de pinceladas largas que caracteriza o Rembrandt tardio. O historiador Simon Schama chamou-lhe “o maior retrato do século XVII”.

O primeiro Jan Six acumulou uma vasta coleção de pintura, escultura e desenhos de uma variedade de artistas. Mas é Rembrandt quem está no centro da coleção. Além do retrato de Six, atualmente avaliado em 400 milhões de dólares (356 milhões de euros) para efeitos de seguro, há um grande retrato a óleo da mãe dele, Anna Wymer, juntamente com cinco desenhos e 50 gravuras do artista.

À medida que a coleção Six transitava entre gerações, foram-lhe sendo acrescentadas obras de Vermeer, Bruegel, Hals e Rubens, e o ocasional Ticiano e Tintoretto. Um tesouro de artefactos menores mas historicamente significativos também lhe foi ficando associado: mobília, pedras preciosas, medalhas, manuscritos, pratas em grande quantidade, vidro veneziano, escovas de dentes com pegas de marfim, um anel de diamante oferecido pelo czar Alexandre I. Mas as pinturas foram sempre a raison d'’être da coleção, e ao longo dos anos a família Six mostrara uma tendência para seguir a inclinação do seu progenitor. Neste momento a coleção possui nada menos do que 270 retratos de membros da família.

Ao longo dos séculos, enquanto os acervos de arte de outras grandes famílias europeias se dispersavam e os museus passavam a ser os principais repositórios de tais coisas, a coleção Six, que permanece na residência da família, via a sua mística crescer. Por tradição, o Jan Six de cada geração fica encarregado da coleção e ocupa a casa, que no último século tem sido uma mansão de 56 quartos junto ao rio Amstel, no coração de Amesterdão. Mas Jan XI, o negociante de arte, ainda não é esse Jan. O seu pai, Jan X — ou, como prefere que lhe chamem, barão J. Six van Hillegom — ainda reina.

O Six mais velho, que tem 71 anos, é conhecido nos círculos culturais como um homem profundamente reservado (recusou ser entrevistado para este artigo) e algo suscetível. Quase toda a gente com quem falei usou a palavra ‘difícil’ para o descrever. Conheci-o há nove anos, quando estava a fazer pesquisa para um livro sobre a história de Amesterdão e queria ver o interior da famosa casa Six. Após um típico almoço holandês de sandes e leite numa cozinha que parecia saída diretamente de um quadro de Vermeer — madeira negra, chão de azulejo, luz em ângulo —, ele conduziu-me através da casa: um delicioso labirinto de corredores e salas velhas recheadas de curiosidades, algumas de valor incalculável. Embora as salas-mostruários e os aposentos estivessem separados, era palpável o sentimento de estar simultaneamente numa casa e num museu. Passávamos de um Frans Hals para um livro aberto com óculos de leitura numa mesa aberta, ou uma vassoura e uma pá ao canto. A minha impressão geral da visita lembrava um romance de Thomas Mann: grandeza empalidecida e um ar parado de antigo, vigiado por um aristocrata cheio de rugas e um pouco envergonhado.

O velho Six pode ter fama de conflituoso, mas no que respeita à sua batalha mais pública, um processo de anos contra o Governo holandês por não cumprir um acordo para pagar a manutenção da casa, há quem lhe reconheça razão. “Um político de esquerda achou que era ridículo dar dinheiro a uma família rica, e cortou o subsídio”, diz Frits Duparc, o ex-diretor do museu Mauritshuis, em Haia, que serviu de mediador na disputa. “Mas o facto é que a família não é assim tão rica, pois a arte foi posta há muito numa fundação.” A fundação em parte foi criada para manter a arte junta e, portanto, no país. No passado a família já foi obrigada a vender Vermeers e outros tesouros nacionais para pagar impostos.

Finalmente, em 2008, o processo terminou com um acordo. A mansão fica propriedade da fundação, a família tem o direito de lá viver em perpetuidade, e o Estado disponibiliza fundos para a manutenção. Em troca, a família permite o acesso público limitado à coleção.

PINTOR CELEBRADO

A obsessão de Jan Six com Rembrandt (ele chama-lhe assim) começou com os seus encontros de infância com o retrato do seu homónimo no ‘salão azul’ da residência familiar. Ele pode falar de Rembrandt sem parar, de forma absorvente e com grande sentimento. “O que distingue Rembrandt é a sua capacidade de pintar a pessoa”, diz. “Quando vou a um museu e há lá um Rembrandt, passo por ele como se fosse uma pessoa, vendo-o pelo canto do olho e a pensar: oh, quem é? Como se fosse alguém que conheço. É um ser humano vivo.” Por contraste, não liga muito ao outro titã da Era de Ouro. “Sei que uma data de americanos adoram Vermeer. Pessoalmente, não gosto. É um truque: uma coisa ótica. Acho que se pusermos ‘Rapariga com um Brinco de Pérola’ ao lado de qualquer Rembrandt vemos a diferença.”

Entre as muitas razões para o fascínio popular com Rembrandt ao longo de séculos — o enorme volume, amplitude e qualidade do trabalho que produziu, a diversidade de estilos com que experimentou, a sua biografia complexa — talvez a mais poderosa seja a perceção psicológica que ele aplica aos seus sujeitos, o modo como as suas obras parecem engajar o espectador, atraí-lo para aquela luta particular daquele momento nas vidas deles.

O foco no indivíduo é uma das características que definem a época. A Era de Ouro holandesa marcou um afastamento de temas estritamente religiosos; de repente, as pessoas ficaram interessadas na vida comum e em si mesmas, e os artistas acompanharam-nas. A pintura de retratos tornou-se uma indústria. Mas Rembrandt foi mais além do que os seus contemporâneos. Muitos conseguiam pintar o aspeto que as pessoas tinham. O que tornou Rembrandt tão especial para os cidadãos de Amesterdão, que faziam fila para lhe encomendar um retrato, era ele conseguir ver por baixo da superfície, chegar ao que as pessoas eram.

