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A água e o luxo da negligência

A água e o luxo da negligência

Nas aulas de inovação social, uma das coisas que digo aos alunos, é que as iniciativas e projetos que têm como missão gerar impacto positivo na sociedade, se devem centrar em problemas que assumem uma especial relevância em termos de custos para a sociedade.  O que é o mesmo que dizer que são os problemas que representam a maior oportunidade para criar valor para a sociedade, quando resolvidos de forma eficaz e eficiente, gerando claros benefícios para os segmentos da população que são, direta e indiretamente, afetados pelo mesmo

Na definição do que é um problema relevante, para além da dimensão do universo de pessoas afetadas pelo problema, e da gravidade dos seus efeitos na sua vida, temos também outra variável que é fundamental. Se o problema é ou não negligenciado. Ou seja, se está a ser resolvido, de modo eficaz, pelo setor público, ou pelo próprio mercado. Caso não esteja, pode haver, no essencial, três razões para que isso aconteça:  

  • Ou o problema não é conhecido (está, por assim dizer, escondido); 
  • Ou é conhecido, e não é abordado, por não ser considerado fundamental; 
  • Ou é conhecido, é considerado relevante e está a ser abordado, mas não existe a capacidade para o resolver de forma adequada, nomeadamente porque as soluções que estão a ser implementadas são ineficazes, dispersas, ou desconectadas entre si e, por isso mesmo, inócuas do ponto de vista da mudança sistémica que é necessária. 

O caso da água (da sua escassez e da falta de uma gestão adequada da mesma), cai nesta última categoria de negligência, e é particularmente preocupante, nomeadamente no contexto de países desenvolvidos. Vamos tomar como exemplo a Europa. Existem muitos dados estatísticos que demonstram, de modo evidente, que este problema assume contornos alarmantes, apesar de estarmos a falar de países ditos "desenvolvidos". 

O WWF - World Wide Fund for Nature afirma, num estudo, que cerca de 17% da população europeia está em grande risco de escassez de água até 2050. Isto significaria um impacto de 13% no PIB Europeu.  Mas já nos últimos anos, segundo estimativas europeias, 30% da população europeia tem vindo a ser afetada por situações de carências no abastecimento de água a vários níveis, com repercussões domésticas e nos circuitos de produção das indústrias. O Observatório Europeu da Seca afirma que esta é já uma realidade com um grau de gravidade alto, em 10% do continente. Situações que classifica como situações de crise. No Sul da Europa, a situação é ainda pior. Deixo aqui alguns exemplos especialmente preocupantes: 

  • Em França, com especial incidência no Sul de França, há cerca de 6 meses, 68% dos níveis de água subterrânea do país estavam em risco; 
  • Em Barcelona, no ano passado, em abril, os reservatórios estavam em apenas 27% da sua capacidade. Em declarações públicas, a Ministra da Transição Ecológica prevê que a disponibilidade da água possa cair até 40%, até 2050; 
  • Em Portugal, e segundo declarações recentes do Ministro do Ambiente e Ação Climática, Duarte Cordeiro, a capacidade das albufeiras do Algarve está agora em 25% (contra 45% no período homólogo do ano passado).                                                               

Tudo isto deveria levar à classificação deste tema como prioritário. Para governos, gestores e cidadãos em geral. E não basta dizer aos sete ventos que é prioritária (o que nem sequer acontece com tanta frequência, a não ser nos momentos em que a seca aperta). É preciso acompanhar o verbo com ação. Ação determinada, acutilante e que antecipa as crises. Mas ainda não é isso que acontece - voltando ao exemplo de França, o ano de 2022 foi o ano mais quente de que há memória no País, mas o Governo só acionou o nível de crise e respetivo plano de emergência para a implementação das restrições de água, em julho.  E em Portugal, a situação não é diferente. Tudo demora a decidir, e a resposta vem de uma forma reativa, e apenas quando a realidade aperta.  

Mas então, por que razão não existe uma ação mais eficaz na resolução do problema? Existem vários fatores. Mas apontaria três. 

Por um lado, a gestão da água, tal como a gestão das florestas e outras matérias territoriais, parece ser cada vez mais vista, pelos governos, como armas de arremesso e negociação política. 

Por outro lado, as empresas, que estão em processo de transição para modelos de produção e de funcionamento mais sustentáveis, estão a fazê-lo, ainda, de uma forma muito lenta face ao ritmo das transformações que o Planeta tem vindo a sofrer. 

E, por fim, ao nível do cidadão comum, esta síndrome do "dar como garantidas" coisas tão básicas como um duche, ou deixar uma torneira a correr sem necessidade, apenas porque vivemos em sociedades desenvolvidas e preferimos acreditar que nada nos pode acontecer, faz lembrar a história do bebé que que chora quando o biberon acaba. É quase infantil não tomar consciência do problema e não agir de forma diferente - em casa, no trabalho, na comunidade na qual nos inserimos, e quando vamos de férias. Infantil e totalmente irresponsável. 

Vivermos em países desenvolvidos não nos deixa necessariamente numa situação de menor risco. Os sinais do encurtar do prazo para agir são óbvios, e a falta de resposta cabal, integrada e atempada, por parte destas sociedades ditas "mais preparadas", deixa uma enorme incerteza quanto ao futuro. Esta incerteza estende-se também aos países menos desenvolvidos, onde este problema já é, em muitos casos, uma questão de vida ou morte, e onde a dependência da cooperação internacional - que parece estar a falhar em grande escala - é muito grande.  

Esta é uma área na qual a colaboração entre setores diversos da economia é chave. No mundo das empresas, algumas empresas já estão a dar passos importantes. Em Portugal, para além do papel fundamental que a estrutura das Águas de Portugal tem vindo a assumir, foi criado, em 2022, por um conjunto de empresas, dinamizadas pela Católica-Lisbon, através do seu Center for Responsible Business, o “Pacto para a gestão da água em Portugal”. Neste manifesto, as empresas assumem compromissos para a implementação de medidas concretas mais sustentáveis e eficazes nas suas organizações, e também procuram colaborar para a aceleração desta agenda. Está previsto o lançamento de um estudo, promovido por este Pacto de empresas, para este primeiro trimestre do ano, que visa propor medidas de políticas públicas capazes de responder aos impactos da escassez de água em Portugal. 

É muito positivo e um sinal de esperança. Mas ainda a anos luz do ritmo de ação necessária para podermos ficar descansados.  

Fechar os olhos a este problema, é um luxo que não nos podemos permitir. E parece não haver forma de se abrirem os olhos e as consciências das pessoas. Não consigo entender por que razão somos tão difíceis e resistentes, no que toca a assumir atitudes responsáveis. Isto não é uma brincadeira de meninos. Não temos que andar permanentemente com a testa franzida, debaixo de uma nuvem cinzenta de preocupação. Mas já não há tempo para andarmos a tapar o Sol com a peneira, e a assobiar para o lado. 


Ser Ou Não Ser
Mário Henriques


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