A cultura da palavra
Sobre “A Mesa Está Posta”, o novo livro de Jorge Silva Melo que é muito mais do que uma obra de notas e subsídios para a história do teatro, dos anos 60 para cá
Sobre “A Mesa Está Posta”, o novo livro de Jorge Silva Melo que é muito mais do que uma obra de notas e subsídios para a história do teatro, dos anos 60 para cá
Historiador, diretor da Biblioteca Nacional
A Mesa Está Posta” (Livros Cotovia, 2019) é uma compilação de notas, prefácios, apontamentos, ensaios, historietas e muitas outras coisas. Para a gente do teatro, o novo livro de Jorge Silva Melo é uma memória do que aconteceu, desde a Segunda Guerra Mundial para cá. Em cima e à volta dos palcos, em Portugal e por essa Europa fora, de Paris a Berlim, de Avignon a Edimburgo. Disse-o Lia Gama, na apresentação do livro nos Artistas Unidos, no Teatro da Politécnica. E é claro que se encontram no livro passagens melancólicas acerca do que foi e já não é. Sobretudo quando o autor fala da sua adolescência e das suas primeiras idas ao teatro e ao cinema. Ai a nostalgia... para virar o autor contra si próprio.
Mas, para mim, o livro é muito mais do que uma obra de notas e subsídios para história do teatro, dos anos 60 para cá. Gostava de falar dele como uma montagem, composta por vários fragmentos, um laboratório da escrita e da palavra, no qual se põem à provas instrumentos capazes de dar voz à vida. Às nossas vidas, à dor e ao amor, à consciência cívica e aos modos de resistência às ortodoxias e às ideias feitas. Tudo por uma educação crítica escorada no uso da razão, que quer entender o mundo, os mundos todos. Ao mesmo tempo que torna os sentimentos, da dor ao amor, transparentes.
Gostava de conseguir escrever sobre tudo isso e sobre o modo de Jorge Silva Melo o fazer. Gostava, também, de lhe saber copiar a cadência, repetindo-lhe as pausas e as marcações, evitando as cacofonias e arriscando na oralidade (como ele fez enquanto a Lia Gama falava). Gostava, ainda, de continuar a escrever como ele faz neste livro, tão centrado na palavra e na vida, que mais parece um mar de referências e uma galeria cheia de gente. Mas sei que não o saberia fazer, sem recorrer a constantes citações do livro, o que transformaria o meu texto num autêntico pastelão — produto de um historiador que a academia estiolou, por há muito se ter esquecido do que são palavras e vidas, para poder tratar os livros como fontes. Que Belzebu me proteja de cometer tamanha injustiça em relação a este livro enquanto montagem.
É que, entre o que gostava de escrever sobre o livro de Jorge Silva Melo e aquilo que sei fazer, a distância é enorme. E, como sei que, em muitos casos, mais vale deixar cada macaco no seu galho, prefiro identificar uma ou duas das suas ideias. Pois nelas encontro a força de argumentos principais, que se confundem com a vida do seu autor. Refiro-me à sua conceção de cultura. Descompartimentada, no mínimo. Mas, também, comprometida politicamente, até aos ossos. E tenho, também, presente a sua perceção das mudanças que aconteceram e que se continuam a dar. A ponto de que, se as nostalgias da memória são o diacho do livro, confundindo-se à primeira vista com um registo mais ou menos lamechas acerca do passado, a verdade é que os testemunhos e análises que nele se encontram dão conta de muitas outras texturas temporais.
