Exclusivo

Migrações

Provedoria de Justiça recebe queixa coletiva com 600 assinaturas contra operação policial no Martim Moniz

Provedoria de Justiça recebe queixa coletiva com 600 assinaturas contra operação policial no Martim Moniz

A iniciativa cidadã é liderada (simbolicamente) pela Associação Renovar a Mouraria, que trabalha no terreno. Documento será entregue esta segunda-feira às 10h, na presença de vários signatários, entre líderes comunitários, políticos e figuras da Cultura. Para dia 11 está marcada uma manifestação entre a Avenida Almirante Reis e o Martim Moniz

Provedoria de Justiça recebe queixa coletiva com 600 assinaturas contra operação policial no Martim Moniz

Raquel Moleiro

Jornalista

Provedoria de Justiça recebe queixa coletiva com 600 assinaturas contra operação policial no Martim Moniz

Hugo Franco

Jornalista

Cerca de vinte dias após a intervenção policial na zona do Martim Moniz, no centro de Lisboa, a Provedoria de Justiça recebe esta segunda-feira uma queixa coletiva com cerca de 600 assinaturas contra a operação da PSP, que consideram "lesiva de princípios fundamentais do Estado de Direito", ao incluir "a revista de dezenas de cidadãos encostados à parede, “perfilados e de mãos levantadas, sem qualquer indicação de suspeita de prática de crimes”.

Encabeçada por associações locais e organizações de migrantes, a iniciativa é subscrita por vários deputados - Isabel Moreira e Ana Mendes Godinho, do Partido Socialista, Joana Mortágua e José Soeiro, do Bloco de Esquerda, ou a líder parlamentar do Livre, Isabel Mendes Lopes -, figuras da cultura - o encenador Tiago Rodrigues, a presidente da Fundação Saramago, Pilar del Rio, ou a promotora musical Maria Escaja -, representantes de comunidades migrantes, ativistas e muitos cidadãos anónimos.

“Tal atuação configura, a nosso ver, uma utilização de meios desproporcionais em relação aos fins anunciados: a forma como a operação foi conduzida fere o princípio da proporcionalidade previsto no artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa e também os direitos fundamentais à dignidade da pessoa humana e à presunção de inocência”, consideram.

A queixa refere ainda que encostar cidadãos à parede “de forma ostensiva, sem indicação de suspeitas concretas de envolvimento em crimes, e adotando procedimentos invasivos” configura uma “atuação desnecessária e humilhante” por parte das autoridades. “A justificar-se uma intervenção na zona, esta nunca pode implicar uma atuação simbólica e individualmente vexante”, refere o texto.

Os promotores consideram "particularmente preocupante" que este tipo de operações ocorra “numa área da cidade predominantemente frequentada por comunidades imigrantes, levantando dúvidas sérias sobre a equidade no tratamento de cidadãos em função do local onde habitam ou transitam”. Refere o texto que “estas ações dificilmente teriam lugar em outras áreas da cidade, facto que aprofunda a perceção de desigualdade no tratamento de diferentes comunidades. Tais ações contrariam os valores da democracia e os valores republicanos e criam um ambiente de desconfiança entre a população e as forças de segurança”.

O documento vai ser entregue simbolicamente pela associação Renovar a Mouraria, uma organização apolítica e local que atua na zona do Martim Moniz. "A iniciativa resulta de um coletivo cidadão. Logo no dia seguinte à operação policial, pensámos em apresentar uma queixa, juntamente com mais organizações. Entretanto percebemos que havia outro grupo da sociedade civil com uma ideia semelhante. Então unimos os esforços, todos juntos no mesmo grupo de whatsApp, e o movimento foi crescendo de forma orgânica, sem que haja um promotor ou protagonista principal", explica Filipa Bolotinha, coordenadora da associação. As redes sociais ajudaram a disseminar a queixa e a acrescentar nomes num 'google doc' que foi somando nomes até domingo.

Esta segunda-feira, às 10h, Filipa terá ao seu lado no Palácio Vilalva, onde se situa a Provedoria, outras ONG, como a Casa do Brasil ou a Casa da Índia, mas também representantes partidários e cidadãos anónimos. "Independentemente da ideologia de cada um, é um grupo de pessoas que representa o descontentamento generalizado da sociedade civil sobre o que aconteceu no Martim Moniz. Não foi justo nem razoável", acrescenta a líder associativa. "É mesmo importante que não se use este território como bode expiatório para alimentar narrativas que fomentam ainda mais o ódio".

