A livraria Pó dos Livros nasceu como uma livraria de bairro, independente e "alternativa"
Marcos Borga
As vendas de livros e de jornais em banca continuam em queda e muitas livrarias fecharam (de 694 em 2004 para 562 contabilizadas em 2012). Será que o digital constitui realmente uma ameaça? Este é o 15.º artigo da série “30 Retratos” que o Expresso vai publicar diariamente. São 30 temas, 30 números e 30 histórias que ilustram o que Portugal é hoje em vésperas de eleições
Habituado desde cedo a lidar com livros (vem de uma família de editores, diz-nos), Jaime Bulhosa fundou a Pó dos Livros em 2007. Nascida como uma livraria de bairro, independente e "alternativa", com um catálogo que inclui tanto novidades editoriais como clássicos e livros raros e usados, a Pó dos Livros mudou-se há cerca de seis meses para uma avenida não muito longe daquela onde estava antes, situando-se agora no nº 58 da Avenida Duque de Ávila, em Lisboa. "A zona é melhor e, se olharmos para os números das vendas, vamos perceber que têm aumentado ligeiramente", explica Jaime Bulhosa.
Apesar de ser uma das livrarias mais prestigiadas de Lisboa (em 2009, venceu o Prémio Especial Livraria Independente, atribuído pela revista Ler em conjunto com a consultora editorial Booktailors, e em 2015 foi considerada a segunda Livraria Preferida de Lisboa), isso não lhe garante uma posição resguardada face à situação atual do mercado livreiro.
Nascida numa época em que já havia a necessidade de "inovar" para continuar a chamar leitores e evitar que a quebra no volume de negócios atingisse níveis trágicos, a Pó dos Livros foi desde o início um espaço não só de compra de livros, como também de convívio e conversa, tendo os livros como pretexto.
Além disso, a sua presença nas redes sociais, bem como noutras ferramentas de publicação, não tem passado despercebida. Jaime Bulhosa explica que "as livrarias independentes estavam habituadas ao esquema antigo, a não terem que inovar".
"Hoje em dia, as pequenas livrarias, as que sobraram, mudaram e adaptaram-se. Fazem muito pela divulgação do livro, organizam cursos, tertúlias, há um enorme esforço de diversificação e também de modernização em termos de comunicação na Internet". Numa palavra, "tornaram-se mais especialistas e mais próximas do público, marcando uma diferença em relação às grandes superfícies e às grandes cadeias".
132 livrarias fecharam entre fevereiro e junho de 2014
Um estudo realizado entre fevereiro e junho de 2014 ("Comércio Livreiro em Portugal - Estado da Arte na segunda década do século XXI"), encomendado pela APEL ao Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), revela que em 2004 havia 694 livrarias, com um volume de negócios de 140,1 milhões de euros.
Em 2012, já só se registavam 562 livrarias, com um volume de negócio de 126,2 milhões de euros, quebra que se acentua principalmente a partir de 2008. José Soares das Neves, investigador do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-IUL), e um dos autores do estudo, explica que a quebra no volume de negócios resultou, sobretudo, da crise económica e financeira que teve início em 2008.
Não só se verificou, a partir deste período, uma "contração da procura", como também uma "redefinição da oferta", que se traduziu "na adotação, por parte dos grandes canais de comercialização, de estratégias mais agressivas do ponto de vista comercial e promocional, que vieram prejudicar as livrarias independentes".
Não é que essas estratégias não existissem antes, explica José Neves, mas "agudizaram-se por essa altura, sobretudo nas campanhas de natal". "Verificou-se uma situação de práticas concorrenciais duras e de campanhas promocionais muito agressivas com elevados descontos, consideradas pelos livreiros independentes como estando fora da Lei do Preço Fixo", diz.
Livreiros criticam falta de fiscalização por parte do Estado
Essa lei, aprovada pelo Governo em 1996, estabelece um preço fixo de venda ao público de livros que tenham sido publicados há menos de 18 meses (inclusive), não podendo ser vendidos com descontos superiores a 10%.
Em junho de 2015, o Conselho de Ministros aprovou um conjunto de alterações à lei que preveem, entre outras medidas, a criação de regras mais claras de fixação de preços para facilitar a fiscalização pela Inspecção-Geral das Actividades Culturais (IGAC). Tanto Jaime Bulhosa como José Neves não têm, contudo, conhecimento de que essas alterações tenham sido aplicadas.