Foi como leitor de livros, espectador de filmes, peças teatrais e concertos que tudo começou, em miúdo. O Liceu Camões, onde Mário Dionísio ensinava, deu-lhe as bases para compreender o mundo e atuar. Em casa, o pai estabelecia as prioridades que a irmã mais velha, tão sua amiga, já soubera aproveitar. Veio, depois, a Faculdade de Letras, as tertúlias dos cafés, as conversas tarde fora e noite dentro. As partidas e as chegadas. Inglaterra, Alemanha e França. Por vezes, ia e vinha, mas também se deixou ficar lá por fora. A trabalhar e a resistir. Mas o que se fazia na estranja era, muitas vezes, objeto de tradução. Trabalho duro, este último, de apropriação, recriação e de respeito pelas intenções dos autores, logo, de fidelidade à versão original. A determinar conhecimento de várias línguas: a nossa e a deles. Sempre a dar-lhe, na bigorna da linguagem.
Do percurso acabado de insinuar, necessariamente incompleto, centrado num enorme domínio da linguagem, já tinha falado nessa sua outra compilação do mesmo género intitulada “O Século Passado” (Livros Cotovia, 2007). Um percurso, aliás, que só por abstração pode ser considerado individual. Tal é a generosidade nas alusões aos outros que a vida de Jorge Silva Melo parece sempre cheia de outras gentes. A melhor das imagens é, aliás, a das mesas “de muita mas mesmo muita gente, dez, doze pessoas”, no Monte Branco, quando estava bom tempo, e no Monte Carlo, quando fazia frio. À conversa, com piadas à mistura e trabalho sobre livros, editores, contratos, traduções, cinema e teatro. A Luiza Neto Jorge era, então, das poucas mulheres a aparecer. Era o que acontecia, ali pelo final dos anos 60 e, pelo menos, no começo dos anos 70.
Existe, porém, uma outra maneira de se pensar o mesmo percurso. Inscrito em vários espaços, todos urbanos, porque Jorge Silva Melo não gosta nada do campo com as suas vaquinhas e exaltações da natureza. Prefere Lisboa. Por isso, ao lê-lo, atravessamos a Avenida, do Rossio aos Restauradores, subimos ao Saldanha ou aos cafés da Estados Unidos, deixámos para trás as Picoas, ou, numa outra direção, descemos da Graça cá para baixo, vamos da Artilharia 1 ao Príncipe Real. E sentamo-nos na Parisiense, esquina do Largo Camões com a Rua do Alecrim (vulgo, a Porcalhota), ignorando a Leitaria Trevo ou a mais fugaz Carsédia, na Rua da Misericórdia.
Mas não são só os percursos no tempo e no espaço que marcam este livro. Arriscaria dizer que é o gosto pela palavra e o trabalho sobre a língua, num confronto donde não está excluída a cultura visual e musical, que parece tudo querer unificar. Estou mesmo convencido que este livro demonstra, de todas as maneiras, que Jorge Silva Melo tem de ser considerado primeiro um escritor e, só depois, um encenador, um homem de teatro. Explicando-me melhor: é a prioridade dada à palavra e ao registo escrito que unifica a ideia de cultura, não como uma conceção abstrata ou uma ideia que procede por áreas de especialização — como fazem os arrumadores e especialistas da cultura — , mas como um trabalho conjunto de conhecimento, realização e intervenção na vida da cidade. É, aliás, esta preocupação pela polis que impõe a política, como uma prática a tempo inteiro. Sem tréguas, insinuada mesmo no mais pequeno pormenor.
A recusa do bem arrumado das divisões de cultura, a complacente aceitação das especialidades (elas próprias modos de institucionalizar as listas de especialidades e subespecialidades), a incapacidade livresca de se pensar e dar sentido à vida e de atender ao trabalho dos que sofrem (como sucede com os que são obrigados a partir, a emigrar ou a exilar-se) e dos que conseguem mesmo a custo realizar-se (como tantos atores), tudo isto faz parte da ideia de cultura que este livro consegue transmitir.
Que se desenganem, por isso, aqueles que pretendem limitar o trabalho de Jorge Silva Melo ao estatuto de encenador. Em “A Mesa Está Posta”, o homem de teatro afirma-se como escritor, um criador de mundos, a começar pelo seu. E não são só as cerca de cem entradas de Jorge como autor, no catálogo da Biblioteca Nacional, que confirmam a relevância do seu trabalho sobre a escrita e o lugar que merece ocupar na literatura portuguesa. Uma relevância determinante, esquecida por essa legião de arrumadores que se dedicam à cultura, arrumando-a por géneros, respeitando as divisões por especialidades, dividindo, tantas vezes artificialmente, o que é português do que é estrangeiro, por não saberem apreciar o que é o trabalho de tradução, e conformando-se com tudo o que é imposto pelas instituições oficiais e não só (como sucede com essas feiras de Guadalajara, de triste memória, com que nos continuam a atormentar e das quais Belzebu nos livre).
A provocação irritada e a denúncia feroz, própria de quem diverge e critica, serão sempre as únicas armas de combate frente ao marasmo dos que se contentam em reproduzir o estabelecido. Mais: não será a mesma relevância da palavra do escritor Jorge Silva Melo que o torna, entre nós mas também, fora, um encenador com características únicas. Talvez, por isso mesmo, se possa considerar Jorge Silva Melo como um caso raro, entre os encenadores, por ser escritor; o que equivale a nomeá-lo como o mais escritor de todos os encenadores. Reconheça-se, sem com isso se cair em encómios pífios. É que Jorge Silva Melo, além de saber fazer e dirigir todas as vozes, do palhaço ao coro do teatro grego, acrescentou-lhes a sua própria, fundada na escrita.
A PERCEÇÃO DAS MUDANÇAS
Do mesmo modo que, no Largo Camões, em Lisboa, a Parisiense já não existe, tendo sido abafada pela nova Lisboa pipi, dos hotéis de charme e não só, de que o livro fala, também se registaram mudanças. Sendo algumas delas bem graves. Nostalgias à parte, o que mais irrita Jorge Silva Melo é o modo como a cultura do espetáculo se impôs. Aliás, é num texto sublime, relativo às alterações do festival de teatro de Avignon, que se encontra uma espécie de genealogia desta mudança que tudo parece ter contagiado. O teatro deixou de ser vida e literatura, logo, modo de intervenção na vida da cidade, discurso político pleno, capaz de ocupar um dos seus espaços públicos por excelência. O teatro passou, simplesmente, a ser dominado pelo encher do olho dos efeitos visuais, mais ou menos espetaculares.
Ao tornar-se num mero espetáculo, o teatro — e por arrasto ou contágio toda a cultura — acabou por se superficializar. Transformou-se num foguetório. Numa tecnologia da comunicação. Numa coisa superficial. Acabaram as dúvidas, as críticas secaram, a dissensão morreu. As vidas, com tudo o que implicam de intensidade e de representação, deixaram de ter importância, pois o que passou a contar foi a política dos efeitos e das luzes. Haverá, por isso, alternativa à nostalgia — outra vez ela, sempre ela — frente ao cenário que imbeciliza as massas, as pessoas do teatro e a gente da cultura?
O processo no qual as lógicas dos espetáculos e dos festivais (poder-se-ia também falar das comemorações) massificaram tanto o teatro como a cultura impôs-se a par de outros dois. Por um lado, assistiu-se ao desaparecimento de públicos capazes de participar e, por isso mesmo, de intervir na vida política. Por outro, o Estado e os poderes públicos — reproduzindo gestos rituais e cerimoniais que afundam as suas origens nos meios eclesiásticos, que deles se serviam para a sua própria propaganda e justificação — impõem as suas categorias, as suas divisões institucionais, sempre bem arrumadas. Lá vêm, outra vez, os arrumadores...
A nostalgia em relação ao que se passou — explica Jorge Silva e Melo — ganha, então, outros contornos. Ao denunciar o modo como as novas lógicas do espetáculo se impõem e tudo dominam, o livro insiste no que se passava, quando a cultura e o teatro equivaliam a um ato lúcido de resistência e de subversão, tantas vezes enviesado. Em suma, dificilmente este livro pode ser tomado como repositório de uma qualquer nostálgica lamechice.
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