E por isso o movimento pede à provedora Maria Lúcia Amaral para "averiguar e apurar a legitimidade e proporcionalidade" da atuação policial.

No dia 11, há um protesto de rua marcado para as 15h. Sob o mote "Não nos encostem à parede", a manifestação vai descer a Avenida Almirante Reis em direção ao Martim Moniz "contra o racismo e a xenofobia, para exigir dignidade, direitos sociais e liberdade para quem vive e trabalha em Portugal".

Uma rua contra a parede

Na tarde de 19 de dezembro, uma quinta-feira, um forte dispositivo policial cercou a rua do Benformoso, em Lisboa, onde dominam, entre residentes e comerciantes, os cidadãos do subcontinente indiano, nomeadamente do Bangladesh e da Índia. A PSP revistou dezenas de pessoas, que ficaram entre uma a duas horas viradas para a parede, tendo sido captadas imagens que rapidamente circularam pelas redes sociais e chegaram aos media.

A PSP explicou que esta operação especial de prevenção criminal foi validada por uma procuradora do Ministério Público, que liderou os seis mandados de busca não domiciliária, e começou a ser preparada em setembro, altura em que a polícia coligiu dados sobre 52 crimes praticados com armas brancas em quase dois anos em três zonas específicas: Largo do Martim Moniz, Rua do Benformoso e Largo de São Domingos. “Decorre de uma extensa análise de denúncias e participações, do relatado pelos ofendidos”, confirmou então a Direção Nacional da PSP ao Expresso, o que tornou a zona altamente referenciada pelas autoridades.

O Expresso sabe que grande parte dos ataques com facas tiveram como autores e também como vítimas elementos da comunidade indostânica. Mas não foram os únicos casos, havendo igualmente registo de suspeitos de outras nacio­nalidades, incluindo portugueses. “A operação não se cingiu à comunidade imigrante e nada tem a ver com perseguição a minorias étnicas. Os dois detidos têm nacionalidade portuguesa”, explica fonte próxima da Direção Nacional da PSP.

Duas pessoas, de nacionalidade portuguesa, foram detidas no âmbito desta operação policial, uma por posse de arma proibida e droga e outra por suspeita de pelo menos oito crimes de roubo. Foram ainda apreendidos 3435 euros em dinheiro, sete bastões (madeira e ferro), 17 envelopes com fotos tipo passe suspeitas de serem para uso em atividades ilícitas, um passaporte e diversos documentos de potencial auxílio à imigração ilegal, 581 gramas de droga, uma arma branca e um telemóvel que constava como furtado.

Em conferência de imprensa, o superintendente Luís Elias, que lidera o Comando Metropolitano de Lisboa, garantiu que na operação foi respeitada a "dignidade de todas as pessoas" e que "não houve incidentes a registar", tendo identificado cidadãos, independentemente de serem portugueses ou estrangeiros.

Sobre o modus operandi, fontes oficiais da PSP explicam ao Expresso que se enquadrou na lei e que não foi a primeira vez que tal aconteceu, servindo o procedimento de isolar as pessoas na rua para “proteger os agentes e também as outras pessoas alvo de revista no caso de alguém reagir e ameaçá-las com uma arma”.

O primeiro-ministro admitiu que as imagens de imigrantes encostados à parede no Martim Moniz não são positivas. "Não gostei de ver. É uma situação anómala, que não é o dia a dia", disse Luís Montenegro, em entrevista ao "Diário de Notícias". Contudo, o chefe de Governo não considera que a ação policial mereça reparos: "Não vi ali nenhum desrespeito pela dignidade das pessoas. Aquilo que me pareceu foi que estávamos na presença de uma medida de operacionalidade que não tinha alternativa".

A Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) abriu um processo administrativo para avaliar a operação. "Em função das recentes reações públicas à operação especial de prevenção criminal realizada pela Polícia de Segurança Pública no Martim Moniz, em Lisboa, a Inspeção-Geral da Administração Interna decidiu, por iniciativa própria, proceder à abertura de um processo administrativo, com vista à análise do enquadramento e contexto em que a referida operação foi determinada e teve lugar", revelou em comunicado. "Trata-se de um processo de natureza não disciplinar e que visa reunir informação para análise interna por parte da Inspeção-Geral da Administração Interna, no âmbito da sua missão legal".

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: RMoleiro@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate