No passado, houve quem tivesse admitido a hipótese de Elena Ferrante ser, afinal, o pseudónimo de um homem. E quem, a partir dessa hipótese, tenha ido mais longe e defendido que esse homem era Domenico Starnone, escritor italiano nascido em Nápoles. Mas um artigo publicado pelo reconhecido crítico James Wood na "New Yorker" ("Women on the verge"), em 2014, parece ter vindo pôr um ponto final nesse assunto. "Ferrante poderá nunca mencionar Hélène Cixous ou a teoria da literatura feminista francesa, mas a sua ficção é uma espécie de 'écriture féminine' prática: estes romances que refletem sobre o trabalho e a maternidade, sobre a luta por um lugar onde trabalhar, fora do trabalho da maternidade, refletem necessariamente sobre o êxito da sua própria escrita", escreve o crítico. Numa entrevista ao jornal "Público", o editor Francisco Vale, da editora Relógio D'Água, que tem vindo a publicar os livros de Elena Ferrante em Portugal desde maio de 2014 ("Crónicas do Mal de Amor", que reúne três dos seus romances curtos, entre eles o muito aplaudido "Os Dias do Abandono", foi o primeiro a ser publicado cá), revelou não ter dúvidas de que se trata de uma mulher. "Acho que é uma mulher pela forma íntima e até biológica como fala do feminino."
Numa entrevista conduzida pelos seus editores (Sandra Ozzola Ferri e Sandro Ferri) para a revista literária "Paris Review", Ferrante explicava que decidira escrever sob pseudónimo primeiro por timidez ("só o facto de ter de sair da minha concha aterrorizava-me") e depois porque não lhe agradava a tendência dos media para avaliar os livros consoante a reputação e "aura" dos seus autores, fazendo com que estes se promovessem de uma forma "obsessiva". "É como se a literatura não fosse capaz de demonstrar a sua seriedade simplesmente através dos textos, mas precisasse de credenciais externas", disse a escritora italiana, acrescentando, mais à frente, que escrever sabendo que não vai aparecer garante-lhe um espaço de "liberdade criativa" que, de outra forma, lhe estaria vedado.
Íntima, sincera, despudorada
"L'Amore Molesto" foi publicado em 1992. Seguiram-se "Il Giorno dell'abandono" ("Os Dias do Abandono"), em 2002, "La Frantumaglia", "La Figlia Obscura" ("A Filha Obscura"), em 2006, e "La Spiaggia di notte", em 2011. A escrita de Elena Ferrante é íntima, sincera e despudorada. E as suas histórias são as histórias das suas mulheres. Mulheres que "por causa do seu sofrimento ou da sua combatividade", influenciaram a imaginação da autora. Mulheres que são ecos de mulheres reais - tão reais quanto a sua mãe ou uma amiga de infância. Mulheres que desafiam a moral e as convenções da época - sejam elas avós, mães ou filhas. Que questionam a maternidade, o sexo, o trabalho e o seu papel na sociedade. Mulheres fortes, educadas, determinadas, vulneráveis, contraditórias, "conscientes dos seus direitos, mas ao mesmo tempo alvo de ruturas inesperadas, de vários tipos de subserviência" (entrevista de Elena Ferrante ao "New York Times"), confusas, com medo.
O primeiro volume da tetralogia "A Amiga Genial", centrada em Nápoles, foi publicado em Itália em 2011 e em língua inglesa no ano seguinte. Após o desaparecimento de Raffaella Cerullo, "Lila", aos 66 anos, Elena Greco - conhecida por Lenù - decide contar a história das duas amigas, desde a infância até à idade adulta. Lenù e Lila nasceram pouco tempo depois de terminar a II Guerra Mundial e cresceram num bairro pobre de uma Nápoles ainda arrasada pela guerra. O bairro ficava nos subúrbios da cidade, ficava afastado, excluído, fechado. Nessa altura, as idas ao centro eram raras e só um motivo muito forte poderia levar alguém a fazer esse caminho. O mar ficava longe, em direção incerta, não era qualquer um que se aventurava. A vida toda acontecia no bairro, naqueles prédios velhos e caquéticos, dentro e fora de portas, à janela, no terraço, na escadaria, no pátio, na igreja, na charcutaria, na sapataria, nos jardins, na rua. O amor, o ódio, a disputa, a vingança, a paixão, a loucura, o ciúme, a indiferença, o orgulho. As lutas entre rapazes, entre raparigas, entre rapazes e raparigas, entre mulheres entre homens e mulheres, entre pais e filhos. A violência era uma constante, era rotina. A lei que vingava era a lei da rua e a lei da rua mandava ver antes de ser visto. Matar antes de ser morto. "A vida era assim e mais nada, crescíamos com a obrigação de torná-la difícil aos outros antes que os outros a tornassem difícil para nós. Fazer mal era uma doença", conta Lenù.
