Ciência

Vítor Cardoso: “Conseguimos descrever o universo com a matemática. Se ele obedece a princípios matemáticos já é um salto metafísico”

O cientista Vítor Cardoso
O cientista Vítor Cardoso

Com a vida repartida entre Copenhaga e Lisboa, Vítor Cardoso usa a matemática para ajudar a guiar astrofísicos a chegarem aos buracos negros. Ninguém sabe ao certo para que serve o conhecimento das ondas gravitacionais ou dos buracos negros, mas o investigador do Técnico também recorda que sem as teorias de Einstein o GPS haveria de errar por quilómetros, enquanto os detetores de ondas gravitacionais podem abrir caminho a novos sensores de sismos

O Castelo de Ringberg também terá o seu horizonte de eventos, mas entre 27 de junho e 2 de julho de 2020, na agenda de quem sabe que o tempo varia consoante o estado de quem o conta, destacava-se a realização do Colóquio Festivo Reinhard Genzel. Se em Portugal há quem festeje campeonatos no Marquês ou nos Aliados, na Alemanha há quem prefira festejar prémios Nobel da Física em castelos com colóquios que têm o nome dos laureados que contribuíram para observação de buracos negros. Vítor Cardoso conhecia Reinhard Genzel apenas da ciência. E não se atemorizou com a missão: “Fui à festa para explicar porque é que não sabemos bem o que é um buraco negro”, recorda o físico português. A descrição não é o melhor cartão de visita, mas passados quatro anos, Vítor acaba de publicar o livro “O Eclipse do Tempo – Guia para Entrar em Buracos Negros”, com a Oficina do Livro. E Genzel assina o prefácio. O que para qualquer buraco negro vai dar ao mesmo.

“Nunca conseguiremos provar que são buracos negros”, admite Vítor Cardoso, investigador formado no Instituto Superior Técnico, de Lisboa, que tem na carreira três bolsas do Conselho Europeu de Investigação - e o nome destacado entre os estudiosos que se dedicam aos buracos negros. Mais uma vez, a frase diz mais da franqueza do cientista que dos buracos negros, mas também não serve para explicar tudo o que traz o livro que aí vem.

“O Genzel é aquele físico de raiz, que procura observações e dados para depois tentar perceber. Eu parto do oposto. Tento perceber o conteúdo de equações matemáticas e o que é essas equações me estão a dizer, ou a prever”, explica Vítor Cardoso.

“O Eclipse do Tempo” não tem pretensões de estilhaçar o Universo com uma qualquer pedrada gravitacional e muito menos ter razão face a outros cientistas. Os menos versados poderão achar que é um livro de cabeceira para os jovens aprenderem a menos palpável das ciências, mas serve também para os pais que gostam de ler os livros que compram para os filhos - ou que simplesmente querem ter uma ideia mais consistente das leis do Universo. No final, pelo menos, há apenas a garantia de descobrir aquilo que ainda não se sabe – ou que ninguém mesmo sabe e nem sequer uma pilha de prémios Nobel da Física pode asseverar.

A imagem do Sagittarius A*, o buraco negro supermassivo localizado no centro da Via Láctea
EHT Collaboration

Se nada disso for suficiente, pelo menos fica na estante um belo e inadvertido trampolim de poesia, que fala de matéria que cai em si mesma, da realidade que é só uma probabilidade tal como a matemática permite aceitar que um lápis se equilibra sobre o bico, ou que o toque na pele é uma mera repulsão de eletrões. E nem sabendo que todos os caminhos para os buracos negros são só de ida amainam o lirismo – até porque para ajudar aos recursos estilísticos, dos buracos negros só costumam sair ondas gravitacionais, que Vítor Cardoso compara aos choros do Universo quando começou.

Talvez por isso, Vítor Cardoso, o investigador que reparte a atividade entre o Instituto Bohr, que lhe deu “seis ou sete milhões” para criar o seu próprio grupo em Copenhaga, e o Técnico, que ficou com mais uma recente bolsa Conselho de Investigação da Europa (ERC), “porque precisa e merece”, prefere usar os verbos no presente, relativamente ao Universo. O que significa que o “universo nasce”, em vez de o Universo nasceu.

O facto de as ondas gravitacionais funcionarem como prova de uma realidade que arrancou há com 13,8 mil milhões com o Big Bang ajuda a perceber a escolha do tempo do verbo. Na verdade, aquelas ondas podem ter demorado toda a idade do universo a chegar à Terra. Será correto dizer que é passado aquilo que se capta como sendo presente, sem uma solução definitiva?

“O que as equações me dizem há quase sete anos é que é possível colidir duas coisas que não são buracos negros mas ter um sinal muito parecido. Foi isso que eu disse ao Rainer (durante o Colóquio Festivo de 2020)”, recorda o cientista.

Vítor Cardoso, investigador do Técnico, elegeu a matemática para descrever o universo
DR

As ondas gravitacionais atravessam a universal infinitude como reflexos puros e pristinos desse momento primordial após o Big Bang, aparentemente, sem interações com a matéria, e impulsionadas por aquilo que um leigo poderia tentar descrever, de forma muito simplificada, como uma qualquer alteração na gravidade que teve lugar no passado. Também é possível que essas mesmas ondas gravitacionais resultem de choques de buracos negros ou de estrelas de neutrões – mas Vítor Cardoso nem sequer esconde que também quase ninguém sabe ao certo para que servem.

