Conan Osíris é mesmo um artista excepcional? Um “sim” e um “não”
tiago miranda
Vitória no Festival da Canção abre discussão sobre a sua qualidade para representar Portugal. A realizadora de rádio Inês Meneses responde “sim” à pergunta do título e a ex-ministra da Cultura Gabriela Canavilhas o oposto. Os depoimentos foram recolhidos por Mário Rui Vieira
Sim, é um artista excecional. Por Inês Meneses
E aconselho, em jeito de prelúdio deste texto, a audição da maqueta caseira de António Variações a cantar ‘Quero é viver’. Da maqueta de Variações emerge um som artesanal, como nos tempos em que nos ofereciam um xilofone e com ele tentávamos fazer música... Foi o que ele tentou fazer. E como foi longe na sua habilidade que lhe crescia das mãos e subia até à voz. Eu sou do tempo em que Variações apareceu acompanhado por alguém vestido de comprimido num programa de Júlio Isidro. Vimos todos lá em casa. Estava ali qualquer coisa.
De repente e mergulhando neste imaginário onde apre(e)ndi a vida, lembrei-me de “O Mundo Misterioso”, de Arthur C. Clarke. Arrisco dizer que o protagonista deste texto estará longe de saber quem terá sido o curioso investigador Clarke que a cada semana me fazia acreditar que havia muito mais além do óbvio. No fundo, fazia-me acreditar que havia sempre ali qualquer coisa. Fossem os estranhos círculos desenhados num campo deserto ou um ovni avistado não muito longe do sítio onde Clarke apresentava mais um programa. Houve um ovni em Portimão. Já tinha havido antes, na primeira eliminatória do Festival da Canção, que como sabemos ganhou outro fôlego na edição de 2017.
Chego por fim ao nome de Conan Osíris que é o Tiago do Cacém, como António foi de Fiscal, freguesia de Amares, distrito de Braga. Atrevo-me a comparar Conan a Variações? É cedo para concluir, mas há aqui qualquer coisa e a frase não vem de Arthur C. Clarke mas foi corroborada por gente muito respeitável como o compositor Rodrigo Leão, o musicólogo Rui Vieira Nery ou o apaixonado pela vida Miguel Esteves Cardoso.
Não conheço Conan Osíris, e isto é importante que se diga, num meio tão pequeno onde todos praticamos esta saudável promiscuidade de nos conhecermos e passarmos a música uns dos outros. Acontece. E quero acreditar que é sempre por mérito. Ouvi Conan Osíris pela primeira vez em dezembro de 2017 quando saiu ‘Adoro Bolos’. Deixem-me servir-vos um bocadinho da letra:
Às vezes nem a noite, nem Deus/ Nem diabos, nem ateus/ Nem a terra, nem os céus querem resolver/ O meu problema/ Às vezes nem o dia, nem a luz/ Nem o sangue, nem o pus/ Nem o fogo, nem a cruz querem resolver/ O meu problema/ E o problema é/ Eu adoro bolos.
Eu não adoro bolos, mas dei por mim a pensar: de onde vem esta voz? Parecia vir do além que rima com Cacém. Qualquer tom provocatório deste texto é para ser levado a sério. Acredito que a vida deve ser uma eterna provocação até a morte levar a melhor. Em vida temos de a atiçar.
Conan Osíris que tem meio mapa-múndi na voz sabe que resulta ser ele próprio, mesmo que tudo não seja mais do que canções estilhaçadas num puzzle cheio de peças perdidas. Parece canto cigano? Parece. Parece eletroguna (género que acabo de inventar onde se cruza uma eletrónica manhosa com um tipo da rua)? Parece. Parece tudo. Lembra Variações? Lembra. É a mesma coisa? Não. Há muita coisa ali. Há um mundo que não foi pensado: é o mundo dele, e eu, numa era em que tudo é postiço, continuo a acreditar que a essência de cada um pode prevalecer sobre as camadas de gel que nos disfarçam as unhas enfraquecidas. Conan Osíris foi a minha revelação de 2018 quando fiz a lista dos melhores do ano.
