A discussão sobre o lançamento de uma campanha internacional para limpar em larga escala o CO2 acumulado na atmosfera desde a Revolução Industrial, é o tema principal de três conferências que vão acontecer na cimeira do clima da ONU, que começou nesta quinta-feira no Dubai, nos Emirados Árabes Unidos.
Esta ambição não consta dos objetivos do Acordo de Paris de 2015, porque este trata apenas das emissões atuais (fluxos), o que tem sido manifestamente insuficiente para resolver com sucesso o problema das alterações climáticas, que é essencialmente um problema de acumulação de CO2 (stock).
A primeira conferência (6 de dezembro), sobre as "Abordagens plurais para limpar a atmosfera, construindo a agenda Paris+10", será um evento paralelo em inglês promovido pela Casa Comum da Humanidade (CCH), organização global com sede na Universidade do Porto, e por outras ONG’s. No Pavilhão de Portugal haverá, por sua vez, uma conferência da CCH em inglês (8 de dezembro), sobre o tema “Limpar é parte da solução – 10 razões para Paris+10”, que contará com a participação de universidades e organizações portuguesas. E no Pavilhão de Angola (10 de dezembro) irá realizar-se um evento conjunto do Governo de Angola e da CCH, focado na questão “É possível limpar a atmosfera? O debate necessário, no caminho da Declaração de Lubango”, que terá a intervenção de representantes de todos os Estados-membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
A questão da remoção ou limpeza do CO2 da atmosfera sem qualquer correspondência com a neutralização de emissões atuais, implica que se crie paralelamente uma contabilidade sobre o stock onde o dióxido de carbono está acumulado. Isto quer dizer que o sistema climático, o clima, tem de pertencer a toda a Humanidade, para que sobre esse bem de todos possam emergir direitos resultantes dos benefícios - as remoções de CO2 - e deveres resultantes das emissões. Nesse sentido, nos três eventos será debatido o reconhecimento no direito internacional do clima estável como Património Comum da Humanidade.
Entre os oradores destas conferências destacam-se Izabella Teixeira, ex-ministra do Meio Ambiente do Brasil e co-presidente do Painel Internacional de Recursos Naturais do Programa da ONU para o Ambiente e a princesa Dana Firas da Jordânia, embaixadora de Boa Vontade da UNESCO (evento paralelo) ; Maria Fernanda Espinosa, diplomata equatoriana e ex-presidente da Assembleia-Geral da ONU (Pavilhão de Portugal); Paulo Magalhães, investigador da Universidade do Porto e diretor executivo da CCH (nos três eventos) e Sara Moreno Pires, investigadora da Universidade de Aveiro e presidente da CCH, como moderadora.
A campanha internacional poderá chamar-se “Paris+10 – A caminho de Belém do Pará 2025”, porque a ambição dos seus promotores é que a COP30, a cimeira do clima das Nações Unidas que terá lugar em Belém do Pará (Brasil) em 2025 seja um marco, onde para além da tentativa de controlar as emissões, se comece um projeto de limpar o CO2 já acumulado. Esta seria, assim, uma nova área de ação climática a adicionar ao Acordo de Paris, que continua hoje em vigor.
Ambição da Convenção do Rio de 1992 foi ignorada em Paris
Embora seja inovadora a discussão sobre o reconhecimento no direito internacional do clima estável – um bem comum, global e sem fronteiras - como Património Comum da Humanidade, ela encontra as suas raízes na Convenção-Quadro da Nações Unidas para as Alterações Climáticas de 1992 no Rio de Janeiro, um tratado internacional assinado por quase todos os países do Mundo, que tinha como objetivo garantir “a estabilização das concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera num nível que evite interferências antrópicas (que resultam da ação humana) perigosas no sistema climático”, isto é, uma estabilização baseada no controlo do stock de CO2 retido na atmosfera.
