Mayra Andrade: “Sinto-me mais forte do que há 10 anos”
A viver em Lisboa há três anos, a cantora cabo-verdiana sente-se bem acolhida numa cidade “cada vez mais aberta”. Acaba de lançar “Manga”, um álbum que reflete a sensualidade da sua autora
A viver em Lisboa há três anos, a cantora cabo-verdiana sente-se bem acolhida numa cidade “cada vez mais aberta”. Acaba de lançar “Manga”, um álbum que reflete a sensualidade da sua autora
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“Manga”, título do seu novo disco, é uma palavra muito evocativa. Evoca cheiro, tato, cor... foi por isso que a escolheu?
Escolhi-o porque é a minha fruta preferida: é a rainha das frutas tropicais e consome-se de formas diferentes em diferentes estádios da sua maturidade. E é uma metáfora bonita para a feminilidade da mulher que hoje sou. Desde o último disco, passaram-se uns quantos anos e numa mulher [isso representa] transformações muito profundas. Eu sinto-me muito mais forte hoje do que há 10 ou 20 anos.
Nasceu em Cuba e cresceu entre África e a Europa. Aos 17 anos estava a viver sozinha em Paris. Isso ajudou a tornar-se independente?
Sinto que a minha vida foi uma preparação para este momento. Comecei a viajar aos 6, mudava de país de dois ou dois anos... perdia os amigos que tinha e tinha de fazer outros e aprender línguas diferentes. Estudei num colégio interno, o que ajuda muito à independência de um adolescente. Aos 17 anos, sentia-me preparada para estar sozinha. E queria estar! Não queria vir para Lisboa, queria ir para um sítio onde não me sentisse tão em casa. Mas reconheço que não saber o que nos espera dá-nos muita força e coragem. E, apesar de todas as dificuldades, também tive muita sorte. Tive oportunidades lindas. O meu primeiro concerto foi na Cidade da Praia, a minha cidade, em 2000. Há 19 anos
Parece-lhe que já passou esse tempo todo?
Passou rápido, mas ao mesmo tempo tenho a sensação de que foi há uma vida. É estranho. Eu sou a mesma; se calhar hoje sinto-me mais leve e mais feliz, mais bonita. Mas quando penso na estrada que percorri, literalmente — fiz muitos concertos, muitos quilómetros; é muito tempo sem chão e sem casa, sem rotina... São coisas que nos marcam, positiva mas também negativamente.
Diz que, quando anda muito tempo na estrada, se sente mais melancólica. Como é que isso funciona?
Funciona na perda de referências. Apesar de gostar de festa, sou muito caseira. Gosto de acordar em casa, de ter alguma rotina, porque a minha vida foi sempre uma ausência de rotina. Quando começo a ficar melancólica, sensível, e por dá cá esta palha me emociono, significa que é hora de voltar para casa por uma semaninha.
Em 2018 atuou na final da Eurovisão, com Branko, Sara Tavares e Dino D’Santiago. Como foi atuar para tanta gente?
Foi muito bonito. Quando fazemos coisas juntos, somos como crianças que se juntam num parque de diversões. E muita gente me disse que se sentiu muito orgulhosa por ver a cara dessa Nova Lisboa, que é uma Lisboa mestiça, ligada à modernidade e à abertura para o mundo.
Sente que Portugal está mais aberto à música de artistas de origem africana?
Quando cheguei, há três anos, senti que estava a ser recebida como uma artista nacional. Pelo menos em Lisboa, sinto que as pessoas estão tão habituadas à música lusófona que já a consideram parte da música nacional. E isso fez-me sentir bem, porque precisava de colo e de casa, e de sentir que não sou um produto exótico, reservado a um nicho.
Com o Branko e o Kalaf, escreveu ‘Reserva Pra Dois’. Imaginou que a canção viesse a ter tanto impacto?
O Branko enviou-me um beat, mas quando cheguei ao estúdio disse-lhe: “Vou ser honesta, o beat que me mandaste não me inspirou nada, não me veio melodia nenhuma e eu tenho facilidade em criar melodias.” Ele abriu um dossiê, começou a tocar outros beats e, ao primeiro segundo desta, eu disse: “É esta!” Eu e o Kalaf escrevemos o texto e a canção nasceu muito naturalmente. Sabia que era linda, mas não imaginava que entraria tão fundo no coração das pessoas.
Escreve várias das canções do seu álbum. Tem facilidade em criar?