O tempo ou a longevidade (como lembrava há dias, Tozé Brito) será o melhor barómetro para avaliarmos se Conan faz história. Nem ele próprio pensa nisso. Precisamos de provocação e de quem nos desafie. Precisamos muito de quem nos escangalhe a moral e a moldura. Do Cacém a Telavive, como um dia, de Braga a Nova Iorque.
Realizadora de rádio na Radar
Não, não é um artista excecional. Por Gabriela Canavilhas
Mas a questão principal é, afinal, sobre a pertinência da canção que irá representar Portugal num concurso internacional. A eventual excecionalidade do artista, o seu passado e percurso pessoal não contam aqui para nada neste contexto específico. Tudo se esfuma, porque apenas conta uma canção, aquela de que ele será a bandeira, dele próprio e do seu país: a canção ‘Telemóveis’.
O que mais me surpreendeu nesta escolha foi que a votação maciça que ‘Telemóveis’ recebeu do júri e do público demonstrou que as mesmas pessoas que adoraram ‘Amar pelos Dois’ de Luísa Sobral foram as mesmas que este ano se deixaram enlevar, com o mesmo entusiasmo, por esta canção fusão fado-berbere-tecno. Acho mesmo que essa coincidência de gostos merece uma reflexão, a sério, porque estamos afinal perante universos completamente opostos em termos de música e de construção musical. O único fator que têm em comum — e mesmo assim, de planetas diferentes — são os intérpretes, Conan Osíris e Salvador Sobral: ambos são incomuns, excêntricos à sua maneira, peculiares (embora um seja um cantor excecional e o outro não). Será que a excentricidade de ambos foi o clique que catalisou o entusiasmo das multidões nos dois casos? Porque a música não pode ter sido. Quem compreende a natureza musical superior de ‘Amar pelos Dois’ não pode aderir do mesmo modo a ‘Telemóveis’. O que me leva à questão do confronto entre a essência da canção e a apresentação da canção: o espetáculo, o show, a performance, o happening — aquilo que alberga o apetite do showbiz, da imagem, dos efeitos, da máscara que caracterizou a Commedia Dell’Arte e que ajudam à construção da personagem no palco.
Michael Jackson foi exímio nos adereços e, no entanto, não acrescentou um milímetro de qualidade por isso — já lá estava tudo. Uma canção precisa de valer por si própria antes de tudo o resto. Basta-lhe uma estrutura relativamente simples, que deve conter o equilíbrio adequado entre o que se quer transmitir e o que nos quer deixar intuir. O toque de génio é fazer da simplicidade cumplicidade: torná-la parte de todos nós. Aí, aguentará todos os suportes, vestimentas e rituais, tal como as canções de Cole Porter, Beatles, Dylan, Bernstein, Brel, Chico Buarque, Vinicius, Sérgio Godinho, José Afonso e tantos outros. Claro que os caminhos na música são diversos e as linguagens múltiplas. Desde 1982 que Laurie Anderson em ‘O Superman’ e ‘Home Of The Brave’ já explorava o universo tecno na canção, mas se analisarmos com atenção, o rigor de cada pormenor — na forma, no equilíbrio, na letra — fazem do seu trabalho uma obra de estilo que remete ‘Telemóveis’, mais de 30 anos depois, para a categoria de esboço après la lettre.
Porque é que isto é importante? Dirão muitos que é apenas o Festival da Canção, que não interessa nada. Bom, para já, é pago por todos nós, por outro lado representa o país num certame seguido por milhares de jornalistas e milhões de pessoas no mundo inteiro. Por mim, interessa-me porque me dá uma leitura social e cultural dos portugueses. E tiro conclusões, como por exemplo, que poucos ligaram à mensagem de Salvador Sobral em 2017: “O que interessa é a música, a emoção, a verdade da canção”. E ainda que a voragem da novidade e do exotismo inquietam os consumidores que sentem precisar de renovação constante, seja ela qual for, desde que seja diferente. A diferença comanda. A essência não interessa.