A empatia poderá vir não só do génio de Rembrandt como da sua própria vida. Cedo se tornou o pintor mais celebrado do seu tempo, mas recusou seguir as alterações da moda e caiu em desfavor. Gastou demais, ficando seriamente endividado. Perdeu a mulher pouco depois de ela dar à luz e começou um caso com a ama de leite da criança, do qual se tentou livrar internando-a num asilo. A seguir entrou em bancarrota. Parece ter vivido os seus últimos anos numa miséria pela qual foi responsável. Se a Era de Ouro holandesa evidencia um foco novo e mais íntimo no indivíduo, Rembrandt aplicou cruelmente essa máxima a si mesmo. Os seus autorretratos, em especial os da fase tardia, são explorações impiedosamente honestas do desgaste psíquico que infligimos a nós mesmos.

As paredes do estúdio de Six em Amesterdão estão sempre cheias de retratos do século XVII: obras que ele comprou e está a investigar, ou restaurou e se prepara para vender. Quando lá fui no verão passado, o quadro do catálogo da Christie’s, “Retrato de um Cavalheiro Jovem”, estava pendurado num lugar central. Six, que fala num murmúrio tranquilizante e se refere a si mesmo como um “académico dealer”, fez-me uma visita guiada. “Adoro a luva e o punho — muito elegante. Vê as pinceladas? Ele começou aqui e move-se lentamente para a direita e faz uma curva. Adiciona essas pinceladas largas. A seguir pinta o punho, e o bocado que está iluminado é pintado em cor, porque ele compreende que na luz não há linhas negras, mas nas sombras sim. Ele usa inteligentemente a forma como a luz de facto brilha no material. Lentamente recua para a sombra.”

Quando eu estava a trabalhar no meu livro sobre a história de Amesterdão, Six convidou-me a ir lá e fez uma pequena e notável demonstração. Apagou as luzes, acendeu velas, e de repente as pinturas transformaram-se. Ganharam uma nova energia; os dourados e os vermelhos e os tons de carne ficaram mais quentes. O cintilar das chamas parecia inspirar vida nas figuras bidimensionais. Os olhos dele brilharam quando viu que eu tinha percebido. Aquelas pinturas eram feitas para a luz da vela.

Do modo mais tangível, Six ajudava-me a mergulhar no mundo dos residentes de Amesterdão no século XVII: as diferenças minuciosas entre as formas de ver e sentir numa época histórica e na outra. Mas também percebi que me dava a entender algo mais: a sua luta de uma vida inteira com a família em relação ao que esperavam dele como herdeiro da coleção Six. Em criança, a grandeza da tradição artística ocidental deve tê-lo saudado todos os dias a caminho do pequeno-almoço, mas não o excitava como destino. Enquanto anteriores herdeiros — que eram ávidos colecionadores, embora não profissionais de arte — pareciam ter aceitado a responsabilidade com equanimidade, Six afastou-a. Os Sixes são parte da nobreza holandesa, mas em adolescente ele “tentou não ser um aristocrata”, disse-me o seu amigo David van Ede. “Ficava um pouco embaraçado com aquilo.” Em vez de ter Rembrandts e Bruegels pendurados no quarto, preferia posters: Bob Marley e Guns N’Roses. Detestava o liceu, arranjou um emprego como cozinheiro num restaurante e durante uns tempos pensou que tornar-se chefe seria a sua via para a rebelião. Quando os pais estavam fora, dava festas na mansão. “Estávamos lá praticamente todas as semanas”, diz David van Ede. “Não nos pendurávamos nos candeeiros, mas fumávamos, bebíamos Heinekens, íamos a um clube de hip-hop, parávamos no Burger King, e então se calhar voltávamos para casa de Jan e dormíamos. Às vezes púnhamos os alarmes.” Six sabia o que se esperava dele, mas reagia. “Ninguém gosta de ser encostado a um canto”, disse-me. “Toda a vida ouvimos que tudo o que fazemos é em preparação para seguir os passos dos Jan Sixes. Mas hei, eu sou uma pessoa.”

Conformou-se, pelo menos em parte, quando começou a interagir com as pessoas que apareciam na porta da frente, com bilhetes para visitar a sua casa. Foram essas pessoas comuns que o levaram a perceber que a arte era o seu destino. “Às vezes um guia ficava doente e eu ajudava”, diz. “De início tinha medo. Depois vi como as pessoas ficavam felizes e interessadas. E quando sabiam que eu era Jan Six e olhavam para o retrato do outro Jan Six feito por Rembrandt, via-as ficarem excitadas, ligando passado e presente. Alguns dos visitantes sabiam imenso de arte, e eu ouvia-os.” Começou a olhar para os quadros de outra forma. Passaram de representações planas de gente morta a expressões estéticas que eram portais para a história. Em particular, aquele retrato do primeiro Jan Six cativou-o. “Compreendi que é importante para mim os olhos naquela pintura serem geneticamente os meus olhos.”

Tentou-se libertar do fardo do seu legado abraçando a arte que é a base dele, engajando-a nos seus próprios termos. Estudou História de Arte na universidade, e a seguir foi contratado pela Sotheby’s, em Londres, como especialista júnior em mestres antigos. Era bom no trabalho e movia-se com facilidade no mundo da riqueza e da cultura internacionais. Com o tempo, dir-se-ia, um gene familiar despertou. Geert Mak, um autor holandês que escreveu uma história da família Six, contou-me que alguns dos primeiros Jan Sixes tinham um sentido visual extraordinariamente agudo, o qual os guiava enquanto iam constituindo a coleção. “Este Jan Six também o tem”, diz. “É um talento excecional para ver através de uma pintura, para recordar um gesto que viu noutra pintura anos antes, uma memória incrível para pequenos pormenores.”

