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Sínodo: lugar da mulher na Igreja Católica não fica igual

Sínodo: lugar da mulher na Igreja Católica não fica igual
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Todas as assembleias continentais apelam a que se aborde a participação das mulheres na governança. O sínodo que arrancou esta semana conta pela primeira vez com mulheres como participantes com direito a voto

Filipe d'Avillez

Um dos grandes temas que se espera ser abordado e discutido durante o Sínodo para a Sinodalidade, que começou esta semana em Roma, é o papel das mulheres na Igreja Católica. O tema marca fortemente o instrumentum laboris que servirá de guia para os trabalhos de um sínodo que só ficará concluído em outubro de 2024.

Nesse documento lê-se que “todas as assembleias continentais apelam a que se aborde a questão da participação das mulheres na governança, na tomada de decisões, na missão e nos ministérios a todos os níveis da Igreja, com o apoio de estruturas apropriadas para que isto não permaneça apenas uma aspiração geral”.

Afinal o que pode mudar na Igreja a este respeito? E qual é a situação atual?

O ponto de partida em 2023 não é o mesmo de há 10 anos. Por exemplo, e pela primeira vez, há mulheres entre os participantes com direito a voto, mais especificamente 54 de um total de 363. Pode parecer pouco, mas tendo em conta que este é um sínodo dos bispos; que tradicionalmente só os bispos é que tinham voto, e que os bispos são exclusivamente homens, ter uma taxa de votação feminina de 15% é sem dúvida inovador.

Também há dez anos não havia mulheres a ocupar cargos de secretária ou subsecretária de dicastérios no Vaticano, muito menos no organismo que seleciona e nomeia bispos para o mundo inteiro, para o qual Francisco nomeou três mulheres – todas consagradas – em julho deste ano.

A teóloga americana Phyllis Zagano, que tem desenvolvido muito trabalho sobre o papel da mulher na Igreja Católica, explica ao Expresso que “a questão da administração na Igreja já está resolvida. Desde a nova constituição apostólica Praedicate evangelium que qualquer leigo pode desempenhar qualquer posição na Cúria Romana que não implique o estatuto clerical”.

Já a teóloga Cátia Tuna, da Universidade Católica Portuguesa, considera que estas nomeações são “parte do caminho”, mas acrescenta que “são os paradigmas que a Igreja Católica tem sobre a sexualidade e sobre a autoridade que necessitam de ser repensados, num processo que será necessariamente lento e respeitador dos vários ritmos de uma Igreja que, sendo universal, cobre um número muito grande de culturas e mentalidades”.

Sacerdotisas? “Uma porta fechada”

A segunda parte da resposta de Cátia Tuna é crucial para compreender o ritmo dos processos de mudança na Igreja Católica. Apesar de sedeada em Roma, a Igreja é uma instituição universal que abrange muitas culturas e sociedades diferentes. As mudanças de paradigma são, por isso mesmo, necessariamente lentas.

Daí que, apesar de alguns dos delegados ao sínodo já terem dito que são favoráveis à ordenação sacerdotal de mulheres, o mais certo é que isso não aconteça nos próximos tempos, se é que alguma vez acontecerá.

A discussão sobre a ordenação das mulheres não é nova na Igreja e já foi abordada pelos mais recentes papas. João Paulo II chegou a declarar de forma definitiva que este é um assunto fechado e que não pode ser reaberto na Igreja, sublinhando, todavia, que tal não significa uma superioridade do homem sobre a mulher.

Na base da posição da Igreja está o facto de Jesus não ter escolhido qualquer mulher como apóstolo, embora tivesse muitas discípulas, incluindo algumas de grande influência na Igreja primitiva. Os apóstolos são considerados os primeiros membros ordenados da Igreja, de quem sucedem todas as ordens válidas, até ao tempo presente. A contra-argumentação de que Cristo não escolheu mulheres porque naquele tempo tal não seria socialmente aceite não colhe, considera-se, pois Jesus contrariou muitos outros tabus sociais de igual ou maior gravidade e porque a noção de sacerdotisa era, de facto, muito mais comum naquele tempo do que é atualmente. Pelo contrário, a opção de Jesus é vista como estando em linha com a instituição sacerdotal judaica, que também é unicamente masculina.