A fiscalização da Lei do Preço Fixo continua a ser o maior drama dos livreiros independentes. "Há um desequilíbro da concorrência, e isso afeta não só os livreiros, como também os pequenos editores e a diversidade cultural", explica Jaime Bulhosa.
José Neves, explica que, de facto, "a falta de fiscalização e adoção de medidas subsequentes é uma questão central para os livreiros independentes", e que o problema reside fundamentalmente "na aplicação da lei por parte das grandes editoras e das grandes superfícies".
"Deveria haver mais atenção por parte do Estado e da entidade fiscalizadora [IGAC]", defende José Neves, que considera que a atual lei não só deve ser fiscalizada, como tem de ser "melhorada". "De acordo com as discussões existentes no plano europeu, há uma vertente que precisa de ser atualizada, e que tem a ver com a aplicação da Lei do Preço Fixo às edições digitais".
Apesar de a aposta no e-book não ser muito significativa em Portugal, como é noutros mercados mais desenvolvidos, como o dos Estados Unidos (em 2013, a Associação Americana de Editores anunciou que os e-books representavam 20% das vendas de livros), "há a expetativa de que os documentos digitais venham a ser relevantes, e por isso é necessário saber como se vai atuar perante essa nova situação", diz.
Ministério da Cultura: faz ou não diferença?
José Caria
Jaime Bulhosa acredita que a extinção do Ministério da Cultura (MC) em 2011, levada a cabo durante o atual Governo, pode ter contribuído para a quebra do volume de negócios das livrarias independentes no contexto da crise económica, e ter prejudicado, de forma semelhante, outras áreas da cultura. "O Ministério da Cultura é essencial.
A noção que temos é a de que a cultura não tem importância mas, na minha opinião, tanto a cultura como a educação são essenciais para desenvolver o país. Há uma grande diferença entre ter Ministério da Cultura e não ter, porque assim que ele desaparece em 2011, desaparecem também os incentivos". Além disso, trata-se de uma "questão ideológica, de saber quais são, afinal, as nossas prioridades", diz Jaime Bulhosa.
No relatório final de um estudo de janeiro de 2014, elaborado pelo Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade Nova de Lisboa ("Mapear os recursos, levantamento da legislação, caracterização dos atores, comparação internacional"), é referido que"os efeitos da crise do setor repercutiram-se sobretudo depois de 2010, com o emagrecimento da tutela que passou, por opção política, de Ministério da Cultura a secretaria de Estado, com fusões de vários organismos".
José Neves, que foi também um dos autores desse estudo, refere que a extinção do MC, avaliada num plano "meramento operativo" e do ponto de vista da "definição e execução de políticas", pode não ter prejudicado o setor da cultura e dos livros, mas uma "coisa é a definição de políticas", aponta, "outra são os meios definidos para a sua concretização".
Dado que a cultura foi fundida com outras áreas, isso trouxe "várias implicações", como a "redução de recursos e sua eventual canalização para outras áreas", o que resulta "numa menor capacidade de intervenção na área da cultura". José Neves sublinha que a questão de haver ou não um Ministério da Cultura tem uma "vertente simbólica muito importante", que tem a ver fundamentalmente com isto: "que importância é dada, afinal, à cultura a nível político e administrativo". Além da vertente simbólica, verificam-se também implicações a outros níveis.
"Na atual estrutura, não há sequer uma secretaria de Estado, há é um secretário de estado da cultura imediatamente ligado ao primeiro-ministro. Isto quer dizer que, no fundo, o condutor da política cultural é o primeiro-ministro, que evidentemente não responde pela política cultural".
O que é certo, diz José Neves, remetendo para o estudo de janeiro de 2014, é que "quando se passa de Ministério da Cultura para secretaria de Estado há uma perda de relevância da cultura, sobretudo em comparação com outros setores. O Ministério da Cultura chama a si mais áreas, mais fundos, mais infraestruturas e maior capacidade de decisão, precisamente por se tratar de um nível administrativo de topo", superior à secretaria de Estado.
