Cultura

O homem que só faz filmes de monstros

O homem que só faz filmes de monstros
FOTO Kerry Hayes/Twentieth Century Fox

Este é o ano da glória de Guillermo del Toro, com um filme 
que já é um êxito e que recebeu 13 nomeações para a próxima edição 
dos Óscares. “A Forma da Água” estreia-se na quinta-feira

G
uillermo del Toro tem uma presença impressionante, não pelos quase metro e oitenta de altura mas pela corpulência — e, sobretudo, pelo sorriso sempre aberto no rosto moldado por uma barba loira que em nada indicia a sua origem mexicana. Parece mais um eslavo, mas é apenas um dos muitos latinos a trabalhar nos Estados Unidos e com sucesso naquilo que faz. Falei com ele durante o último Festival de Veneza, onde o seu mais recente filme, “A Forma da Água”, viria a ganhar o prémio máximo, o Leão de Ouro, iniciando uma trajetória imparável para o êxito. Trajetória que pode levar o realizador e o filme até ao topo dos Óscares, em março — para já, recebeu 13 nomeações da Academia de Hollywood.

As histórias de uma bela e de um monstro parecem estar na moda outra vez. Diria que “A Forma da Água” é uma nova forma de contar essa história-tipo — e com sexo, o que não é tão comum como isso?
Há muitas versões de histórias de belas e de monstros em que o sexo não existe. Do que não gosto é das versões puritanas que conheço. Numa, eles nunca têm sexo, ou, para que haja sexo, o monstro transforma-se em homem, torna-se humano. Noutra, perversa, quase kinky, o sexo domina a pureza, o que é também uma forma muito puritana de abordar a história. Eu tentei contar uma história de amor — eles apaixonam-se e o sexo é uma parte disso. E em vez do monstro se transformar em humano, o monstro faz despertar as origens da bela, provavelmente as suas origens secretas, no fim do filme.

Conhece provavelmente aquele slogan ‘o futuro é agora’. Ao ver este filme eu pensei que, apesar de se situar no passado, o filme é sobre o presente…
… e é…

… e pensei que talvez estivesse a falar sobre ser imigrante, ou pertencer a uma minoria na América dos dias de hoje.
Muito, muito… Eu quis situar o filme em 1962 porque quando se ouve hoje falar em ‘tornar a América grande outra vez’ está a falar-se da América daquele tempo — que nunca existiu. Em 1962, o futuro era idealizado como perfeito, mas foi um futuro que nunca aconteceu. Em 1962, os carros tinham ‘barbatanas’, as cozinhas eram lindas, as mulheres usavam aqueles penteados e aqueles vestidos belíssimos, era tudo automático e moderno — e ao mesmo tempo, em 1962, Kennedy foi morto e Camelot colapsou. De facto nunca existiu, foi nessa época que começou o Vietname… E é nesse instante que um personagem do filme que acreditou naquilo tudo — e que é interpretado pelo Michael Shannon — está em estado de desilusão, quando ele diz que é um tipo decente, e se interroga sobre o que há de fazer e lhe respondem que isso não interessa nada. Mas não é um filme sobre 1962, é um filme que diz que o racismo, o classismo, a intolerância sexual, tudo o que estava vivo em 1962, está vivo hoje — e nunca desapareceu.

Li em entrevistas suas que, em criança e, depois, como adulto, sempre se sentiu um marginal. Está hoje mais marginal na América de Trump?
Continuo a sentir-me um marginal, nunca senti que pertencesse seja onde for. Estou demasiado preso a um género para o cinema enquanto arte, sou demasiado artístico para o cinema comercial, sou um filho da mãe muito estranho… [risos] E estou bem assim. Faço este trabalho há 25 anos e fiz dez filmes. Pude fazê-los com um milhão de dólares e com 125 milhões. Consegui sobreviver. Mas nunca no mesmo lugar. Se não consigo fazer um grande filme de estúdio, faço um filme europeu pequeno. Vou circulando, não me prendo a nada. Vivo em três cidades, Los Angeles, Toronto e Paris. Quando se é um exilado, tem de se inventar um novo país. Adoro San Fernando Valley, adoro guiar em Burbank, adoro a cinemateca de Toronto, escrevi “A Forma da Água” em Paris.

Elisa Esposito (Sally Hawkins) e o monstro que se torna o seu mais do que tudo em “A Forma da Água”

Sente-se sempre um exilado?
Sim, sempre. Há certas coisas que se partem quando se deixa o país onde nascemos e que nunca mais se consertam. Mas está tudo bem, toda a gente tem circunstâncias. O que me importa é que tenho 52 anos, acabei de fazer um filme que me demorou seis anos a conseguir, onde pus o meu salário todo e ainda mais algum para que se pudesse fazer — ou seja, continuo tão irresponsável como quando tinha vinte anos. É isso que importa.