À medida que foi crescendo na sua profissão, Six começou a sentir que tinha direito de se expressar sobre a coleção da família. Seguiu-se uma série de confrontos com o pai, muitos em torno da questão de um maior acesso público, que foi sempre uma dificuldade. Atualmente, as visitas à coleção, que são sempre por marcação, estão cheias até ao próximo ano. A imagem traçada pelo jovem Six é a de um pai introspetivo que tenta preservar um legado mantendo o mundo à distância, acabando por perceber que também tem de lutar contra um filho gregário e extrovertido que sente que a forma de preservar esse legado é justamente partilhá-lo com o mundo mais vasto. As batalhas deixaram o jovem Six cada vez mais exasperado. “A seguir eu ia de bicicleta para casa e pensava: por amor de Deus, pai, estou a tentar ajudar-te.”

Uma dessas discordâncias, curiosamente, teve a ver com molduras. Algumas das grandes obras da coleção, incluindo o “Retrato de Jan Six”, têm molduras douradas e ornamentadas que lhes foram postas pelos Sixes do século XIX, quando estava na moda o exibicionismo. O jovem Jan alegou a favor de serem restituídas ao aspeto que tinham no século XVII, o que implicava as suaves e sóbrias molduras que ele pensava serem o habitat natural das pinturas.

Isso foi o outro ponto da demonstração à luz da vela que Six me ofereceu. “Se pusermos uma moldura dourada à volta de um Rembrandt, o que quer que esteja na pintura recua cinco metros, e o que for dourado fica amarelado”, diz. “O quadro tem de concorrer com o ruído da moldura. Tire-se o ruído e a beleza emerge.” O seu pai, no entanto, insistia que as pinturas da coleção deviam ficar nas molduras douradas. O jovem Six explicou-me que o pai considera que o seu dever é para com a coleção, incluindo a forma como os seus antepassados a preservaram. “Se habitamos uma casa durante décadas e a vemos como o núcleo da nossa existência, na prática vivemos para a casa”, diz. Enquanto ele próprio sente uma obrigação para com a arte. Para evitar mais confrontos, Six recuou. “Decidi que preferia ter um pai como um amigo. E assim, a casa e a coleção não têm nada a ver comigo. A nossa relação é melhor quando há uma distância.”

O MERCADO DA ARTE

Até há pouco tempo, em 1991, obras de artistas da Era de Ouro holandesa, do Renascimento italiano e de outras grandes épocas da história europeia dominavam o mercado internacional de arte. Mas num mundo digital orientado para o presente, onde se verifica uma alteração gradual no equilíbrio internacional de poder (o ano passado, a China tornou-se o segundo maior mercado de arte internacional, atrás dos Estados Unidos), os velhos mestres europeus começaram a parecer... velhos.

Em 2018, 85 por cento dos 200 colecionadores de topo na lista da ARTnews disseram que colecionavam arte contemporânea, sob uma forma ou outra; apenas 6 por cento disseram que colecionavam mestres antigos. E embora os nomes de topo — Rembrandt, Ticiano, Rafael — ainda atinjam enormes valores, tudo o resto caiu. “Se comprarmos uma pintura menor por três mil dólares, provavelmente acabará por valer dois mil”, diz Otto Naumann, um proeminente negociante americano, agora com a Sotheby’s. “Na linha dos 300 mil dólares (267 mil euros) assistimos a um declínio semelhante. Paisagens marítimas, naturezas-mortas holandesas: muitas delas baixaram de valor.” Relacionado com isso está o envelhecimento geral nessa área. “Mal se veem colecionadores jovens” interessados em mestres antigos, diz o ex-diretor do Mauritshuis, Frits Duparc. “A maioria dos grandes colecionadores está com 70, 80 anos.”

Também houve quedas nos programas universitários relevantes e em postos académicos, bem como em posições de curador nos museus. Duparc conta que na Holanda há exatamente um professor dedicado a tempo inteiro à arte holandesa da Era de Ouro. Matthew Teitelbaum, diretor do Museu de Belas-Artes em Boston, diz que o novo Centro de Arte Holandesa que a sua instituição está a desenvolver visa contrariar essa tendência. Mas reconhece o desafio: “Atualmente é uma área a encolher, com programas universitários em declínio e as posições de professor a ficarem vazias.” Quanto a dealers especializados em mestres antigos, Duparc nota que enquanto há umas décadas havia dezenas de independentes, agora existem apenas alguns. Muito do negócio ficou nas mãos das grandes casas leiloeiras, a Sotheby’s e a Christie’s.

Não obstante este cenário inóspito, em 2009 Jan Six resolveu estabelecer-se como um dealer independente em mestres antigos holandeses, com foco nos retratos. Diz que se tornara avesso à mentalidade corporativa da Sotheby’s, que olhava para a herança artística mundial como uma mercadoria muito cara. “A maioria dos dealers são comerciantes”, diz. “Podiam vender carros ou negociar em Wall Street. Não acho realmente que estejam nisto pela emoção estética.” Ele descobriu um elegante espaço de estúdio/biblioteca/escritório em Amesterdão, a uns quarteirões de distância dos seus pais e da coleção de família, e abriu as portas. Floresceu como art dealer. Passou os anos seguintes a viajar entre Nova Iorque, Londres, Paris e Amesterdão, comprando e vendendo, construindo confiança e apurando cada vez mais o olhar. O seu nome deu-lhe acesso rápido aos colecionadores de topo e aos diretores dos maiores museus do mundo. Tornou-se versado nos métodos de alta tecnologia para analisar pinturas, que podem fornecer detalhes sobre tela, madeira e pigmento, úteis para compreender uma obra e o seu criador. Saiu-se bem como art dealer — um Govert Flinck aqui, um Gerrit van Honthorst ali — mas sentia que estava apenas a fazer tempo.