"Ponto fraco" do setor livreiro independente
Marcos Borga
Mas as dificuldades que o setor livreiro enfrenta não se devem apenas à crise de 2008 ou à adoção, ou não, de políticas públicas que tenham em atenção as necessidades do setor. Um dos "pontos fracos" apontados no estudo sobre o comércio livreiro é a falta de articulação entre livreiros, que podia, em boa medida, ajudar a resolver alguns dos problemas que mais afetam o setor.
O que se verifica é um "isolamento que inviabiliza a existência de uma massa negocial crítica e uma fraca filiação associativa e incapacidade de criação de estruturas associativas próprias", lê-se no documento. Em França, por exemplo, o Governo instituiu em 2009 o selo LIR - Selo de livraria independente de referência que não" só tem valor simbólico, como cria condições para que as livrarias se considerem entre si como pares, já que têm o mesmo o tipo de 'label', havendo assim melhores condições para se organizarem", explica José Neves.
Questionado a respeito deste "ponto fraco" do setor, Jaime Bulhosa responde que já tentou criar uma associação de livreiros independentes, mas que é "muito difícil de concretizar", seja porque os livreiros "estão espalhados por todo o país", seja porque "nao têm dinheiro" para criar uma associação.
Uma das poucas vezes em que Jaime Bulhosa se juntou a outros livreiros independentes foi num dos natais passados, quando conseguiu reunir 26 livreiros para interpor uma providência cautelar contra a Bertrand e a Fnac por supostas violações da Lei do Preço Fixo, que resultou numa derrota para os livreiros, alegadamente por razões burocráticas.
Apesar de ainda não estarem disponíveis os números relativos aos anos mais recentes, José Neves sublinha que os dados estatísticos de que dispunham quando realizaram o estudo apontavam para alguns aspetos "menos negativos", embora ainda "não positivos". "Estou à espera dos novos dados", diz.
Escusando-se a assumir uma posição radical, refere apenas que "a capacidade da indústria do livro para resistir e encontrar formas de se adaptar às novas situações é louvável. É uma indústria com muitas centenas de anos e muita experiência acumulada. Além disso, o livro continua a ser um objeto socialmente muito valorizado".
Já Jaime Bulhosa parece menos otimista. "Segundo os meus números, há uma quebra substancial das vendas em 2009, que tem vindo a manter-se desde 2013 e 2014. Em 2015, pelo que tenho vindo a perceber, também não será muito diferente".
"Com menos só se pode fazer menos"
José Caria
E se foi essa a evolução da venda de livros, o que é que nos dizem os números sobre a venda de jornais em Portugal?Dados recentes da Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação (APCT) revelam que entre janeiro e junho deste ano a venda de jornais impressos em Portugal manteve-se em queda.
Os mais afetados continuam a ser os diários generalistas, que no período considerado venderam, no total, uma média de 198.260 exemplares por dia, menos 10 mil em relação ao período homólogo de 2014.
António Granado, jornalista e professor auxiliar na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL), sublinha que esta tendência, que começou há cerca de dez anos, não é exclusivamente portuguesa: em muitos outros países, as vendas de jornais em banca têm "caído brutamente".
Para isso, contribuíram dois fatores essenciais: "as alterações provocadas pela Internet" e a "dificuldade que os jornais tiveram em se adaptar às novas tecnologias". Ao mesmo tempo, houve uma "redução drástica das redações", que fez com que os jornais perdessem "qualidade" (atualmente "muito próxima de zero") e, consequentemente, leitores.
"Os leitores não são parvos e percebem perfeitamente que determinado jornal tem menos qualidade porque há menos jornalistas a escrever artigos e a fazer o trabalho que é necessário fazer", diz o professor e jornalista, dando como exemplo a quase total ausência de fotógrafos contratados por jornais a cobrir os "principais" jogos de futebol, os derbies, compensada pelo recurso a fotografias da agência Lusa.
"Ao contrário do que pensam alguns empresários dos media, com menos só se pode fazer menos", diz, citando um ex-diretor do jornal norte-americano "New York Times". É de prever, pois, um futuro sombrio para os jornais impressos, que "dado este círculo vicioso, tendem a desaparecer".
