“The Shining”, dirigido em 1980 pelo icónico Stanley Kubrick, tornou-se rapidamente num objeto de culto para os amantes do cinema — à semelhança, de resto, de praticamente toda a obra do realizador norte-americano. A história de um casal e do seu filho menor que se transfere para um hotel colossal numa estância de férias prestes a encerrar no inverno – e os acontecimentos que aí vão ter lugar num dado período de tempo – logo alcançou assinalável sucesso junto de crítica e público.
O filme, adaptação livre de um romance homónimo de Stephen King editado três anos antes, vive muito da intensa atmosfera psicológica criada pela realização de Kubrick e pela solidez dos desempenhos de um elenco reduzido mas não menos notável. Jack Nicholson deixou marca na sua interpretação de Jack Torrence, um aspirante a escritor profissional, alcoólico em recuperação, que vislumbra no isolamento do hotel e no seu temporário cargo de zelador uma possibilidade de aliar tranquilidade e inspiração para um novo romance.
Shelley Duvall é a compreensiva, paciente e aparentemente frágil mulher que tenta segurar as pontas de um casamento porque acredita nele e na possibilidade de um regresso à normalidade familiar.
Danny Lloyd, então com apenas seis anos, teve em “The Shining” o seu único papel no cinema, mas a sua interpretação como a criança possuidora de um dom muito particular e a influência que tal dom tem no desenrolar da trama garantir-lhe-iam um lugar na galeria do cinema de terror psicológico.
O filme foi objeto de inúmeras análises e teses que procuraram significados vários nas entrelinhas da obra de Kubrick e que analisaram em detalhe o olhar do realizador nesta obra em concreto. O exemplo mais evidente desta quase obsessão analítica é “Room 237”, um curioso documentário assinado em 2012 pelo pouco conhecido Rodney Ascher e que chama para título o local do Overlook Hotel onde têm lugar os eventos mais perturbadores. Estes e outros são apresentados e dissecados ao longo da hora e meia de um documentário que apresenta teses para todos os gostos e que, por causa desta miríade de hipóteses sobre os alegados propósitos de Kubrick ao longo do filme, tornam o seu visionamento oscilante entre o convite à reflexão e à diversão.
Para os fãs de Stanley Kubrick no geral e de “The Shining” em particular, este “Room 237” merece visionamento obrigatório, quanto mais não seja para perceber como a mente humana pode entabular as teses mais mirabolantes quando se sente obrigada a explicar o que não é óbvio. Já o autor da obra, que nunca apreciou a adaptação feita por Kubrick (aliás, Stephen King faria em telefilme a sua própria versão de “The Shining” através do realizador Mick Garris e prepara-se para apresentar outra com a sua assinatura) disse a propósito de “Room 237”: “As pessoas lembram-se de coisas que nem lá estão...”
Não menos dissecada do que a obra de Kubrick é a de Alfred Hichcock. É mais ou menos ponto assente que as maiores revelações sobre o trabalho do singular realizador britânico foram feitas pelo próprio em conversa com o também notável realizador francês François Truffaut. Ainda assim, eis que o ano findo recentemente nos brindou (ou talvez não) em outubro com “78/52”, um documentário assinado por Alexandre O. Philippe. O propósito do documentarista suíço é escalpelizar a lendária cena do chuveiro que imortalizou “Psico”, realizado por Hitchcock há quase seis décadas.
O título do documentário remete justamente para as 78 tomadas de câmara e 52 planos editados que mostram bem o extraordinário trabalho do mestre do suspense, ainda hoje inigualável no estilo, pessoal e profissional. Mas... serão mesmo necessários 90 minutos para dissecar uma cena de 180 segundos? A resposta seria afirmativa, caso o documentário de Philippe trouxesse mais que uma análise porventura excessivamente detalhada sobre a cena que redefiniu o horror na cultura pop. A recolha de pontos de vista é um tanto ou quanto inesperada: de Elijah Wood a Peter Bogdanovich, passando por Eli Roth ou Guillermo del Toro. O documentarista vai ainda mais longe, ao recolher depoimentos de Jamie Lee Curtis (filha de Janet Leigh) e de Osgood Perkins (filho de Anthony Perkins); o testemunho mais inesperado, contudo, pertence a Marlí Renfro. “Quem será esta?”, perguntará a leitora ou leitor, à semelhança da interrogação surgida na (pobre) mente do escriba. Pois Marlí Renfro foi a “dupla” de Janet Leigh em “Psico”.
Esta e outras curiosidades tornam indispensável o visionamento de “78/52” para os incondicionais de Hitchcock e, naturalmente do filme em causa. Para os outros, este inesperado documentário poderá ser “too much to handle”, ou seja, demasiado detalhado e, por isso mesmo, excessivo numa obra que, à semelhança da anterior mencionada, visa esmiuçar sem trégua o trabalho de dois dos maiores nomes da história da sétima arte.
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