Venturas e desventuras de um certificador de recordes do Guiness: "O desejo de ser o melhor faz parte dos humanos"
Jack Brockbank, adjudicador dos recordes do Guiness, junto à construção de areia que fixou um novo máximo em altura
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Há 16 anos que Jack Brockbank viaja para locais distantes para certificar recordes do Guiness. Há quem junte aldeias inteiras nos confins da Rússia a saltar ao pé-coxinho e há quem faça dos atributos especiais um trunfo. Mais recentemente, são as empresas que veem nos recordes uma forma de se distinguirem da concorrência
O maior ‘macaco do nariz’ continua ao alcance de quase toda a humanidade e Jack Brockbank admite estar preparado para cumprir a missão de adjudicador de Recordes Mundiais do Guiness no dia em que deparar com tal façanha. “Temos outras pessoas que fazem essa seleção no dia-a-dia, mas diria que, se cumprir as regras, então há a possibilidade de vir a ser aceite. Não vamos rejeitar coisas só porque são um pouco rudes”, responde o técnico dos recordes do Guiness.
Nos últimos 16 anos, Jack Brockbank tem vindo a percorrer mais que um continente para dar resposta aos apelos de novos candidatos a recordes mundiais. Alguns casos aparentam valer mais pelo arrojo do que pela utilidade – mas para quem anda no circuito é o próprio conceito de utilidade que ganha um novo significado. Brockbank prefere enquadrar os famosos recordes como uma jornada da humanidade rumo à perfeição ou, pelo menos, como um exercício de imaginação no que toca a feitos inéditos.
“Este desejo de ser o melhor faz parte da psicologia humana. Acredito que é algo que os humanos procuram alcançar, independentemente de quão específicas sejam essas coisas”, responde.
É este mesmo móbil que tanto o leva a viajar ao norte da Rússia para assistir a uma aldeia inteira a saltar ao pé-coxinho durante um minuto, como recentemente o conduziu a Sintra para atestar o recorde do maior número de utilizadores a transmitirem vídeos a partir do mesmo router Wi-Fi, que viria a dar o mote à NOS para mais uma campanha publicitária. Não será a primeira vez que acontece este tipo de simbiose empresarial – e possivelmente não será a última.
“Por vezes trabalhamos com marcas e empresas que querem anunciar os seus feitos mais fantásticos. É algo que pode ser usado como uma ferramenta de publicidade ou de relações públicas. Desde que tenha sido alcançado de forma correta e siga as regras, não temos problemas de trabalhar com marcas”, refere Brockbank.
“Estes recordes relacionados com a acessibilidade são também uma forma de promover a sustentabilidade de que o mundo precisa”, começa por responder o adjudicador de recordes. “Temos de nos manter relevantes e acompanhar as transformações da sociedade, para podermos que os nossos recordes e categorias de recordes vão evoluindo”, responde Jack Brockbank.
Casos como o do bulldog que atravessa sobre skate o maior túnel formado por pernas de humanos ou do maior número de uvas comidas depois de recolhidas com os dedos dos pés, ou até o jovem com o cabelo mais longo do mundo, tendem a ser mais questionáveis no que toca à sustentabilidade, mas ninguém no Guiness renega a vertente de negócio associada ao mediatismo, apesar de o certificado não ser acompanhado de qualquer prémio pecuniário. E, nalguns casos, como o cão mais velho do mundo, que morreu recentemente na zona de Leiria, tal prémio teria de ser atribuído ao dono – e não ao fiel amigo de quatro patas.
Aos 15 anos, o indiano Sidakdeep Chahal tornou-se no jovem com o cabelo mais longo do mundo
“Há pessoas que, depois de quebrarem o recorde, acabam por aparecer várias vezes na TV, ou se tornam ‘influencers’ (com canais de vídeo ou endereços de Internet). Superar um recorde é algo que os ajuda, põe-nos no mapa. Mas, sim, há um sem número de motivos para tentar quebrar um recorde, nós só estamos aqui para registar o que é feito e garantir que as coisas são feitas como deve ser”, acrescenta Brockbank.
Foi para aparecer no mapa que uma aldeia alemã solicitou os préstimos de adjudicadores como Jack Brockbank para atestar, recentemente, a maior concentração de máquinas que fazem vindimas, mas noutros casos é o espírito competitivo que empurra os limites de um novo recorde.