Impressionou-me porque era muita má
Lenù, filha de um porteiro da câmara de Nápoles, e Lila, filha de um sapateiro pobre, conheceram-se na escola primária. "Lila entrou na minha vida na primeira classe e impressionou-me de imediato porque era muito má". A amizade entre as duas começa assim e vai manter-se até ao dia em que Lila decide desaparecer sem deixar rasto. Lenú descreve a amiga em oposição a si. Lila, a má, a terrível, a talentosa, a indomável, a provocadora, a irreverente, a corajosa, a perspicaz. "A sua rapidez mental fazia lembrar um sibilo, um relâmpago, uma picada letal". Lila, a primeira em tudo. A primeira a aprender a ler, a escrever, a fazer cálculos difíceis de cabeça. A primeira a ser elogiada pelos professores e pelos rapazes. A primeira a beijar, a casar. A primeira a ser possuída por um homem. Lenù invejava-lhe a determinação ("Lila sempre soube o que queria e alcançou-o; eu não quero nada, sou feita de nada"), a beleza, a inteligência, o desapego às coisas, ao mundo. Essa inveja corroía-lhe o corpo, mal conseguia respirar. Perdia o interesse por aquilo que fazia, pelas suas atividades e pequenas conquistas. Só Lila importava. Lenù tenta afastar-se dela muitas vezes, esquecê-la, reduzi-la a não mais do que um rosto vagamente familiar. "Parei sobre a ponte Solferino e fiquei a ver as luzes filtradas através de uma neblina gelada. Pousei a caixa no parapeito, empurrei-a devagarinho, pouco de cada vez, até que caiu no rio como se fosse ela, a própria Lila, a cair, com os seus pensamentos, as suas palavras, a maldade com que pagava a todos na mesma moeda, olho por olho, o seu modo de se apropriar de mim, como fazia com qualquer pessoa, ou coisa, ou acontecimento, ou informação que lhe passasse ao alcance: os livros e os sapatos, a doçura e a violência. O casamento e a noite de núpcias, o regresso ao bairro no seu novo papel de senhora Raffaella Carracci" (lê-se em "A História do Novo Nome", segundo volume da tetralogia). Lenù, Elena Greco, quer ter um nome, um rosto, palavras, opiniões suas, fortes, inabaláveis, uma posição, uma vida que não se confunda mais com a vida da amiga e a vida do bairro e a das mulheres do bairro - mas Lila, assim como o bairro - Lenù vai acabar por perceber -, não se podem simplesmente apagar.
A ascensão de Lila terá um revés, a submissão de Lenù também. Lila agirá muitas vezes como esperávamos que Lenù agisse e vice-versa. Os traços de personalidade que as distinguem vão atenuar-se ou tornar-se ainda mais vincados conforme as situações. Lila é a corajosa e a destemida mas há de ter medo de prosseguir a viagem em direção ao mar, quando começa a chover, naquele dia em que ela e Lenù combinam não ir à escola, mentir aos pais e atravessar as fronteiras do bairro. E também Lenù há de experimentar os mesmos sentimentos de ódio e vingança que valeram a Lila o ódio do bairro, e deixar-se levar pela paixão, pela violência, negligenciando valores, normas, deveres. As oscilações entre Lila e Lenù e em cada uma delas, individualmente, são de tal modo inesperadas e acentuadas que dificilmente viremos a a saber quem é, afinal, a "amiga genial".
Mulheres em estado de emergência
A mesma ambivalência está presente nas outras mulheres das outras histórias de Elena Ferrante. James Wood, reconhecido crítico norte-americano, escreveu um artigo para a revista "New Yorker", publicado em 2013, em que dizia que as mulheres de Elena Ferrante são mulheres "em estado de emergência", em situações extremas, elas mesmo saltando de um extremo ao outro, com uma desenvoltura e paixão de fazer chegar as lágrimas aos olhos. Leda, a narradora em "A Filha Obscura", é uma professora universitária de 47 anos que teve de gerir a maternidade e a carreira, e Olga ("Os Dias do Abandono") é uma escritora de 38 anos que vive em Turim e é abandonada pelo marido. "Num dia de abril, a seguir ao almoço, o meu marido anunciou-me de repente que queria deixar-me", começa por contar Olga.