A contrafação de marcas de luxo está a melhorar e a piorar

Na crónica ‘Sem Preço’, a jornalista Catarina Nunes escreve sobre o que era pós-verdade e as ‘réplicas originais’ significam para os produtos de luxo
Na crónica ‘Sem Preço’, a jornalista Catarina Nunes escreve sobre o que era pós-verdade e as ‘réplicas originais’ significam para os produtos de luxo
Jornalista
O título desta crónica não é uma contradição, mas antes duas faces da mesma moeda. As falsificações de produtos de marcas de luxo estão cada vez mais sofisticadas, sendo praticamente impossível distinguir o verdadeiro do falso. E há toda uma nova geração que considera legítimo comprar e promover a contrafação ou os seus sucedâneos, como os duplicados (‘dupes’, no léxico do TikTok), apoiando-se nas virtudes e nas falhas das plataformas digitais.
O tema não é novo. Paris tem um Museu da Contrafação desde 1951, que apresenta produtos originais lado a lado com as suas réplicas, assinalando as diferenças (cola em vez de pontos cosidos, plástico em vez de couro). O que se passa agora é que não é preciso ir a feiras, à Ásia ou a Canal Street, em Nova Iorque. As redes sociais e o comércio eletrónico põem na palma da mão todas as imitações disponíveis no mundo, enquanto a aceitação da pós-verdade torna uma versão que aparenta ser verdadeira mais relevante do que o original. É neste contexto que o conceito de ‘réplicas originais’, cunhado recentemente em Portugal por uma revendedora de falsificações nas redes sociais, é argumento de venda.
A contribuir para a normalização das imitações e das cópias está também a revolta contra a subida dos preços de produtos icónicos de algumas marcas de luxo desde a pandemia, o desejo aspiracional dos jovens e da classe média e o sentimento de ‘consumo inteligente’, que é exibido e glorificado nas redes sociais. Deixou de haver vergonha e estigma no uso de falsificações, que até são vistas como atos de rebeldia contra o sistema que torna as marcas de luxo acessíveis apenas a uma minoria. Este movimento é apoiado também com o aumento dos relatos nas redes sociais de algumas malas de luxo verdadeiras que se estragam rapidamente, devido a uma alegada diminuição da qualidade do fabrico.
Entretanto, o combate às falsificações soma e segue, com os investimentos gigantescos das marcas de luxo em protocolos e tecnologias de autenticação, nomeadamente para rastrear a origem e os proprietários dos produtos, salvaguardando os originais que vão parar a plataformas de segunda mão ou de revenda, onde qualquer pessoa põe à venda o que entender. As apreensões de artigos contrafeitos estão a aumentar ou são mais noticiadas na imprensa nacional e internacional, seja nos países onde são mais produzidos ou nos destinos de venda.
No final de 2022, as autoridades chinesas destruíram 3.000 toneladas de artigos falsos avaliados em 69 milhões de dólares. Em Portugal, a operação ‘Malas Douradas’ desmantela uma rede a operar com diretos nas redes sociais a promover ‘réplicas originais’, por crime de venda ou ocultação de produtos contrafeitos, fraude fiscal e branqueamento de capitais. Em fevereiro, a GNR já tinha desmantelado duas fábricas, no Porto e em Braga, apreendendo 23.000 imitações de marcas de luxo, avaliadas em €1,3 milhões. Numa operação de dimensão menor, esta quarta-feira, 10 de maio, quatro homens com idades entre os 48 e os 60 foram identificados, por venda de artigos contrafeitos em Vilamoura.
Nem a maior no comércio eletrónico escapa ao cerco, com o Tribunal de Justiça da União Europeia a querer responsabilizar a Amazon pela venda de contrafação por terceiros na sua plataforma. Os números globais são alarmantes e fica por saber se refletem o sucesso das atuações legais ou o aumento da produção de imitações: o mercado das falsificações triplicou desde 2013 e está avaliado em três biliões de dólares, segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico.
A contrafação é crime e na via das dúvidas quando um produto custa cerca de 10% do preço real é seguramente uma imitação, mesmo que aparente estar em conformidade. É parte da narrativa de quem vende falsificações dizer que se tratam de sobras de coleção, produtos verdadeiros que não passaram nos testes de qualidade ou produzidos com restos de matérias-primas dos originais. Haja ou não fundo de verdade em algum destes argumentos, é cada vez mais fácil e barato produzir réplicas a partir de um artigo original, faturando à custa dos investimentos das marcas em publicidade, patrocínios, lojas e endorsement de celebridades. Em cima disto, os artigos verdadeiros perdem valor ao não serem distinguíveis dos falsos, que custam uma fração do preço.