Cátia Tuna concorda, por isso, que esta “é uma porta muito difícil de abrir, na verdade. Na Ordinatio Sacerdotalis de João Paulo II, na Inter insigniores de Paulo IV e noutros pronunciamentos papais percebe-se que é um assunto que mexe com pressupostos sacramentológicos de grande porte, extremamente enraizados, que acumulam há séculos fundamentações ou argumentações teológicas. Esta verdadeira urbanização doutrinal criada em torno do sacerdócio será difícil de desmontar por causa da força de mentalidade que tem no mundo católico ocidental e não só, dos anticorpos existentes em relação às questões de género e pela irrevogabilidade ou mesmo infalibilidade com que João Paulo II decretou a exclusão das mulheres da ordenação sacerdotal”.

Então porquê a insistência em levantar recorrentemente o assunto? Os defensores da ordenação sacerdotal de mulheres acreditam que a “porta fechada” está, afinal, apenas encostada. Em causa não está o sentido – cristalino – do pronunciamento do Papa João Paulo II, mas sim a autoridade do mesmo, como ficou claro recentemente numa resposta enviada pelo Papa Francisco a questões colocadas por um conjunto de cardeais. “Em bom rigor, reconheçamos que não foi desenvolvida ainda uma doutrina clara e autoritativa sobre a exata natureza de uma ‘declaração definitiva’. Não se trata de uma definição dogmática, porém deve ser acatada por todos. Ninguém a pode contradizer, porém pode ser objeto de estudo”, lê-se.

Cátia Tuna levanta ainda outra questão que não pode ser ignorada, nomeadamente, “os problemas gerados em igrejas que optaram por um caminho diferente.” Na verdade, a questão da ordenação sacerdotal de mulheres foi um dos grandes fatores que contribuiu para a divisão aparentemente irremediável que existe na Comunhão Anglicana, sendo essa uma realidade que ninguém quererá importar para a Igreja Católica.

É preciso ter em conta que, para quem não acredita que a Igreja tenha autoridade para mudar o status quo, a ordenação sacerdotal de mulheres teria uma série de ramificações graves. Se, de facto, o sacramento não tem efeito nas mulheres, então segue-se que elas também não poderão exercer certos sacramentos de forma válida. Assim, quem se confessasse a uma mulher não receberia absolvição e as ordenações efetuadas por bispas (pois uma vez padres não haveria qualquer razão teológica para não receberem também ordenação episcopal) também seriam inválidas, inserindo uma quebra na sucessão apostólica para futuras gerações.

Diaconisas com ou sem sacramento?

Tudo aponta, por isso, para que não seja feita qualquer mudança a respeito da ordenação sacerdotal de mulheres, mas a ordenação diaconal pode ser outra história.

O sacramento da ordem na Igreja Católica tem três graus: diácono, sacerdote e bispo. Se é verdade que a ordenação sacerdotal ou episcopal de mulheres seria algo inédito, tal não é tão claro para a ordenação diaconal. Há registos de diaconisas em tempos passados na Igreja, e estas continuam a existir, embora em número reduzido, em algumas Igrejas ortodoxas. O que não é certo é se o termo se refere a uma ordenação sacramental, ou apenas a um cargo que era dado a mulheres que mais facilmente podiam ministrar a outras mulheres em certos ambientes sociais.

Phyllis Zagano foi uma de 12 especialistas nomeados pelo Papa Francisco para estudar a questão das diaconisas na Igreja Católica, em 2016. “A questão da recuperação do diaconato feminino tem três partes: histórica, teológica e antropológica. O debate histórico sobre se as mulheres recebiam uma ordenação sacramental não pode ser resolvido, por falta de informação. Contudo, com base nas cerimónias litúrgicas, que cumprem os requisitos da ordem sacramental segundo o Concílio de Trento, devemos admitir que pelo menos algumas mulheres foram ordenadas sacramentalmente no passado”, diz.

