Blitz

Nem polémicas, nem canções com meias medidas. O regresso dos Arcade Fire a Lisboa foi um pequeno-grande triunfo de Win Butler

Coros desenfreados a coroar sucessos movidos a ‘uô-uôs’, gritos de “és o maior, car*lho” dirigidos a Win Butler, falsetes estridentes de uma Régine Chassagne cada vez mais em modo ‘Kate Bush wannabe’ e uma ilimitada proximidade com a multidão: no primeiro de dois concertos no Campo Pequeno, os Arcade Fire reconquistaram um público que promete envelhecer com eles

Independentemente do facto de terem regressado a Portugal num período menos bom da vida privada do casal Win Butler e Régine Chassagne, liderança bicéfala da banda, os Arcade Fire continuam a jogar todas as fichas na proximidade que, ao longo dos anos, foram desenvolvendo com os seus admiradores. Especialmente com os portugueses, com quem aparentam ter criado uma relação especial – diríamos mesmo ‘à prova de bala’ – desde que se estrearam, em 2005, bem no momento em que a sua carreira despontava para o sucesso, no palco do festival Paredes de Coura. O primeiro dos dois concertos que o grupo canadiano marcou para o mesmo Campo Pequeno que os recebeu de braços abertos em 2018 foi um (pouco surpreendente) triunfo, com os músicos a agarrarem a multidão que praticamente lotou a arena aos primeiros acordes de ‘Age of Anxiety I’, canção que abre o novo álbum, “We”, e só largando, duas horas depois, quando se cansaram de batucar no prolongamento de ‘Wake Up’.

Na sequência de uma primeira parte assegurada pelos haitianos Boukman Eksperyans, contratados à última hora para substituir Feist, que decidiu abandonar a digressão devido às alegações de conduta sexual imprópria feitas por várias mulheres contra Butler, de um DJ de maracas em riste prender a atenção de todos a partir do pequeno palco no meio da sala e de o piano montado nesse mesmo palco passar uns longos minutos a tocar sozinho (ou de forma remota) – até lhe ouvimos ‘La Vie en Rose’ –, os grandes protagonistas da noite entraram por uma das portas laterais do recinto. Debaixo de uma chuva de aplausos, e enquanto o ecrã em semicírculo que emoldurava o palco passava a exibir um céu noturno estrelado, o grupo rápida e sabiamente seguiu a nova canção escolhida para o arranque com a explosão de ‘Ready to Start’ e o primeiro grande ‘singalong’ ao som de ‘The Suburbs’. “Obrigado, Lisboa”, agradeceu Butler em bom português, “estamos extremamente felizes por estar aqui”.

Suando com o calor abrasador deste interminável verão de 2022, a banda fez algumas alterações ao alinhamento servido em atuações recentes – talvez com a intenção de não repetir exatamente a mesma fórmula duas vezes em Lisboa –, colocando os seus líderes em destaque no palco secundário com uma estridente ‘It’s Never Over (Hey Orpheus)’, arrasada pelo falsete mal-amanhado de uma Régine cada vez mais em modo ‘Kate Bush wannabe’, e uma velhinha ‘My Body is a Cage’, servida em modo confessional por um Win empoleirado no piano. A festa instalou-se na sequência que colocou a exuberância dançável do álbum de 2013, “Reflektor”, no centro das atenções: ‘Afterlife’ expande-se sempre de forma majestosa ao vivo, ‘Reflektor’ abriu a pista da discoteca sem que o falsete sofrível da cantora e multi-instrumentista conseguisse abafar o seu poder, e ‘Age of Anxiety II (Rabbit Hole)’ regressou ao presente mantendo a toada disco, mas diminuindo a ebulição na plateia (apesar de todos os esforços de dança ultradramática de Régine).

A fúria das guitarras regressou com ‘The Lightning I’ e ‘The Lightning II’, canções que serviram de porta de entrada a “We”, mas foi aos primeiros acordes de ‘Rebellion (Lies)’ que a euforia voltou a instalar-se em força, avolumando-se com um coro possante de testosterona. Seguiu-se um inesperado miminho para os fãs mais conhecedores que funcionou como refrear de ânimo para os restantes: ‘Headlights Look Like Diamonds’, “a primeira canção em que trabalhámos juntos”, foi resgatada ao EP homónimo de estreia, de 2003, mas o gigantesco “uô-uô” de ‘No Cars Go’ rapidamente voltou a colocar a energia no sítio certo. Já na reta final, numa espécie de montanha-russa emocional, serviram uma curiosa ‘Unconditional I (Lookout Kid)’, dedicada ao filho do casal Win e Régine; os batuques caribenhos de ‘Haiti’, com a ajuda dos Boukman Eksperyans; uma última estridência Chassagniana em ‘Sprawl II (Mountains Beyond Mountains)’; e a efervescência Abbaesca de ‘Everything Now’, que, sem grande surpresa, levou a plateia à loucura.

Depois de um “muito obrigado” final, a multidão exigiu mais, contrariando o escuro que se abateu sobre a sala ligando as lanternas dos telefones. A exigência, claro, foi recompensada com um curto, mas eficaz encore, que partiu do intimismo da guitarrinha acústica de ‘End of the Empire’, embrenhada nas virtudes de fazer ‘unsubscribe’ e os falhanços dos algoritmos, e terminou com o hino de todos os hinos, o ‘uô-uô’ de todos os ‘uô-uôs’ da banda canadiana. ‘Wake Up’ teve direito não só a um valente berro de “És o maior, car*lho” com pronúncia nortenha (dirigido a um Win Butler que, bom, é verdadeiramente alto) como a um coro desenfreado e, pelo menos à nossa volta, bem desafinado, deixando transpirar toda a emoção de ouvir “a” canção que marcou, para muitos, uma juventude que já lá vai. Porque isto de gostar de uma banda por vezes também parece um casamento, há quem queira envelhecer com os Arcade Fire e tenha prometido, cedo, estar lá nos bons e nos maus momentos. Foi a isso que assistimos esta noite.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: MRVieira@blitz.impresa.pt

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