O profissional dos recordes do Guiness dá como exemplo uma disputa a que assistiu com os próprios olhos: “Lembro-me de um candidato belga que bateu o recorde de um candidato arménio no número de elevações efetuadas num minuto a partir [das barras de aterragem] de um helicóptero enquanto voa a pouca distância do solo. Nessa vez, conseguiu o recorde com 25 elevações. Pouco depois, outra pessoa na Arménia bateu esse recorde”.
Os recordes do Guiness só podem ser atribuídos a feitos mensuráveis e registáveis – e que não fomentam maus hábitos ou estilos de vida pouco saudáveis. Qualquer uma dessas razões serviria logo para pôr de parte uma hipotética candidatura da pessoa que passou mais tempo sem beber água, pois implica acompanhá-la ao longo de vários dias a cumprir uma prática que notoriamente é desaconselhável. O mesmo se aplicará a quem tentar bater o recorde da pessoa que bebe mais álcool.
O facto de restringir práticas pouco saudáveis não impede os recordes do Guiness de atribuírem certificados a “duplos” que arriscam a integridade física com algumas façanhas. Mas também não se pense que as proezas são exclusivas de profissionais. “Na Chéquia, houve um tipo fantástico que garantiu o recorde da prancha abdominal mais longa. Não é um atleta profissional, mas conseguiu manter-se na posição de prancha abdominal durante 9 horas e 38 minutos. Foi um dos recordes que acompanhei não há muito tempo”, refere o adjudicador.
E quando tudo falha?
O inconfundível sotaque e o blazer azul com o emblema dos recordes do Guiness bem visível emprestam a formalidade que geralmente se costuma associar ao estereótipo do cidadão britânico. E foi assim, trajado a rigor, que num dos casos mais recentes Jack Brockbank teve de encontrar boleia no meio de montanhas italianas depois de uma pequena multidão ter frustrado o recorde mundial da maior parada de tochas acesas.
Jack Brockbank de passagem por Portugal enquanto certifica mais um recorde
DR/NOS
“Eles não conseguiram fazer todo o caminho de volta. As coisas mais simples podem correr mal num determinado dia. E essa pode ser a parte mais difícil do meu trabalho, quando tenho de dar as más notícias. Porque, obviamente, as pessoas preparam-se tanto, têm a cabeça e a alma centradas naquele momento e eu torno-me o mau da fita que lhes tem de dizer que não”.
Brockbank acredita que os aficionados das tochas apenas terão ficado cegos pela desilusão e não terá sido um ímpeto de vingança que os levou a deixarem-no sozinho e vestido a rigor no meio do não menos rigoroso clima das montanhas, até conseguir uma boleia de uma senhora benevolente que passou ali por acaso.
“Geralmente, as pessoas são bem educadas e razoáveis, mas obviamente ficam desapontadas [quando não conseguem o recorde]. Da minha parte, torno sempre bem claro que estes são os Recordes Mundiais do Guinness. Não são fáceis de alcançar”, sublinha.
Este “árbitro” dos recordes mundiais admite que também há deslumbrados da perfeição que tentam a todo o custo evitar os piores desfechos, mas com batota. Há casos de retirada de recordes que se verifica mais tarde terem sido obtidos de forma ilegítima. O adjudicador garante que são situações raras, assim como muito poucas vezes deparou com casos em que o engenho humano é aplicado em feitos diferentes daqueles que é suposto certificar.
“A maioria das pessoas não tem esse tipo de intenções, mas já houve quem tentasse enganar-me. Felizmente foi algo que consegui detetar”, acrescenta. Mesmo com a fasquia tão elevada, não param de proliferar candidatos e recordes – mesmo dos menos imagináveis. Os recordes do Guinness dão e recebem algo em troca. E é esse o segredo do sucesso, mesmo face à concorrência que já vai surgindo a nível internacional.
“O livro dos recordes do Guiness continua no topo de vendas de cada Natal. É um campeão de vendas desde que começou a ser publicado. Penso que se deve às crianças, que são uma grande parte da nossa audiência, mas também aos adultos que continuam a ser fãs destes livros”, conclui o adjudicador britânico.
Bem vistas as coisas, todos os dias são bons para uma façanha.