Na Convenção-Quadro entendia-se a atmosfera como um primeiro “depósito” onde o dióxido carbono se acumula (o stock), produzindo efeitos cascata no segundo “depósito”, os oceanos, e por todo o Sistema Terrestre, como aumento da temperatura, alterações climáticas, acidificação dos oceanos ou destruição da biodiversidade. Mas 23 anos mais tarde, o Acordo de Paris de 2015 retrocedeu na ambição, ao estabelecer como objetivo “cumprir o limite máximo mundial das emissões de gases com efeito estufa” através de uma redução ou neutralização dessas emissões, ou seja, com base no controlo dos fluxos de CO2 emitidos para a atmosfera devido à atividade humana, negligenciando o stock de gases com efeito de estufa já acumulados desde a Revolução Industrial, nos últimos 200 anos.
Só que hoje a concentração de dióxido carbono (o stock) na atmosfera já atingiu 427 partes por milhão (ppm), ultrapassando o limite de segurança de 350 ppm definido pelos cientistas. “Por isso, uma abordagem como a do Acordo de Paris, exclusivamente baseada na redução ou neutralização das emissões, revela-se claramente insuficiente, sendo urgente aprofundar as relações entre ambas, pois uma não faz sentido sem a outra”, defende Paulo Magalhães, diretor executivo da Casa Comum da Humanidade.
O papel dos países de língua portuguesa
Os países de língua portuguesa acabaram por ter importantes contribuições para fundamentar este debate. Antes de mais o Brasil, ao promover a aprovação em 1992 da Convenção-Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas no Rio de Janeiro, onde o objeto era claramente o stock e não os fluxos das emissões de gases com efeito de estufa. Depois Portugal, com a aprovação da Lei de Bases do Clima em 2021, que refere no seu artigo 15º “o objetivo de reconhecer o clima estável como Património Comum da Humanidade”.
E mais recentemente, em 2023, a IX Reunião de Ministros do Ambiente da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, realizada no Lubango, em Angola, aprovou a Declaração do Lubango, que defende a promoção de um debate entre os Estados-Membros da organização sobre o tema do clima estável como Património Comum da Humanidade, tendo em vista uma possível contribuição para resolver a crise climática.
A COP30, em Belém do Pará, será de alguma forma um voltar às origens, onde o “reservatório” onde se concentra o CO2 (definido na Convenção-Quadro do Rio de 1992), tem de deixar se ser apenas uma “lixeira” que não é de ninguém, isto é, que não é objeto de regras, tanto na provisão como na apropriação. Trata-se de uma discussão estrutural urgente, que tem de dar origem a novos instrumentos jurídicos e financeiros que permitam iniciar a limpeza em larga escala daquele “reservatório”.
Produção de combustíveis fósseis poderá duplicar até 2030
As projeções apresentadas no recente relatório “The Production GAP Report 2023” da ONU (8 de novembro) foram uma amarga surpresa e o jornal britânico “The Guardian” apelidou-as mesmo de “loucura” (insanity). Contrariando todos os compromissos de redução de emissões dos 196 subscritores do Acordo de Paris, entre os quais se incluem os 151 países que se comprometeram a alcançar emissões líquidas zero, a produção de combustíveis fósseis em todo o Mundo até 2030 poderá crescer mais do dobro do que seria necessário para limitar o aumento da temperatura global da Terra a 1,5 graus.
Segundo o conhecido climatologista norte-americano James Hansen, este limite, inicialmente previsto para ser alcançado em 2050, “deverá ser atingido já nesta década”. Em parte, o crescimento da produção de combustíveis fósseis deve-se a uma tentativa de vários Estados reduzirem a sua dependência energética de países produtores de petróleo, gás e carvão, devido à turbulência geopolítica atual, associada à emergência de uma nova ordem mundial multipolar.
Depois de 30 anos de negociações climáticas promovidas pela ONU e de apelos constantes da organização para a gravidade do problema e para a urgência em encontrar uma solução, tanto do lado da redução das emissões atuais de CO2, como do lado da remoção do dióxido carbono acumulado na atmosfera desde a Revolução Industrial, não se vislumbram resultados que possam sequer aproximar-se da escala do que seria necessário para evitar o colapso climático.
Reduzir emissões não é limpar a atmosfera, é sujar menos
Paulo Magalhães considera que “reduzir emissões não é limpar a atmosfera, é sujar menos”. Hoje, “a remoção natural ou tecnológica de CO2 tem servido apenas para neutralizar emissões atuais, sendo usada para manter a funcionar indústrias altamente emissoras cujo encerramento estava previsto, ou até mesmo promover a sua expansão, como destaca o mais recente relatório da ONU”. Assim, “limpar significa remover dióxido de carbono, sem que essa remoção seja contabilizada como uma neutralização de uma emissão atual ou como geradora de direitos para novas emissões”.
Por isso, as remoções em larga escala (ou emissões negativas) de CO2 acumulado em excesso na atmosfera nos últimos 200 anos “devem desempenhar desde já um papel nas estratégias de mitigação das alterações climáticas, para além - e não em vez de - dos esforços rápidos de descarbonização associados à redução de emissões”.
É o que defende a Energy Transitions Commission (ETC), uma coligação global de líderes do setor da energia empenhados em alcançar emissões líquidas zero até meados deste século. Hoje, os ecossistemas da Terra removem cerca de 2000 milhões de toneladas de CO2 por ano e as atividades humanas emitem cerca de 37 mil milhões. Segundo os cenários da ETC, para compensar o impacto do incumprimento das reduções de dióxido de carbono será necessário passar das 2000 milhões de toneladas atuais para uma remoção em massa (emissões negativas) de 70 a 225 mil milhões de toneladas por ano até 2050.
E para além de 2050, já num cenário de manutenção dos níveis de CO2 na atmosfera, serão ainda necessárias emissões negativas (remoções) contínuas de 3000 a 5000 milhões de toneladas por ano. Ou seja, mesmo num cenário de sucesso na descarbonização até 2050, só para a posterior manutenção do objetivo da neutralidade carbónica é preciso quase o dobro da atual capacidade de remoção, o que significa que será absolutamente decisivo restaurar ecossistemas e, desta forma, contribuir para reconstruir o ciclo natural do carbono do Planeta.
Não limpar é mais caro e mais perigoso
Aparentemente, estas estimativas da ETC apontam para a necessidade de investimentos astronómicos prolongados na remoção em larga escala de emissões de gases com efeito de estufa da atmosfera. Mas vários estudos recentes, que se alargam à banca, seguros e consultoras, estão a revelar uma nova fase na análise financeira das alterações climáticas. Assim, começa-se a perceber que as parcelas dos custos futuros que vão caber a cada empresa ou país pelo não cumprimento do Acordo de Paris serão muito maiores do que os benefícios de curto prazo, o que significa que é melhor cumprir este acordo.
É por esta razão que o Banco Central Europeu (BCE) começou a analisar a dependência da Natureza e do clima de mais de 4,2 milhões de empresas da UE responsáveis por mais de 4,2 biliões de euros em empréstimos empresariais. O BCE também está a estudar até que ponto a economia e o setor financeiro da área do Euro estão expostos a riscos relacionados com a deterioração dos serviços de ecossistemas e alterações climáticas.
Em abril de 2023, uma análise mundial da consultora PwC (PricewhaterhouseCoopers) mostrou que 55% do PIB global do Planeta está altamente ou moderadamente dependente da Natureza, e mais de metade do valor de mercado de capitais das empresas cotadas nas 19 maiores bolsas de valores do Mundo está sujeito a riscos relacionados com a Natureza. E um estudo do Swiss Re Institute sobre 48 países, que faz projeções para 2050, conclui que existem perdas de riqueza contínuas em todos os cenários, mesmo que se cumpra o Acordo de Paris.
Mas nos cenários de não cumprimento, a situação é exponencialmente mais grave. O estudo sublinha que “quando somamos os crescentes défices anuais do PIB até meados do século de todos os 48 países, 10% dos mais afetados terão perdido cinco anos da produção económica atual com um aumento de 2,6° nas temperaturas”. Os países do Sudeste Asiático seriam os mais atingidos, “com uma média de 29% de produção económica mais baixa em meados do século, o que implica que percam uma produção equivalente a mais de sete vezes o seu PIB até 2050”.
Ou seja, não limpar a atmosfera fica mais caro e os prejuízos vão ser para todos. E limpar corresponde a uma efetiva criação de riqueza, embora este facto ainda não seja reconhecido no atual modelo económico.