Na edição de 5 de maio, o The New York Times dá conta do crescimento acelerado da quantidade e qualidade da contrafação de produtos de luxo, nomeadamente na China, através de tecnologias e cadeias de abastecimento difíceis de rastrear. Resultado: malas Chanel a €200 que não apresentam diferenças em relação ao original de €10 mil, coincidindo não só no tipo de pele, ferragens e acabamentos, como no número de série, QRCode e certificado de autenticidade. Qual é então a definição de um produto autêntico na era pós-verdade? O que dá o máximo benefício pelo mínimo custo possível. Curiosamente, as vendas dos originais estão igualmente em alta, com os maiores grupos e marcas de luxo a apresentar aumentos na faturação e nos lucros.
A reboque das contrafações cresce um sub-produto que também não é novo, mas que se populariza e ganha dimensão na Internet. Os ‘dupes’ (versão curta de duplicates) são versões baratas de um artigo de luxo ou de preço elevado. Copiam o design dos originais ou utilizam os ingredientes utilizados nas formulações legítimas, no caso da cosmética e dos perfumes, categorias atualmente mais afetadas pelo fenómeno. A diferença em relação à contrafação é que os duplicados não se apropriam dos logotipos das marcas originais, são antes ‘parasitas’ que se alimentam da reação emocional a algo aparentado com um produto que é a tendência definida por marcas de luxo.
É o que fazem há décadas cadeias como a Zara e a H&M, ao produzir roupas com materiais, padrões e design identificáveis com os das coleções das marcas de luxo. O mesmo acontece - a preços muito inferiores - na Shein, na Primark e até mesmo na Amazon, entre tantas outras, numa infinidade de sites e lojas físicas. Apesar de desafiarem as práticas legais, os ‘dupes’ são menos desonestos, não se promovem como uma coisa que não são. Assumem-se como ‘cópias inspiradas’ em vez de se aproveitarem da incapacidade para distinguir o que é original do que é falsificação, num cenário em que nas pesquisas na Internet aparecem dezenas de fotografias para o mesmo artigo. O comércio eletrónico, aliás, contribui para que perante peças com aspeto idêntico tendemos a optar pela mais barata, mesmo que a intenção até não seja comprar uma imitação.
A procura de falsificações não é um exclusivo da Internet, dos jovens e da classe média, abrangendo também influenciadores digitais e consumidores com capacidade financeira para comprar originais. Nos Estados Unidos são comuns as reuniões género Tupperware, em que se vendem imitações de carteiras de marcas de luxo, promovidas por revendedoras, donas de casa ricas, junto de mulheres com o mesmo perfil, que na maioria das vezes já têm uma extensa coleção de originais, que alargam por uma fração do custo real.
O Reddit tem uma sub-comunidade dedicada ao tema, a RepLadies, que reúne norte-americanas afluentes interessadas em comprar réplicas de tudo e mais alguma coisa, não necessariamente por falta de dinheiro. É que grande parte da satisfação emocional vem da compra de pechinchas, em pouco ou nada diferentes dos originais, sem ter de enfrentar as filas de espera por determinado produto, que podem demorar anos, como acontece em modelos da Hermès como a Birkin.
Uma pesquisa e análise da plataforma Business of Fashion, divulgada em março, indica que a maioria dos consumidores da geração Z sente-se confortável a comprar cópias de artigos de marcas de luxo e considera aceitável que os outros façam o mesmo. O que as novas gerações estão a fazer é normalizar uma forma de acesso a produtos inacessíveis. E se as marcas não os tornam acessíveis, há uma infinidade de fabricantes aperfeiçoados e disponíveis para lhes dar o que querem.
Além da luta contra quem produz e revende, o novo desafio das marcas de luxo é lidar com o enquadramento ético da geração que mais contribui para o crescimento das vendas das marcas de luxo. Há uma semana, a 7 de maio, a Lululemon promoveu um evento no Century City Mall, em Los Angeles, em que ofereceu umas leggings Align High Rise, o modelo mais copiado da marca, a quem entregasse a versão imitada. Resta saber se esta abordagem não aumentará ainda mais a corrida às falsificações.
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