A propósito da grande tendência da digitalização no mundo corporativo, e o seu cruzamento com outra grande tendência nos negócios (que acredito ser, mais do que uma tendência, uma mudança paradigmática) - a sustentabilidade no centro da estratégia de negócio-, parece ser certo que, na prática e cada vez mais, a digitalização está a ser vista como uma alternativa estratégica viável para a melhoria da performance ambiental das organizações. E isto, apesar de ainda não existir muita evidência científica nesse sentido
Na realidade, os estudos existentes até ao ano passado, eram tendencialmente delimitados por setores ou tipos de atividade, um pouco dispersos e, por isso mesmo, inconsistentes, limitando-se a algumas tipologias de tecnologia como a big data analytics, ou a IoT (Internet of Things). Hoje já existem alguns estudos com maior consistência, que demonstram existir uma correlação positiva entre o nível de orientação para estratégias digitais de uma empresa, e os seus níveis de performance ambiental, constituindo esta uma vantagem competitiva sustentável no tempo.
Um bom exemplo de uma empresa que está a implementar aquilo que um artigo de 2021 do Boston Consulting Group (BCG) chama "eco-vantagem tecnológica" (The technology eco-advantage) - ou seja, assumir o digital como um acelerador ou potenciador de uma maior eficácia e eficiência na gestão dos impactos ambientais - é o da Mercedes-Benz. Em 2022, esta empresa comprometeu-se com uma estratégia net zero, como parte integrante do seu plano estratégico de sustentabilidade, com o objetivo de reduzir as emissões de carbono, não só da sua frota automóvel, mas também da sua cadeia de valor, a zero, até 2039 (daqui a 15 anos). Na formulação desta ambição, e até a este ponto, parece não haver nada de substancialmente diferente relativamente a muitas outras estratégias ambiciosas de redução de emissões. A diferença está na afirmação, expressa e assumida, de que procurarão atingir estes objetivos através do potencial da digitalização. Ou seja, cruzando a sua estratégia de sustentabilidade ambiental, com a sua estratégia de digitalização.
E a Mercedes Benz não é, claro, um caso isolado. Outras empresas, noutros setores muito diversos, como por exemplo a Fed Ex, também expressamente identificaram a digitalização como uma oportunidade para melhorarem a sua performance ambiental.
Em resumo, existem hoje evidências científicas de que aumentar o nível de orientação estratégica digital pode melhorar o desempenho ambiental e a posição competitiva das empresas. Mas afinal, o que significa, na prática, desenvolver uma orientação estratégica digital?
Significa, entre outras coisas, desenvolver tecnologias e funcionalidades digitais que vão de encontro às necessidades dos consumidores e, entre outros fatores, desenvolver as competências digitais existentes dentro de cada organização. Mas, mais do que isso, a organização deve criar um verdadeiro ecossistema digital, com a sua cadeia de valor, exponenciando os impactos positivos da tecnologia na sustentabilidade ambiental.
É também importante realçar que, quando falamos de tecnologias digitais que alavancam a sustentabilidade, não estamos apenas a falar do "E" no "ESG". Estamos a falar também do potencial que elas podem ter de promover o bem-estar social, e o desenvolvimento económico. Partilho alguns exemplos e casos de tecnologias que contribuíram para um melhor desempenho ao nível da sustentabilidade:
A Google Deepmind, resultado de uma junção de dois laboratórios que são líderes mundiais na área da Inteligência Artificial - A Google Brain (2011) e a Deepmind (2010) - , entre muitos outros projetos que desenvolveu e atualmente desenvolve, conseguiu reduzir a energia despendida para o arrefecimento dos Data Centres da Google em 40%, reduzindo, desta forma, muito significativamente a sua pegada de carbono.
A conhecida cadeia norte-americana de distribuição Walmart utiliza a tecnologia do blockchain e big data analysis, para fazer o rastreio da origem e do caminho que os produtos alimentares seguem na cadeia de abastecimento, o que permite reduzir o desperdício, porque se torna mais fácil de detetar ineficiências no processo e, para além disso, permite pressionar a sua cadeia de valor para a adoção de práticas mais sustentáveis.
Outro caso muito interessante é o da John Deere, marca líder de venda de máquinas e equipamentos agrícolas, que utiliza diversas formas de tecnologias de precisão para ajudar os agricultores a otimizarem as suas operações, como GPS, sensores e ferramentas de análise de dados que fornecem dados, em tempo real, sobre a qualidade do solo e o seus estado de preservação, padrões climáticos e outros, permitindo uma melhor utilização da água, dos fertilizantes e pesticidas, reduzindo o desperdício e o impacto ambiental.
A mentalidade empresarial de colocar o digital a servir o propósito de diminuir impactos negativos e aumentar impactos positivos, a que se chama Technology Ecoadvantage, pode fazer muita diferença. Por exemplo, numa questão fundamental como a das emissões líquidas zero de Gases de Efeito Estufa (GEE) na atmosfera, a BCG prevê que, para uma organização de 80.000 pessoas, a combinação da automatização de processos, com a transparência de dados relativos às emissões de carbono, o desenvolvimento de produtos e serviços circulares, e com modelos de negócios sustentáveis, pode reduzir as emissões numa percentagem que varia entre os 45% e os 70%. Nesta redução, a maior contribuição advém da transparência de dados sobre emissões de carbono - ou seja, da visibilidade total destes dados, que permita processos de decisão, e a adoção de comportamentos, mais sustentáveis, de forma transversal, por toda a organização.
Em Portugal, com um tecido empresarial dominado por PME's, seria legítimo perguntar se existe capacidade de investimento na digitalização. Ora, segundo dados da IDC, empresa líder mundial na área de market intelligence, as empresas portuguesas investirão em tecnologia digital, durante o ano de 2024, valores que representam um crescimento sete vezes superior ao crescimento da economia portuguesa durante o ano, que se prevê seja de 1,2%, segundo dados do Banco de Portugal. Os gastos com Inteligência Artificial, Cloud e Cibersegurança, serão os mais significativos.
Tudo isto significa que existe uma consciência forte de que o investimento na digitalização é um fator fundamental de competitividade, o que justifica o nível dos investimentos feitos e os que estão previstos acontecerem. Apenas falta agora integrar que, também aqui, o investimento em sustentabilidade, através do digital, apenas contribui para exponenciar a competitividade, não apenas pelo lado das operações, mas também pelo desenvolvimento sustentável da cadeia de valor, pela maior resiliência dos sistemas, e pela preservação dos recursos.
Apenas um alerta que deixo: neste caminho de cruzar digital com sustentabilidade, seria bom que, para além dos potenciais ganhos com o bom desempenho ambiental, não se negligenciasse o maior de todos os ativos - as pessoas, e o seu bem-estar. E isso passa, necessariamente, por se fazer um processo de digitalização que seja inclusivo, capacitante e multiplicador de oportunidades para fornecedores, colaboradores e clientes. E tenho esperança de que, ao percebermos o que o digital pode fazer pela aceleração de um mundo melhor, consigamos ter incentivos extras, e motivação adicional, para fazermos o mais difícil - mudarmos o nosso próprio comportamento.