Reconhecer o clima estável como Património Comum da Humanidade
“Para todos os efeitos”, observa Paulo Magalhães, “o Acordo de Paris centrou a sua estratégia num sistema voluntário de controlo de emissões – os fluxos - num bem, o clima estável, que já está perto da exaustão no stock”. Na prática, “a mitigação de emissões alcançável não permite recuperar esse bem cuja titularidade continua indefinida”. Por isso “é tão importante discutir o estatuto jurídico do clima”.
O problema é que os efeitos das decisões individuais de realização de benefícios no clima como, por exemplo, a remoção de CO2 da atmosfera, não beneficiam apenas os próprios Estados, empresas ou indivíduos que tomaram a decisão de o fazer, mas são dispersos por todo o Sistema Terrestre e por toda a sociedade tendo, no entanto, gerado custos privados ou que incorrem apenas em quem fez a provisão desses benefícios globais.
O Acordo de Paris de 2015, “ao centrar a sua estratégia de ação no controlo de emissões, omite a segunda condição estrutural necessária para que seja possível evitar a chamada tragédia dos bens comuns, que é criar uma congruência entre as normas de provisão e de apropriação do bem comum que é o clima estável”.
Um benefício que contribua para a provisão de um clima estável é um benefício realizado num bem que não é de ninguém e, portanto, desaparece num vazio jurídico e é absorvido por todos os outros utilizadores. Como ninguém é ingénuo, “ninguém realiza benefícios se os outros também não o fizerem, e a competição faz-se apenas no lado da exploração do bem como recurso até à sua exaustão”, explica o investigador da Universidade do Porto.
Inverter esta situação implica reconhecer, através das Nações Unidas, o sistema climático representado pelo clima estável ( o “depósito” onde o CO2 se acumula, nas palavras da Convenção do Rio de 1992), como Património Comum da Humanidade no direito internacional, para que possa emergir um novo modelo económico onde cuidar da provisão deste bem comum passe a ser reconhecido como criação de riqueza para a sociedade, porque a nossa economia depende da Natureza, o que significa que destruir a Natureza é destruir a economia e, em última análise, destruir a base material que sustenta a vida humana na Terra.
Usar novos instrumentos financeiros
Tendo em conta que as alterações climáticas assentam numa profunda desigualdade de contribuições dos diversos países para o problema, qualquer solução que se pretenda efetiva, implica criar congruência entre as atuais emissões de CO2 (os fluxos), e considerar as responsabilidades históricas sobre a acumulação de CO2 na atmosfera (o stock) que estão na origem da crise climática. Neste sentido, um acordo internacional que tenha como objetivo restaurar o bem comum que é o clima estável, isto é, reduzir o stock em excesso de CO2 na atmosfera para níveis seguros, pode ter vários efeitos em cascata positivos na harmonização de desigualdades e na construção de justiça climática entre os diversos utilizadores e entre gerações.
Para isso ser possível, é necessário que os mecanismos de financiamento da atividade de remover o dióxido de carbono da atmosfera e recuperar o clima estável reflitam estas realidades diferenciadas, e que permitam que todos os envolvidos consigam ver os seus interesses assegurados. Ou seja, quem financia, através de um sistema voluntário ou compulsório, tem de sentir que o seu financiamento vai resultar num efetivo benefício para um clima estável, do qual o investidor irá igualmente beneficiar. E quem recebe para restaurar esse bem comum, tem de assegurar e demonstrar o benefício realizado, quer ele tenha origem na recuperação e manutenção dos ecossistemas ou na remoção de dióxido de carbono da atmosfera.
Esta possibilidade pressupõe a criação de um sistema de contabilidade relativo às diferentes contribuições históricas e atuais entre danos e benefícios realizados nesse património por parte dos Estados, das grandes empresas que operam no mercado global e de outros agentes económicos. Por isso, o diretor executivo da Casa Comum da Humanidade propõe “a criação de um fundo financeiro autónomo destinado à limpeza da atmosfera, que deveria resultar, em primeira linha, de contribuições voluntárias (mecenato ambiental) ou involuntárias (impostos sobre os lucros) de grandes empresas como as tecnológicas, que suportam ou comandam cadeias de valor globais e operam numa escala planetária”. E a gestão desses fundos deveria caber a agências de organismos multilaterais como a ONU, mandatadas para o efeito pelos Estados-membros.