O que lhe interessava era Rembrandt. Esforçou-se laboriosamente para se tornar um especialista. Iniciou uma peregrinação para ver ao vivo cada uma das 341 pinturas do mestre listadas no “Corpus”, desde Omaha, no Nebrasca (EUA), até São Petersburgo (Rússia). Reuniu um arquivo de dezenas de milhares de documentos e imagens relativos ao artista. Não será exagero dizer que, para ele, Rembrandt é uma questão pessoal. Quando primeiro falámos sobre o retrato que tinha descoberto, deixou claro o que aquilo significa para ele. “Não tem nada a ver com a minha família”, afirmou, embora, como bem sabia, isso ao mesmo tempo era estritamente verdade e completamente falso. “Quero que perceba que esta descoberta não tem a ver com o meu pai ou a coleção Six. É catarse pura. Pela primeira vez na minha vida, sou só eu e Rembrandt.”

O QUADRO MISTERIOSO

Após estudar o retrato do jovem cavalheiro na sala de exposições da Christie’s, Six regressou a Amesterdão e levou as fotos que tinha tirado a Ernst van de Wetering, o estudioso de Rembrandt a quem mostrara a imagem no catálogo. Van de Wetering ficou ainda mais intrigado, mas não podia acrescentar mais nada sem ter visto a coisa primeiro. Isso para Six bastou; estava pronto a licitar. A estimativa do leilão ia de 19 a 25 mil dólares (16,9 mil a 22,25 mil euros); uma ninharia, se o quadro fosse o que ele pensava. Mas caso alguém tivesse a mesma suspeita, o preço dispararia. Os Rembrandts, obviamente, podem vender-se por dezenas ou centenas de milhões. Em 2015, o Rijksmuseum, o grande repositório de arte e história holandesa, onde se encontra a “Ronda da Noite”, comprou em parceria com o Louvre um par de retratos de um casal de noivos em tamanho real, pintados por Rembrandt em 1634, precisamente no período da descoberta de Jan Six. (Ambas as figuras usam a característica renda tipo bilros.) Os museus pagaram 174 milhões de dólares — 154,9 milhões de euros — pelo par. Six telefonou a um investidor com quem tinha trabalhado no passado (não diz quem) e obteve a aprovação. O investidor estava disposto a ir até aos cinco milhões, o que ainda seria uma pechincha para um Rembrandt. No final, a licitação vencedora de Six foi de 173 mil dólares (153 mil euros). Um preço adequado para uma pintura atribuída ao “círculo de”.

Six tratou de limpar, restaurar e analisar cientificamente a pintura. Para isso, recorreu à melhor equipa que havia no país para analisar arte com alta tecnologia. Petria Noble, chefe de conservação de pinturas no Rijksmuseum, contou-me que o seu laboratório fez uma macrorradiografia fluorescente do quadro — uma tecnologia que atravessa camadas de pintura e permite uma análise sofisticada de uma obra, e portanto do processo artístico — e também estudou amostras da pintura. Como o Rijksmuseum tinha recentemente comprado aqueles dois retratos do casamento, havia oportunidade para comparar de perto o jovem cavalheiro de Six, em especial, com o retrato do noivo, Marten Soolmans.

Esses testes, conforme Six afirmou num livro que escreveu em 2018 sobre o quadro, mostraram que as duas pinturas “foram feitas exatamente com os mesmos materiais, seguem a mesma acumulação de camadas de pintura, seguem o mesmo método de pintura de trás para a frente, e, mais importante, ambas têm o mesmo método preto e branco que foi usado para pintar os colarinhos de renda”. Por outras palavras, ele estava a dizer que o seu quadro era tanto um Rembrandt como aquele que tinha custado dezenas de milhões de dólares.

Porém, os museus evitam ser usados como ferramentas de marketing pelos dealers, e Noble não estava disposta a ser tão assertiva. “Tínhamos de ter muito cuidado antes de chegarmos a uma conclusão”, diz. “Havia uma data de semelhanças, e também uma data de questões que requeriam mais investigação.”

A seguir Six arranjou académicos proeminentes para apoiarem a sua atribuição do quadro a Rembrandt. Vale a pena notar que vários deles recusavam fazê-lo, não por acreditarem taxativamente no contrário mas como parte de uma tendência para reconhecer as áreas cinzentas na história da arte. Para uma tal pintura, aparentemente vinda do nada, não há maneira de chegar a uma certeza absoluta quanto à proveniência. “Quando Jan me apareceu com a sua pintura, tenho de admitir que não consegui contestar os seus argumentos”, diz Gary Schwartz, um biógrafo americano de Rembrandt e uma autoridade em arte holandesa do século XVII. “Disse-lhe que não iria expressar dúvidas sobre a autoridade de Rembrandt. Mas não me deixa contente” ser tão definitivo. Enunciou as dificuldades particulares que Rembrandt põe aos autenticadores: a diversidade de estilos em que pintava, os seus muitos alunos, a probabilidade de mais de uma pessoa no seu estúdio ter trabalhado numa certa pintura. Uma pintura que se determine ser “do estúdio de Rembrandt”, por exemplo, e não de Rembrandt, valeria muito menos. Schwartz é um dos historiadores de arte que, quando está em causa a autenticidade de obras de pintores famosos, gostavam que as pessoas se focassem menos no artista e no valor monetário da pintura do que na obra em si mesma. Ele usa o termo “rembrandtness” (a qualidade de ser um Rembrandt) e defende que se atribuam graus de probabilidade à hipótese de uma pintura ser do próprio artista. Em relação à “rembrandtness” daquele retrato em particular, diz: “A atribuição a Rembrandt é a hipótese a rebater, mas pode não ser imbatível.”