“Teologicamente, não existe barreira, a não ser que se tome a posição de que as mulheres não podem ser imagem de Cristo, o Ressuscitado”, acrescenta Zagano ao Expresso, explicando depois que “o diaconado e o sacerdócio são ordens distintas, o primeiro não depende do outro, nem conduz a ele, tanto que existem 47 mil homens que exercem atualmente o diaconado como estado e vocação permanente." São homens casados que exercem vários serviços na Igreja, incluindo a celebração de exéquias e de batismos, mas não podem confessar, nem celebrar missa. Por fim, conclui que “antropologicamente a questão leva-nos de volta à afirmação de que a mulher não pode ser imagem de Cristo, o que indicaria que as mulheres não são feitas à imagem e semelhança de Deus”.

Para Cátia Tuna, contudo, esta é uma questão que ameaça remeter para segundo plano aquilo que é essencial. “Por um lado, seria um passo com um impacto positivo, por outro, a questão não é se as mulheres podem ou não ser diaconisas ou bispas. Se isso perpetuar uma lógica de autoridade, se confirmar um modelo hierárquico em detrimento da colegialidade e da sinodalidade, de pouco vale”, diz.

A sua posição vai ao encontro de quem considera que num tempo em parece estar em curso um combate ao clericalismo, a clericalização das mulheres não deve ser caminho nem prioridade. O facto de este sínodo ser precisamente sobre a sinodalidade, e de o Papa ter feito questão de dar voz a leigos, homens e mulheres, pode indicar que Francisco pensa da mesma forma. Seja como for, nenhuma mudança deve ser esperada a curto prazo. Citando uma das participantes no sínodo, a teóloga Klára Csiszar, em declarações à imprensa austríaca, “não vamos ordenar diaconisas em novembro”.

Mulheres de vermelho?

Se a mera questão de ordenar mulheres para o diaconado, o mais baixo dos graus do sacramento da ordem, tem tantas implicações e levanta tantos obstáculos, então valerá a pena sequer pensar em ver mulheres representadas no Colégio dos Cardeais? Surpreendentemente, isso pode até ser mais viável.

O cardinalato não é uma ordem, é apenas um cargo. Atualmente as regras dizem que os cardeais devem ser bispos ou, caso não sejam, ordenados bispos o mais brevemente possível. Mas não existe qualquer razão teológica para que o cardinalato seja limitado a pessoas ordenadas, e há até precedentes históricos de cardeais leigos na história recente da Igreja.

Num artigo na revista America, dos jesuítas, Phyllis Zagano escreve que “na década de 60, Paulo VI considerou tornar o filósofo francês Jacques Maritain cardeal leigo, ideia que foi rejeitada pelo próprio. E existe um boato de que a Madre Teresa rejeitou a proposta do Papa João Paulo II de que ela se tornasse cardeal”.

Caso o Colégio Cardinalício fosse repensado para poder incluir leigos, não haveria qualquer problema de fundo para a nomeação de mulheres, sendo que estas estariam naturalmente excluídas de serem eleitas para Papa, uma vez que esse cargo, sim, depende do sacramento da ordem, pois o Papa só o é por ser Bispo de Roma.

As mulheres e os abusos na Igreja

Não obstante toda esta discussão, seria disparatado pensar que as mulheres não exercem já um papel de enorme valor no dia-a-dia da Igreja, se não em altos cargos em Roma, pelo menos no terreno. O instrumentum laboris reconhece-o quando afirma que “as mulheres desempenham um papel importante na transmissão da fé, nas famílias, nas paróquias, na vida consagrada, nas associações e movimentos, nas instituições laicais, como professoras e catequistas”.

Um aspeto em que a Igreja poderá beneficiar diretamente do envolvimento maior de mulheres em posições de liderança e de tomada de decisão, ou pelo menos de aconselhamento próximo de quem o faz, é na forma de lidar com situações de abuso sexual.

Nos relatos que chegam tanto de padres acusados – alguns deles já ilibados – como de vítimas, as descrições dos encontros com bispos ou seus representantes são frequentemente constrangedores, demonstrando uma falta de tato e de cuidado que são inaceitáveis para uma Igreja que se afirma mãe.

Phyllis Zagano concorda, mas diz que esse é apenas parte de um problema maior, que é, novamente, o clericalismo. “Penso que ajudaria haver mais mulheres em posições de liderança, mas só se os bispos forem formados para se relacionar com as mulheres como adultas”, diz. “Parte do problema, em todo o mundo, tem sido (e talvez ainda seja) a incapacidade de levar a sério os leigos, sejam homens ou mulheres".

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