Sente, de alguma maneira, que se está a tornar mais difícil conseguir fazer os filmes que quer, falar da intolerância, da hipocrisia das religiões, dos preconceitos políticos…
… não é muito fácil financiar uma história de amor entre uma mulher e um anfíbio… [risos] Eu não torno as coisas fáceis. Da próxima vez, além de um anfíbio talvez vá juntar um pescador… [risos]. Mas a questão nunca é se é fácil ou difícil, a questão é orgânica. Vejamos: preciso mesmo de fazer este filme? Acho que preciso mesmo de o fazer. Repare: tenho 52 anos, podia retirar-me. Eu visto-me de qualquer maneira, tenho um carro com quatro anos, não tenho uma ilha privada, não tenho um avião a jato, podia retirar-me e ficar a ver filmes de Raoul Walsh, Mervyn LeRoy ou William Wellman o dia todo. E, para mim, seria uma vida boa. Quando faço um filme tem de ser um filme que acho que tem de ser feito. E não interessa se é um filme com robots gigantes a dar pancada em monstros gigantes. Porque há filmes que, se eu não os fizer, mais ninguém os fará.

É verdade que adiou a rodagem do seu próximo filme para trabalhar na promoção de “A Forma da Água”?
No passado, cometi um erro tremendo. Quando terminei “Nas Costas do Diabo”, comecei logo a filmar “Blade II” e devia ter-me dedicado a promover melhor “Nas Costas do Diabo”, que é dos meus filmes favoritos e que pouca gente viu. Não quero que a mesma coisa volte a acontecer agora. Porque se me perguntasse de quais dos meus filmes mais gosto, eu dir-lhe-ia que são “Nas Costas do Diabo”, “O Labirinto do Fauno” e “A Forma da Água”.

É-lhe fácil essa escolha?
Muito fácil.

Porque vê os seus próprios defeitos?
Não. “A Forma da Água” foi dos filmes mais horríveis de fazer. Todos os dias, ao acordar, eu queria enrolar-me e desaparecer. Mas quando se chega ao fim e se vê que o resultado está muito próximo do que queríamos fazer, é um alívio, um bálsamo. Não interessa se os outros concordam. É uma questão da quantidade de esforço investido e da quantidade de recompensa, no fim.

Porque é que foi horrível?
Pela escala, eu quis fazer um filme de 60 milhões de dólares e só tinha 19. Lembra-se do laboratório, do tamanho, dos pormenores? É uma loucura para um orçamento de 19 milhões. E a forma como quis filmar, o tempo que tive, com a câmara sempre em movimento, planos longos coreografados com precisão, não se pode fazer com rapidez. A criatura demorou três anos a construir. E, do ponto de vista meteorológico, tudo o que podia correr mal, correu mal. Chuva, tempestades de areia, acidentes, aconteceu de tudo. Há coisas que eu nem posso contar por causa dos seguros… “O Labirinto do Fauno” também foi horrível.

Este é um conto de fadas, uma fábula — e as fábulas são muito a preto e branco, quer dizer, os maus são 100% maus e os bons são 100% bons. Não gosta de trabalhar na gama dos cinzentos?
É preciso ter muito cuidado nesse ponto, porque, para mim, é muito importante que, a meio do filme, o mau tenha um momento em que está muito, muito, muito vulnerável, um momento em que percebamos de onde é que ele vem. Essa cena é algo que nunca se faria se fosse tudo preto e branco. É um momento de dúvida. Por outro lado, é muito importante para mim abrir o filme com uma cena em que ela se masturba no banho. Portanto, não se trata, jamais, de inocência, mas de pureza. Ela não é um personagem branco. Mas temos de ter contraste. O contraste está na própria natureza das imagens. Se não o tivermos, é tudo negro ou tudo branco. Devo dizer-lhe, contudo, que isto não é uma coisa calculada, é orgânica. O personagem de Michael Shannon, por exemplo, eu sofro com ele. Não preciso de gostar dele, mas sofro com ele. Dentro destes parâmetros, por exemplo, acho que há momentos em que o personagem de Richard Jenkins é muito egoísta. Ou seja, claro que é uma fábula, claro que os personagens são contrastados, mas muito menos do que é convencional.

Que filmes ainda quer fazer?
Não muitos.

Não?
Não. Tenho um apetite limitado quanto ao que quero dizer. Acho que sei mais ou menos quantos, e não são muitos. Porque quero viver…

Sally Hawkins, Guillermo del Toro e Doug Jones numa foto de rodagem

E ver filmes?
E ler. Há tantos livros que quero ler. Tenho para aí uns 2 mil em atraso. E há tantos filmes que quero ver, por ordem, como fiz no último fim de semana em que vi uma série de filmes pré-Código Hays, para observar a evolução narrativa de William Wellman.

Quando diz que sabe mais ou menos quantos filmes quer fazer, é um número ou são histórias?
É um número. E é limitado. Tenho 52 anos, 140 quilos, e penso na mortalidade com grande precisão. Sei que há museus que quero visitar, livros para ler, manhãs em que quero acordar sem nada no horizonte, tomar um café na varanda e ver as pessoas passar. Há décadas que não faço isso, há muitos anos que nem tenho férias. Mudo de país semana a semana. Quero mais equilíbrio entre viver e fazer filmes…

Algum dos filmes que quer fazer é musical? Sinto, numa cena de “A Forma da Água”, uma certa nostalgia do musical…
De certa maneira, este é um filme musical sem ser musical. A maneira como o filme começa, a maneira com a câmara se move e filma os atores, é musical. As primeiras quarenta imagens do filme são coreografadas, como se fosse um musical, apesar de não ser. Gostava muito de tentar um musical completo, mas teria de ter um monstro lá dentro… b

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