Covid-19. O Natal teve ou não influência no que se está a passar agora? Dois especialistas dizem que sim (e vaticinam o que aí vem)
ARND WIEGMANN/REUTERS
Segundo Henrique Oliveira, matemático e professor do Instituto Superior Técnico, este aumento do número de casos e de óbitos era previsível, estando "completamente associado aos dias à volta do Natal". Já o médico de saúde pública Bernardo Mateiro Gomes fala em três factores que explicam a atual situação da pandemia: Unidades de Cuidados Intensivos, Natal e agravamento das condições meteorológicas
Portugal bateu hoje novos recordes da pandemia, com mais 10.176 infetados e 118 mortes, depois de dois dias com números quase da mesma grandeza, e o país está novamente em Estado de Emergência, desta vez de apenas oito dias, à espera de uma reunião com os especialistas na próxima terça-feira, 12 de janeiro. Afinal, já estamos a sofrer ou não os efeitos das épocas festivas? Especialistas ouvidos pelo Expresso dizem que sim.
Passaram sensivelmente duas semanas desde o Natal, pelo que a atual situação bate certo com as contas que os técnicos fazem: 14 dias após o contágio, os casos identificados começam a surgir nos boletins da Direção-Geral da Saúde. Ao contrário do que aconteceu no Ano Novo, no Natal houve um relaxamento que permitiu reuniões familiares. Os dados oficiais estão agora a revelar máximos nunca antes vistos desde o início da crise sanitária no país, em março. “Estes números carregam três pilares: um planalto importante de casos, com 500 camas de cuidados intensivos ocupadas em dezembro; o aumento da agregação de pessoas nas festas, que infelizmente não se resumiu a pequenos encontros natalícios; e também o agravamento das condições meteorológicas que são mais propícias à transmissão”, explica ao Expresso Bernardo Mateiro Gomes, médico de Saúde Pública.
Henrique Oliveira, matemático e professor do Instituto Superior Técnico (IST), é ainda mais taxativo sobre a associação dos números atuais ao Natal: “De certeza absoluta, sem sombra de dúvidas. Até é demonstrável matematicamente. O que o primeiro-ministro, António Costa, disse não é fundamentado cientificamente: ele disse ontem [quinta-feira] que não se sabia se se podia associar ao Natal. Não é verdade, é completamente associado aos dias à volta do Natal. Há uma série de indicadores que nos dão isso.”
E específica: “A densidade de deteção aumentou. Ou seja, a percentagem de positivos face ao número de testes realizados aumentou muito. Não sou eu que o digo, é o Carlos Antunes, da Faculdade de Ciências, que trabalha para a DGS. O tempo de reação do sistema é exatamente 14 dias. Some duas semanas a 24, 25 e 26 e veja em que dias aparecem os casos. O tempo de reação do sistema às medidas, sejam de relaxamento ou de aperto, é sempre 14 dias. É muito rigoroso, está mais do que estabelecido.”
O matemático do IST explica como se desenvolve o processo, desde o contágio à contabilidade diária da DGS: apesar de serem necessários 14 dias para surgirem nos dados da DGS, os contágios acontecem logo, os sintomas aparecem quatro a sete dias depois. “Nos dados da DGS, como os testes demoram muito tempo a serem lançados, ainda por cima o boletim é sempre retroativo ao dia anterior, os dados são apresentados ao país sempre com um atraso, mas esse atraso vai dar sempre 14 dias depois do efeito das medidas. Quando aparecem os 10 mil casos deve-se exatamente ao Natal. É verdadeiramente impressionante ver como o sistema se comporta de forma previsível. Se fizéssemos um confinamento brutal amanhã, daqui a 14 dias teríamos uma redução drástica dos casos”, acrescenta Henrique Oliveira
66%
Percentagem dos casos de covid-19 que escapam ao radar das autoridades de saúde, segundo o matemático Henrique Oliveira
Se era previsível, o que falhou então? “Houve uma aposta na responsabilidade individual por parte do Governo no Natal”, assume Bernardo Mateiro Gomes. “A gestão pandémica é complexa, e provavelmente pesou o factor de permitir algum contacto, para reforçar a componente da saúde mental. Não o consigo criticar. No entanto, há que assumir que os números são também reflexo disso. Não me parece que o problema de testagem seja de agora, apenas ocorreu uma constrição de acesso nos dias 25 e 26 – o real problema é que não estamos a adotar outras medidas de testagem, como rastreios focados em zonas quentes, com testes rápidos de antigénio ou outros que venham a estar disponíveis.” Este médico de Saúde Pública diz ainda que, “nos próximos dias”, é certo que existirão unidades de saúde pública em “francas dificuldades”. Porquê? “Continuam a existir assimetrias importantes no país e queixas dos colegas.”
Há outra questão. Os casos confirmados pelas autoridades de saúde estão longe da realidade. “Há mais, há sempre mais casos. E há sempre mais casos assintomáticos”, garante Henrique Oliveira. “Uma conta muito simples: a taxa de letalidade real da doença é de sensivelmente 0,6% - isso sabe-se por causa dos navios de cruzeiro no início da pandemia, há uma série de estudos sobre o assunto. Vamos ver os mortos que apareceram na quinta-feira: 95. Divida por 0,006% (tem de ser feito com médias a sete dias) e vai ter 15.833 novos casos. Esses 15.833 casos é o que devia ter acontecido há 14 dias.” Este professor vinca que o ‘under reporting’, ou seja o que escapa ao radar das autoridades de saúde, ronda os 66%. Ou seja, “só conhecemos 33% dos casos reais”, apontando uma parte da explicação para os assintomáticos.