DR
"Perdeu-se demasiado tempo sem apostar no digital"
Ao mesmo tempo que o papel perde relevância, cresce o interesse pelo digital. Dados da APCT divulgados em janeiro deste ano revelam que as assinaturas digitais dos jornais diários cresceram 116% nos primeiros dez meses de 2014. Noutro relatório divulgado posteriormente pela associação, é referido que o jornal Público conseguiu mesmo compensar a quebra de vendas em banca e aumentar a sua média de circulação paga graças ao acréscimo de 94,4% nas vendas digitais.
António Granado olha para estes números com muitas reservas. "Há muitos bons exemplos de jornais em que o digital salvou a operação, mas não me parece que isso vá acontecer em Portugal, tendo em conta os números que têm sido alcançados pelos jornais portugueses". Citando um estudo elaborado pelo Pew Researcher Center que indica o número médio de assinantes dos cinco jornais americanos com mais relevância no segmento, com o "New York Times" e o "Wall Street Journal" a ocuparem as posições cimeiras, Granado diz que são necessários "números absolutamente grandes" para que um jornal consiga sobreviver contando apenas com edição digital.
Ele, que foi jornalista, editor e subdiretor do jornal Público de 1989 a 2010, lembra-se bem da chegada do digital às redações e da forma como foi acolhido na maior parte delas. "O online era tratado como um produto de segunda, mantido sobretudo por estagiários e jornalistas que não eram do produto tradicional nem se queria que passassem a ser". Depois, "acordou-se finalmente para o digital", percebeu-se que era preciso ter uma grande parte da redação a trabalhar para o novo formato, mas "já era demasiado tarde". "O momento certo já tinha passado".
E isso, diz, veio a refletir-se na qualidade das edições digitais. "Há cada vez mais leitores, é certo, mas eles não estão disponíveis para pagar porque o produto não é suficientemente bom". Um estudo elaborado recentemente pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) revela que apenas 1% dos utilizadores da Internet pagou para aceder a notícias online no último ano, número praticamente irrelevante se comparado com a média global resultante de dez países analisados pelo Reuters Institute, que é de 11%. Vale a pena olhar ainda para outro dado: quando questionados sobre a sua predisposição para pagar por conteúdos noticiosos online no futuro, três em cada quatro inquiridos consideraram “improvável” ou “muito improvável” vir a fazê-lo (74%) e apenas uma percentagem muito reduzida considerou essa possibilidade "muito provável" (3%).
"Um bom texto jornalístico vale muito mais do que não sei quantos likes"
Apesar de defender uma maior aposta no jornalismo online, António Granado alerta para alguns riscos associados à presença cada vez mais forte dos jornais nas redes sociais, como o Facebook. "Recorre-se cada vez mais a certo tipo de textos e a certo tipo de títulos para atrair o clique, mas a relevância disso em termos jornalísticos é zero. Além disso, os jornais que o fazem acabam por se descaracterizar e perder identidade e credibilidade, afastando os leitores". O "copy-paste e a reprodução do vídeo que toda a gente anda a partilhar não são jornalismo. Um bom texto jornalístico vale muito mais do que não sei quantos likes", diz.
Mais otimista mostra-se José Carlos Vasconcelos. Questionado também a respeito dos dados da APCT, o fundador e diretor do Jornal de Letras considera que se trata de uma tendência "reversível" e que os jornais, e também as revistas, não estão "condenados a desaparecer", nem mesmo com o finca-pé do digital. "Quando se ultrapassar esta crise económica, creio que alguns jornais vão até recuperar as vendas, pelo menos parcialmente", diz.
Papel e digital podem, portanto, funcionar numa "lógica de complementaridade e interação", refere José Carlos Vasconcelos, dando como exemplo a situação atual do mercado livreiro em Portugal, em que livros e e-books convivem, pelo menos por enquanto, de forma harmoniosa.
Na altura em que se debatia o futuro do livro em papel face ao aparecimento do livro eletrónico (o debate continua atual), com muitos especialistas a arriscarem previsões sobre o momento em que o livro iria, efetivamente, perder relevância ou até mesmo desaparecer, José Carlos Vasconcelos participou em algumas conferências centradas no tema e lembra-se de dizer que o "papel tinha qualquer coisa de sensual, de contacto físico", e que por isso nunca seria substituído.
"Ninguém vai com um computador para a cama", dizia. Hoje, já tem algumas dúvidas em relação a isso, mas continua a acreditar que o livro impresso, assim como o jornal impresso, não vão desaparecer.