FAMÍLIA “Retrato de Jan Six” pintado por Rembrandt por volta de 1654 e que faz parte do acervo da Fundação Jan Six. O historiador Simon Schama considera-o o melhor retrato do século XVII e, para efeitos de seguro, vale 400 milhões de euros
Jan Six, em 1985, a jogar gamão com o pai e o avô, na sua mansão de Amesterdão. A mãe está com o seu irmão mais novo, observando um livro antigo
Bruno Bachelet/Paris Match/Getty Images

Os museus procuram respeitar a “rembrandtness”. A National Gallery em Londres, por exemplo, classifica “Um Velho numa Cadeira de Braços” como “provavelmente” de Rembrandt, e o museu Mauritshuis anunciou recentemente que está a lançar um estudo extenso a dois dos seus alegados Rembrandts para determinar a probabilidade de serem do mestre. “Acho que ‘rembrandtness’ é uma ideia inteligente”, diz Ronni Baer, curador sénior de pinturas europeias no Museu de Belas Artes em Boston. “Mas as pessoas não vão ficar satisfeitas, pois há tanto dinheiro envolvido na atribuição.”

A opinião mais importante sobre se a pintura era de Rembrandt pertencia a Ernst van de Wetering. O especialista em Rembrandt suspendeu o seu julgamento enquanto a pintura era analisada. “À medida que se fazia o restauro, fui ficando cada vez mais convencido”, disse-me ele. “Conclui que Jan Six tinha razão na sua avaliação.”

Acabou por acrescentar uma reserva importante. Acha que a pintura de Six fazia originalmente parte de uma obra maior. Um indício é o facto de o rosto estar ligeiramente borrado. Rembrandt faz isso em retratos de grupo, disse-me Van de Wetering, a fim de orientar o olhar para a figura central da composição. “Outra figura devia estar levemente à frente”, explicou. Devia ser uma figura feminina, e a pintura original era provavelmente o retrato de um casamento que mais tarde foi cortado. Entrevistado depois por um jornal holandês, Van de Wetering afirmou que, se se tratasse, como ele pensava, de “um fragmento de uma obra muito maior”, isso diminuiria a sua importância.

RETRATO DE UM ENCONTRO

Um dia depois de Jan Six encontrar o retrato do jovem cavalheiro no catálogo da Christie’s, em 2016, conheceu uma mulher chamada Ronit Palache. Ele vinha de um divórcio difícil; houve um click quase imediato entre os dois. “Uma das primeiras coisas que ele me disse foi, ‘acho que descobri um Rembrandt’”, contou-me Palache em julho passado. Palache era editora e publicista numa editora holandesa. Diz que Six lhe contou que planeava escrever um tratado académico para acompanhar a revelação, e que quando ela olhou para as notas dele achou-as “aborrecidas”. Começou a ter uma ideia. Ali estava o herdeiro de uma família famosa na Holanda pela sua ligação à grande arte, e a Rembrandt em particular. E agora ele tinha descoberto um Rembrandt. Como publicista, “olhei para isto numa perspetiva comercial”, diz. A sua ideia era revelar a pintura da mesma forma que se apresentaria um livro para o grande público, com um blitz mediático completo. Six inicialmente resistiu. “Disse-lhe que não havia um grande público para isto”, recorda. “Os mestres antigos são geralmente para cidadãos idosos com muito tempo livre.” Palache insistiu, e ele por fim concordou. “Estava constantemente a convencê-lo de quão grande ia ser esta história”, diz.

Em maio de 2018, quase ano e meio depois de ter visto o quadro pela primeira vez em Londres, Six apareceu ao vivo em “Pauw”, um dos talk shows mais populares na Holanda. Após uma breve introdução, o apresentador do programa puxou um pano preto que cobria o quadro, no meio dos gritos da plateia. A aparição na TV foi o centro da campanha nos media, que também incluiu uma história exclusiva na primeira página do jornal mais importante do país, o “NRC Handelsblad”, e um livro sofisticadamente produzido, “O Retrato de um Jovem Cavalheiro por Rembrandt”, que Six escreveu sobre o quadro. Ao longo dos dias seguintes, a notícia correu mundo. O livro tornou-se um best-seller instantâneo em holandês, e edições em inglês e francês avançaram. Os holandeses gostam de notar que são agressivamente igualitários e falam diretamente. Na linguagem deles há ditados sobre o risco de hubris (orgulho ou confiança excessivos). A árvore mais alta é a que recebe mais vento; estica demasiado a cabeça e ela será cortada. O mundo dos mestres antigos também tende a preferir a discrição. A forma algo extravagante como Six anunciou a sua descoberta desafiou ambas essas culturas. Porém, os controleiros da arte tradicional, em lugar de torcerem os narizes ao exibicionismo, ficaram inicialmente agradados pela atenção extra que o seu campo estava a receber. Falando comigo na altura, Wim Pijbes, ex-diretor do Rijksmuseum, caracterizou a revelação na TV como “um empreendimento muito bem lançado, e incrível”.