Quanto a medidas a tomar, Bernardo Mateiro Gomes considera “extremamente importante afinar o modelo de mapas de risco” e também diminuir o tempo para serem alterados os níveis consoante a evolução epidemiológica. Ou seja, é necessário mais celeridade no processo: “Temos de ser mais rápidos e usar as ferramentas que temos à disposição, continuamos com um modelo demasiado lento e reativo de resposta.” Numa altura em que vigora mais um Estado de Emergência, desta vez de apenas oito dias, António Costa tem agendada uma reunião com os especialistas na poróxima terça-feira, dia 12, que o levará a decidir o agravamento ou não das medidas restritivas para conter a propagação da covid-19.
“Quaisquer medidas que se façam em janeiro não vão reduzir muito o número de mortes”, conclui Henrique Oliveira. “As pessoas que vão morrer já estão infetadas. As pessoas morrem no prazo de 14 dias. Entre 14 e 21 dias. Tomam contacto com o vírus, estão a incubar, aparecem os sintomas, os sintomas agravam-se, vão para o hospital, passam cinco, seis dias e começam a falecer. As poucas que percentualmente vêm a falecer, aqueles 0,6%, sobretudo as pessoas mais idosas (aí as letalidades são superiores a 20%), demoram 14, 15 dias até morrer. Por consequência, algumas das pessoas que foram infetadas ontem ou estão a sê-lo hoje, em que não houve medidas, vão morrer daqui a 14, 15 dias (podendo ir até 21). Ou seja, dias 22, 23 e 24 de janeiro.”
O mesmo especialista traça um cenário: “As pessoas que foram contagiadas no Natal estão a começar a fazer disparar ligeiramente o número de mortes agora. Por isso é que ontem [quinta-feira] foram 95, e vai subir nos próximos dias. O número de mortos tem de acompanhar a subida da curva epidemiológica. Se ontem houve 10 mil casos, a letalidade não é 0,6%, é mais porque sobre o número de casos detetados a letalidade é superior - é 1,8%. A letalidade dos casos que apareceram na quinta-feira vai surgir daqui a 14 dias: 10 mil são 180 pessoas [a morrer]. É assustador mesmo.”
Estes dois especialistas convergem também de certa maneira na questão da manutenção das escolas abertas, opção que está em cima da mesa, uma diferença relativamente ao que se passou em março. “Manter assintomáticos nas escolas a transmitir o vírus é verdadeiramente absurdo”, atira Henrique Oliveira. “A teimosia tem a ver com a economia, para manter os pais dessas crianças a trabalhar. Mas não haver confinamento vai causar muitos mortos ainda. É uma opção política. Há duas maneiras de combater a pandemia: ou era vacinar três, quatro milhões de pessoas vulneráveis num mês, com duas doses, o que me parece francamente difícil, ou confinar toda a gente durante três semanas.”
Já Bernardo Mateiro Gomes prefere que não se descarte o ensino à distância: “A evidência oferece alguma tranquilidade no que toca aos mais novos, com a ressalva da hipótese da variante que foi recentemente descoberta ser mais transmissível nesses estratos etários. Parece-me arriscado descartar a hipótese da telescola nos mais velhos durante um período limitado. Isso permitiria reduzir agregação sem comprometer a capacidade de trabalho dos pais. No entanto, uma vez mais, prefiro e recomendo que estas medidas sejam de caráter local ou regional – não temos de prejudicar o país por igual quando podemos ser cirúrgicos.”
Este médico de saúde pública comenta ainda um tema atual: as eleições presidenciais e o dilema relativamente aos votos da população mais envelhecida que está nos lares. De acordo com a manchete do “Público” desta sexta-feira, a Comissão Nacional de Eleições está a pedir às juntas de freguesia para se organizarem e levarem os idosos a votar no dia 24. “O ato de voto é algo sagrado. No entanto, parece-me algo imprudente estar a aumentar o risco, até pela simples saída do lar neste momento tão delicado. Deveria ter sido pensada uma hipótese alternativa. Na sua ausência, vejo com alguma preocupação deslocações que poderiam ser evitadas.”
Henrique Oliveira lida com números e tem feito várias previsões que têm batido certo. O que podemos esperar? O que vem aí? Até agora, o país conta com 7590 mortes por covid-19 (com as 118 reportadas esta sexta-feira). Este professor, que dá mais importância aos que ainda contagiam face aos infetados, estima que, “no mínimo dos mínimos”, até 31 de janeiro superemos as 9.000 mortes, podendo chegar às 10.500. “O importante não são os infetados, são os que estão a contagiar. Esses é que propagam a doença”, diz, adiantando que nos próximos dias poderão ser cerca de 81 mil pessoas a contagiar e infetar outros na sociedade portuguesa. “É muito, é uma brutalidade”, lamenta, alertando que não está tida em conta a variante identificada no Reino Unido, pois pensa-se que ainda “não se disseminou o suficiente para ter um impacto violento na população”. E finaliza: “A não ser que haja confinamento geral, estou muito pessimista quanto ao controlo da pandemia. A situação é muito difícil.”