Não sou uma compositora muito assídua, porque faço um milhão de coisas ao mesmo tempo e acabo por ser um pouco indisciplinada. Quando tenho tempo, quero olhar para o teto, ver Netflix, comer pipocas. Preciso de reencontrar a minha rotina para pensar: “OK, repus as energias, as minhas emoções estão outra vez num nível bom, já posso começar a escrever.”
Gravou o disco entre Paris, onde viveu, e a Costa do Marfim — porquê neste país?
Porque um dos produtores é o 2B, produtor e beatmaker da Costa do Marfim, tal como alguns dos músicos, miúdos de 20 e tal anos que estão sediados lá. Eles fizeram algumas intervenções nas demos que me permitiram dizer: é com eles que quero trabalhar. Com eles e com o Romain Bilharz, que coproduziu. Foi um trabalho de laboratório muito intenso; quis encontrar o caminho entre o ADN das canções, a minha essência cabo-verdiana e essa onda africana contemporânea que está a acontecer. Gosto de definir o “Manga” como um disco afro contemporâneo.
Tem alguma canção favorita?
Não dá! [risos] Compus 8 das 13 músicas e as que não escrevi também são minhas. Quando as recebo e escolho, é porque as torno minhas. Posso falar de uma que é diferente: ‘Plena’. Foi a última que escrevi para o disco e é superíntima. Fala de um vazio que às vezes nos invade e de como preenchemos o vazio com mais vazio, o que nos deixa ainda mais vazias. E sobre a solidão e os sonhos nos quais queremos continuar a acreditar e a esperança a que não sabemos o que fazer... É uma música que escrevi quando me doía muito isso e resultou num grito das entranhas de que gosto particularmente.
Cantou recentemente na Gulbenkian, num ciclo sobre as canções que mudam as nossas vidas. Quais as suas?
Uma que me vem à memória é ‘Tigresa’, do Caetano Veloso, que foi das primeiras músicas que aprendi a cantar, devia ter uns 6 anos. Cantei-a com o meu primo no violão e lembro-me da sensação de prazer. Há um momento em que as coisas vibram de tal forma que cantar é um prazer físico. Também escolhi ‘Je Danse Avec L’ Amour’, o dueto que gravei com Charles Aznavour em 2005, antes de lançar o meu primeiro disco. E foi inesquecível. Marcou-me pela sua obra, pelo ser humano: superdistingué, muito cavalheiro e generoso. E cantar com ele cara a cara, numa cabine, como se fazia antigamente... mal percebia porque é que a vida me estava a dar essa oportunidade.
Ainda se interessa por Psicologia?
Durante muitos anos pensei estudar Psicologia Clínica, mas a música arrebatou-me e o meu pai disse-me: “Para que é que tu queres um diploma de psicóloga? Nunca vais exercer, tu nasceste cantora.”
Geralmente os pais querem que os filhos tirem um curso...
A minha mãe é mais tradicional, mais pela segurança. O meu pai sempre achou que era um desperdício de tempo eu pensar exercer outra profissão além de cantora.
Até ficava frustrada, em criança, quando ia a concertos e os artistas não sabiam que era ‘colega’ deles...
Muito frustrada! Era revoltante. Eu pensava: “Vocês são artistas mas não sabem que eu também sou!” Com 3 ou 4 anos já fazia música, sem fazer. Batia nas coisas e tinha uma guitarrinha, um tambor, uma flauta... Reunia os meus amiguinhos no quarto e fingíamos que era uma orquestra. Obviamente eu era a chefe da orquestra. [risos] Sempre fui muito musical, mas era artista de forma mais global. Senti muito rápido que bailarina não seria, mas dizia que queria ser cantora, atriz e bailarina.
Refere muitas vezes o desejo de mudança. Evita fazer aquilo que sabe que já domina?
Quando comecei a cantar, em Cabo Verde, com 14 ou 15 anos, havia quem me dissesse: “Tu cantas tão bem, não inventes muito. Canta uma morna como ela deve ser cantada e fica por aí.” Aquilo revoltou-me tanto! Pela minha personalidade, tenho a tendência a fazer o contrário [do que me dizem]. O meu pai diz que, das filhas dele, eu sou a verdadeira rebelde. Ele não gosta nada deste piercing [no nariz], e quando as pessoas me dizem: “Quando é que vais tirar o piercing?”, ele diz: “Calem-se, senão ela não tira o raio do piercing!” Estes entraves psicológicos foram um estímulo para mim. Confortaram-me na ideia de que a vida que eu tinha tido era suficientemente variada e rica para eu ter a obrigação de trazer algo diferente para a música de Cabo Verde. Essa sempre foi a minha preocupação e é bonito ver que, hoje, o meu público já não espera que eu faça algo previsível.
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