Trabalho remoto, educação remota, comunicação remota. O grau de isolamento aumentou a níveis assustadores, ainda que aparentemente colmatados pela proximidade digital, ao segundo de um clique ou de uma vídeo chamada
Será que ainda podemos tomar uma decisão fundamental sobre a versão da humanidade que melhor serve os nossos interesses coletivos? Ou será que estamos num ponto de não retorno, no qual somos arrastados para uma decisão que nos parece ultrapassar? Qual o justo balanço, nesta ténue e delicada linha, que separa a tecnologia ao serviço das pessoas, das pessoas ao serviço da agenda da tecnologia?
Não querendo novamente entrar nos efeitos que a pandemia teve no mundo “tal como conhecemos hoje”, é inevitável deixar de pensar nos paradoxos que esse evento global teve, na sustentabilidade – a das pessoas e das organizações.
Se, por um lado, o avanço tecnológico e o digital permitiram que a vida continuasse a manter uma aparente normalidade e que a economia continuasse a suportar, com repercussões profundas ainda por avaliar, a subsistência, material e emocional, das famílias, também é certo que veio normalizar novas formas de trabalhar, produzir, comunicar e manter relações, não necessariamente “amigas” do inexpugnável apelo que a proximidade, afeto e relações presenciais representam na natureza de quem somos. E se é certo que foi ela – a tecnologia – que permitiu que o desastre não fosse tão grande, também é verdade que trouxe novos problemas que, apesar de já se adivinharem antes dela, se agravaram com ela.
Trabalho remoto, educação remota, comunicação remota. Muito remotamente equiparáveis ao que acontecia antes do Covid. O nível de aceleração que a necessidade provocou, não apenas no engenho, mas na rápida e irrefletida adoção de novos comportamentos, veio mexer com o nosso software de humanidade. O grau de isolamento aumentou a níveis assustadores, ainda que aparentemente colmatados pela proximidade digital, ao segundo de um clique ou de uma vídeo chamada.
No extremo oposto, o excesso de proximidade, sobretudo em ambientes de intimidade familiar, acentuou níveis de stress, de uma forma preocupante, segundo dados científicos de diversas fontes, nacionais e internacionais, como a Ordem dos Psicólogos, em Portugal e a World Health Organization. Para termos uma noção da quantificação disto, segundo a OMS, houve um aumento de 25% na prevalência de ansiedade e de depressão em todo o mundo, como consequência direta desta pandemia.
O ponto que quero deixar, para reflexão e sendo certo que ainda precisamos de amadurecer e ganhar perspetiva sobre o tema, provavelmente durante muitos anos porvir, é que, na minha opinião, a pandemia veio trazer ao conhecimento e ao pensamento de todos, uma situação que, nas suas raízes, já existia antes – a da dúvida sobre qual o justo balanço entre os prós e contras de uma crescente dependência de um mundo virtual que, paradoxalmente, cria oportunidades de evolução extraordinárias mas que, em simultâneo, gera alterações de paradigmas de relação humana, com consequências muito negativas para a saúde mental e física de todos nós. Ao exacerbar e pôr à nossa frente estas perguntas, a pandemia foi uma espécie de” amiga oculta”, que nos obrigou a olhar para esta questão de frente.
Existem paradoxos por integrar? Sim. São irresolúveis? Longe disso. Acredito mesmo que existe uma enorme oportunidade para afirmarmos agora a capacidade que temos demonstrado, ao longo da história de SER HUMANO, de excedermos as nossas próprias expectativas. Se usarmos a inteligência artificial ao serviço da inteligência emocional. Se nos focarmos na possibilidade de o SER DIGITAL nos conduzir a sermos mais atentos e conscientes da necessidade de preservar o nosso valor maior. O do humanismo no seu sentido mais essencial – cuidar de todos, com responsabilidade e, dessa forma, preservarmos a integralidade de quem queremos ser. Vamos muito a tempo. E para mim, não há opção – ser sustentável passa necessariamente por eliminar este aparente paradoxo. Há que optar apenas por uma via – a de usarmos a tecnologia ao serviço de todos, e não ao serviço de uns quantos. Simples, não é?