Com a onda de entusiasmo popular a passar-lhe por cima, perguntei-lhe por que razão, se a sua partida da Sotheby’s tinha sido motivada pela mercantilização da arte, ele agora participava nisso. Encolheu os ombros e disse num curto mea culpa: “Sou um homem de negócios!” Mas mais tarde deu-me uma resposta mais introspetiva: “Durante anos, tenho lutado na minha mente para provar que sei algo sobre pinturas por direito próprio. Fico satisfeito por aquilo que têm escrito em todos os artigos até agora, da América até à China ser sobre mim enquanto dealer, não enquanto Six.”

Em setembro de 2018, quatro meses depois de Six fazer a sua aparição televisiva e quase dois anos após o leilão na Christie’s, um dealerholandês chamado Sander Bijl, de Alkmaar, uma cidade a norte de Amesterdão, falou com um repórter e alegou que também ele, na verdade, tinha reconhecido a imagem do catálogo como sendo provavelmente um Rembrandt. Disse que tinha abordado Six para a comprarem juntos, que Six concordara e que os dois concordaram em limitar a sua oferta conjunta a 100 mil euros, que era o máximo que Bijl podia. Quando o quadro se vendeu por 153 mil euros, nunca lhe ocorreu que o comprador fosse Six. Acusou-o de ter feito um acordo com ele e a seguir ter feito uma oferta separada através de um intermediário, a fim de limitar um concorrente que via o real valor da obra. Conforme outro dealer em mestres antigos me disse: “Isso não se faz no nosso negócio.”

A entrevista em que Bijl fazia acusações de vigarice a Jan Six, o ai-jesus do mundo dos velhos mestres holandeses, reverberou na comunidade da arte internacional. Bijl disse-me mais tarde que não tinha outra escolha para proteger a sua própria reputação — ele sentia que dava má imagem entre os dealers e outras pessoas na área pensar-se que ele tinha perdido um Rembrandt. Irritara-o que Six, durante a apresentação do retrato na televisão e as posteriores aparições nos media, descrevesse o processo de encontrar, investigar e comprar o retrato como um empreendimento puramente a solo, no qual só teve contacto com o conhecimento de Van de Wetering e os fundos do seu apoiante anónimo. “Jan Six andava por ali com a sua descoberta que só ele poderia ter feito, dizendo: ‘Toda a gente nesta área é estúpida, ou sou eu que sou esperto?’. Ele sabia muito bem que ambos o tínhamos visto.” Bijl enviou-me uma cadeia de mensagens no WhatsApp que tinha enviado a Six antes do leilão na Christie’s, onde se incluíam partes do quadro que detalhavam o seu próprio estudo. Pareciam provar que Bijl tinha visto a obra antes de Six chegar à sala da Christie’s.

Six disse-me em setembro que nunca concordou comprar o quadro com Bijl. Pareceu sugerir, no entanto, que tinha iludido o outro dealer. “Eu tinha muito receio que Sander avisasse a leiloeira de que tinham algo especial”, disse. “E a Christie’s retiraria o quadro, o que já me aconteceu antes. Perguntei: o que quer fazer? Ele disse-me que o significado disto era ‘o que está a pensar fazer?’”, mas que Bijl o interpretou como um acordo para trabalharam juntos na pintura. Em outubro, Six contou ao jornal “De Volkskrant”: “Dei espaço a Sander para acreditar na sua própria história.”

Os holandeses acharam os novos desenvolvimentos especialmente titilantes devido aos paralelos entre os dois dealers. São mais ou menos da mesma idade. O pai de Bijl, Martin Bijl, é um dos principais restauradores de arte da Holanda, tendo trabalhado em muitos Rembrandts. Tal como Six, Sander Bijl cresceu rodeado de arte holandesa antiga. Mas há uma diferença de estatuto entre os dois homens. “Eu sou o tipo de art dealer que tem uma cabina em todas as feiras de arte”, disse-me Bijl. “Jan Six não se incomoda com isso. Eu sou o pequeno Sander Bijl de Alkmaar; ele é o aristocrático Jan Six de Amesterdão.”

Na sequência da acusação de Bijl, Six revelou-me outra informação que parecia menorizar a disputa entre os dois dealers. Antes eu tinha-lhe perguntado sobre um rumor então a correr de que ele teria descoberto um segundo Rembrandt, e ele havia negado. Agora disse-me que era verdade. Contou que tinha encontrado este outro Rembrandt dois anos antes de ver o retrato na Christie’s, mas tinha concordado não tornar pública a descoberta até ao final de 2019, quando seria peça central na reabertura do Museu Lakenhall, em Leiden, terra-natal de Rembrandt, nas comemorações do 350º aniversário da morte do artista. Mas esta acusação de Sander Bijl mudava as coisas, justificou-se. A fim de explicar o que se tinha passado entre ele e Bijl, precisava de tornar pública a notícia de que tinha encontrado um segundo Rembrandt. Fê-lo a 14 de setembro, noutra revelação igualmente teatral em “Pauw”.

Six disse-me que tinha inicialmente reparado nesta pintura, uma cena bíblica mostrando Jesus rodeado de crianças e com pessoas à volta, ao ver um catálogo online de uma leiloeira alemã em 2014. Todos aqueles anos a olhar para Rembrandts pareciam de repente estar a compensar. Chamou-lhe a atenção uma das figuras menores que tinha o ar de ser o autorretrato de um muito jovem Rembrandt. O pormenor interessou Six não apenas por se assemelhar tanto a outros autorretratos do artista, mas também por se encaixar na tendência, que o pintor tinha nessa altura, de se incluir nas suas pinturas. A obra tinha um estimativa prévia de 20 a 27 mil dólares (17,8 a 24 mil euros), mas o dealer Otto Nauman também a tinha identificado como um possível Rembrandt e estava decidido a comprá-la. Em resultado, Six, juntamente com o seu investidor anónimo, acabaram por pagar dois milhões de dólares (1,78 milhões de euros). Pensa-se que tenha sido pintada muito cedo na carreira do artista, talvez aos 19 anos, e que seja a sua primeira obra conhecida em tela.