E é o sentido de utilidade que geralmente acaba por afastá-lo das lógicas seguidas pelos cidadãos mais mundanos – e a corresponder na perfeição ao estereótipo do cientista que passeia o corpo enquanto deixa o pensamento a pairar num ponto recôndito do universo. Com o sotaque original que só irrompe entre os que nascem acima do Douro, diz que, com o passar do tempo, tende ver mais o mundo pelos modelos que vão sendo produzidos pelos físicos, que pela lógica funcional dominante, que leva o mundo a gerar conhecimento com objetivos próprios.

Talvez por isso, o cientista se limite a responder ao como em vez do porquê. Talvez por isso o cientista prefere falar de “paradigmas” do conhecimento que permitem atestar como simultaneamente válidas e incompletas as teorias de Newton e Einstein, mas não permitem responder ao jornalista com uma frase taxativa que dê para um título de notícia. Decididamente, não é uma entrevista feita de certezas.

“Sabemos que conseguimos descrever o universo com a matemática. Se o universo obedece a princípios matemáticos já é um salto de âmbito metafísico”, adianta.

Há 300 anos, dominava um paradigma. No início do século XX surgiu outro – e já se sabe que haverá de vir um outro que acrescenta algo ao mesmo tempo que fica incompleto. Com base nos mais recentes paradigmas, Vítor Cardoso explica como os buracos negros nascem de estrelas que colapsam – ou caem em sim mesmas – quando a enormidade de matéria deixa de ser sustentada pela combustão e acaba por sucumbir à força da gravidade com uma queda aparentemente eterna que fica coberta por um horizonte de eventos, a partir do qual há a sensação de que o tempo para, ainda que o tempo só pare realmente para quem está fora e vai monitorizando quem está em vias de entrar num buraco negro.

Reinhard Genzel, astrofísico alemão, foi laureado com o Nobel da Física de 2020, pela observação de buracos negrosn

Em entrevista, Vítor Cardoso tenta explicar o que acontece a um jornalista quando entra num buraco negro, mas o jornalista prefere a versão que consta no livro e que remete para um alienígena quando tenta fazê-lo. Obviamente, que esta preferência é subjetiva e um grande entorse à deontologia dos profissionais da comunicação e tem apenas a ver com o facto de o jornalista achar, por razões deveras altruístas, que o alienígena ficaria bem mais feliz por poder ser observado ao longe com uma imagem que vai obscurecendo mas promete a eternidade.

Para o comum dos mortais manter a luz mesmo depois de já não existir o que lhe deu origem será sempre uma boa notícia se for aplicada à conta da eletricidade. Tal como a matemática não renega a possibilidade um lápis ficar em pé sobre o bico, também há a hipótese de, no interior de um buraco negro, voltar atrás no tempo – e essa alternativa poderia ser especialmente valorizada para evitar arrependimentos nos comuns mortais, mas não leva Vítor Cardoso a acreditar nas teses que vêm em filmes e livros sobre buracos negros que são portais para outras dimensões e que só existem porque eventualmente dão jeito aos guionistas.

“A vida é mais do que um telemóvel ou que uma esferográfica. É eu perceber o que é que existe, que há um ser humano, uma coisinha minúscula neste planeta que tem a capacidade de se elevar enquanto espécie. Não é um trabalho de um adulto, mas de milhares (de pessoas) que tentam perceber o que é que existe até aos confins do universo. Acho que este pensamento deveria ser suficiente para nos dizerem: ‘caramba!, continuem a trabalhar nisso’”, começa por dizer, a julgar que convencia qualquer espírito materialista.

Perante a insistência, recorda que a teoria da relatividade geral de Einstein explica buracos negros e que, sem ela, o GPS que suporta hoje a humanidade “errava por quilómetros”. E também diz que há cerca de 100 anos também se iniciou uma corrida aos motores e às correntes elétricas, devido aos conhecimentos produzidos no eletromagnetismo. E o exemplo estende-se ao desenvolvimento de detetores de ondas gravitacionais que possivelmente também podem abrir caminho a detetores de sismos ou vulcões. “É um investimento que, eventualmente, se for bem aplicado, vai dar frutos espetaculares", promete o cientista.

O projeto LISA, composto por três satélites que vão fazer na próxima década medições de laser a milhões de quilómetros de distância, promete concentrar muitas atenções de físicos como Vítor Cardoso, que recorda que nos EUA não é assim tão incomum dar por perdido o investimento em ciência. E de algum modo é esse o espírito que ajuda a acreditar no reforço dos montantes que pretendem criar alternativas aos aceleradores de partículas que, no entender de Vítor Cardoso, já começam a apresentar limitações.

A Ciência “não tem que servir para nada”, reitera ainda assim. No caso de “Eclipse do Tempo” é o que de mais parecido há com uma fábrica de cientistas – ou pelo menos garante uma tarde bem passada a passear pelos recantos deste universo.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: senecahugo@gmail.com

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