Sobre ela havia uma pesada carga de pintura posterior, por um artista diferente — robes refeitos noutras cores, um rapaz nu coberto. Para tentar restituí-la a algo parecido com o que o mestre havia querido, Six decidiu remover a pintura por cima. Uma vez mais consultou Van de Wetering, o qual, diz Six, praticamente insistiu que fosse Martin Bijl a efetuar a extremamente delicada restauração. “Eu não queria, mas Ernst foi bastante insistente”, disse-me, parecendo sugerir que se ele queria o beneplácito do especialista em Rembrandt teria de trabalhar com o pai de Sander Bijl. Six diz que fez um acordo com Martin Bijl para restaurar a pintura, e foi enquanto esse trabalho difícil estava a ser feito que descobriu o retrato no catálogo da Christie’s e o mostrou a Van de Wetering.

AUTORRETRATO Rembrandt quando se representou a si próprio enquanto São Paulo, em 1661
VCG WILSON/CORBIS/GETTY IMAGES

Não muito depois, Sander Bijl, o filho do restaurador, enviou a Six uma mensagem no WhatsApp: “Jan, sei que falou com Martin e Ernst acerca do retrato que está prestes a ser leiloado.” Mas Six não tinha falado com Martin Bijl sobre o retrato. Diz que a mensagem lhe tornou claro que Wetering violara a sua confidencialidade ao informar Martin Bijl de que Six andava à caça de outro Rembrandt, e que o pai tinha dito ao seu filho. Repetiu essa afirmação em “Pauw” em setembro de 2018, tal como a asserção de que Ernst van de Wetering o tinha pressionado a usar Martin Bijl. “De repente, Sander estava a tentar ser meu amigo”, contou-me Six, e a fazer abordagens para os dois comprarem juntos o quadro. Entretanto, diz, Martin Bijl estava a exigir mais dinheiro para completar o restauro da primeira pintura — não apenas um pagamento à hora, como estabelecia o acordo original, mas uma percentagem dos lucros com a venda da obra. “Era uma forma de chantagem”, diz Six.

Enviei um e-mail a Martin Bijl para ele responder a esta acusação. Ele não respondeu, mas o seu filho sim, dizendo que o pai havia pedido mais dinheiro depois de Six exigir que ele apressasse o trabalho de restauro, o que o teria obrigado a recusar outros clientes. Mandou-me uma cadeia de mensagens de WhatsApp entre Six e o Bijl mais velho que sugeria uma relação cordial.

Sander Bijl não nega que soube do interesse de Six no quadro através do seu pai, o qual de facto ouviu falar do assunto a Van de Wetering, mas disse que essas interações são normais e inevitáveis no mundo pequeno dos mestres antigos holandeses. Diz, porém, que na altura em que o pai lhe falou do interesse de Six no retrato, ele já tinha percebido que a Christie’s ia vender um possível retrato de Rembrandt como uma obra de um pintor menor. Remeteu-me um e-mail que enviara à Christie’s em novembro de 2016 a pedir uma foto de pintura em alta resolução, datada de dias antes do momento em que Jan Six me disse tê-la visto pela primeira vez — assim indicando, portanto, que já tinha reparado na pintura por sua própria conta. Disse que ele e Six já tinham feito ocasionalmente negócios juntos — o ano passado comprara a Six algumas obras pequenas, disse — portanto era normal tê-lo abordado com a ideia de comprarem juntos a pintura.

Quando falei ao telefone com Sander Bijl em dezembro passado, depois de a sua disputa com Six estar a ser discutida nos media holandeses há alguns meses, ele sugeriu que os esforços de Six para apagar o envolvimento de Bijl na compra da pintura têm origem nas lutas de Six com os seus demónios interiores: “Ele tem um problema com o peso do nome Six, e acha que tem de se provar a si mesmo. Devo eu pagar pelos seus problemas de família? Não. Ele enganou-me.”

A par com as manchetes tipo “Jan Six, descobridor de Rembrandt, acusado de fraude” veio outra surpresa desagradável para Six. Van de Wetering, que Six tinha venerado ao longo de toda a sua vida profissional, deu uma resposta pública demolidora às afirmações de que tinha forçado Six a usar Martin Bijl e que tinha violado uma confidência. Embora escassas semanas antes me tivesse dito que ele e Six tinham “uma grande afinidade”, após a acusação afirmou ao “NRC Handelsblad”: “Six revelou a sua verdadeira natureza. Agora sei que ele consegue mentir.” E declarou terminada a amizade entre ambos.

Quando Six e eu nos voltámos a encontrar em outubro, a sua atitude era de desafio. Ele tem um longo cabelo negro que lhe cai pela cara abaixo como uma cortina quando se irrita. Põe o cabelo no lugar com uma mão enquanto argumentava o seu caso. Insistiu que Sander Bijl apenas estava a tentar lucrar com o seu próprio sucesso. “Quando Dan Brown escreveu ‘O Código Da Vinci’, teve todo o tipo de processos. Com franqueza, tenho a sorte de só ter um tipo atrás de mim”, disse. Rejeitou a minha sugestão de que a sua fixação em Rembrandt tinha distorcido o seu julgamento profissional. Nem sequer aceitava a prova aparentemente inequívoca de que Bijl tinha reparado no retrato como um possível Rembrandt por conta própria. E manifestou amargura por uma conspiração alheia, motivada, segundo ele, por inveja e ganância, ter manchado o que devia ter sido o seu grande avanço pessoal e profissional, obscurecendo um feito sem precedentes: “Na história da humanidade, ninguém jamais descobriu dois Rembrandts.”

A CAUSA DA ARTE

Não obstante o seu declínio no mercado e nos currículos universitários, a arte dos velhos mestres holandeses mantém grande atração popular. O sucesso ao longo dos anos do livro e filme “Rapariga com Brinco de Pérola” e do romance de Donna Tartt “O Pintassilgo” — que tem no centro uma pintura do artista holandês do século XVII e está agora a ser passado a filme — são refletidos em número de visitantes em exposições de museus. Desde que o Rijksmuseum e o Mauritshuis reabriram após renovações há uns anos, cada instituição viu os seus visitantes mais ou menos duplicarem. “Nos mestres antigos, acho que a arte holandesa é muito mais abordável do que, digamos, a arte religiosa italiana ou o barroco excessivo”, diz Ronni Baer, então curadora do Museu de Belas-Artes de Boston, para explicar a sua popularidade. “Toda a gente pode compreender uma natureza-morta ou um interior.”

Se alguns no mundo dos mestres antigos holandeses, cientes de que essa arte é popular entre as pessoas comuns e esperando reverter o declínio na academia e no mercado, aplaudiram Jan Six quando ele fez as suas descobertas, foi certamente porque o viam como um jovem e atraente defensor da causa. Ele tem o pedigree, claro. Mas além disso capta profundamente o que torna especial essa arte. Ao afastar-se dos temas estritamente religiosos e destacar o mundo à sua volta — naturezas-mortas, paisagens, retratos — os pintores da época criaram obras que são janelas para quem somos. Quem dedica a sua vida a esse campo fá-lo com um sentido de devoção e trata-o como uma causa. “Temos de lutar pela importância da arte holandesa”, diz Emilie Gordenker, diretora do Mauritshuis, residência tanto da “Rapariga com Brinco de Pérola”, de Vermeer, como de “O Pintassilgo”, de Fabritius. “Temos de assegurar que as histórias destas pinturas ainda importam.” Algumas pessoas de topo na área — diretores de museus, curadores, académicos — manifestaram-se desiludidos com Six após a sua débâcle, embora nenhum tenha querido discutir isso em on. “É uma coisa muito triste, pois as pessoas já suspeitam que os negociantes de arte seja traiçoeiros”, explica um. “Posso-lhe dizer que algumas pessoas falam de Six como Ícaro.”

Um dealer disse que Six, ao lidar com a controvérsia, tinha cometido um erro típico da juventude. “Devia ter agido depressa para resolver o assunto tranquilamente.” Mesmo que achasse ter razão, sugeriu o dealer, o mais prudente teria sido fazer um acordo para preservar a sua reputação. “Este negócio baseia-se inteiramente na confiança”, continuou o dealer. “As pessoas têm de confiar em nós — e na nossa pintura.” Para sublinhar o ponto, o dealer contou-me que tinha perguntado a um comprador proeminente se ele queria que lhe arranjasse um preço para um dos quadros que Six tinha descoberto, mas o comprador respondeu: “Não com essa controvérsia à volta dele.”

No mundo mais vasto, porém, as controvérsias desaparecem. Da última vez que falei com Jan Six, em fevereiro, ele estava com uma disposição totalmente diferente. Para comemorar o 350º aniversário da morte de Rembrandt este ano, o canal holandês NPO pediu-lhe que gravasse uma série televisiva em cinco partes na qual Six passeia por ruas onde o pintor viveu, descansa em frente ao edifício em que ele foi à escola e divaga perante várias obras-primas. É Six a fazer o que faz melhor: comunicar a sua paixão, desta vez a uma audiência muito ampla, o que é novo para ele. “Há centenas de pessoas a ver-me na televisão e a gostar”, diz. “De repente, todos os tipos de pessoas me contactam. Algumas têm um velho quadro que querem que eu veja. Uma mulher telefonou-me há pouco. Diz que tem 75 anos e que a sua irmã gémea é louca por Rembrandt. Perguntou-me se havia maneira de eu passar no seu almoço de aniversário e falar sobre Rembrandt durante dez minutos. Tão querido. Claro que vou! Deu-me um grande estímulo.”

Também lhe deu alguma distância em relação à “bolha”, como ele chama à elite da arte, permitindo-lhe começar a ultrapassar o seu ano ao mesmo tempo emocionante e penoso. “Foi épico e fantástico”, diz, “e a seguir tudo mudou”. “Percebi que estar obcecado com um pintor não é necessariamente uma coisa boa. Mas claro que ainda estou.”

Se por acaso forem passear no centro de Amesterdão, há um local de onde é possível ter contacto visual com Jan Six — o Jan Six original, quer dizer. Dentro da mansão Jan Six, o seu retrato está situado numa posição que permite, esticando um pouco o pescoço, vê-lo do passeio em frente: numa sala um andar acima, olhando para nós lá em baixo. Jan XI gosta de falar sobre como Rembrandt tratava os olhares. Este, do seu antepassado e homónimo, parece girar num remoinho de melancolia, uma consciência madura e cansada das frustrações e limitações da vida humana.

Foi essa a epifania que Jan Six XI teve em adolescente ao olhar para o retrato do seu antepassado, que o lançou em busca da sua própria identidade, distinta da dos seus predecessores: que alguém de há três séculos e meio podia, com tinta numa tela, expressar a essência humana de uma forma que permanece completamente inteligível hoje. Que talvez a identidade, com todas as suas falhas e inseguranças, os seus flashes de intuição e reservas de empatia, individual como é, ao mesmo tempo seja universal.

Tradução Luís M. Faria

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