A Declaração Europeia sobre os direitos e princípios digitais para a década digital proposta em janeiro deste ano pela Comissão Europeia foi apresentada como um guia estruturante para a transformação digital que decorre atualmente na UE e noutros continentes. Idealizado enquanto ponto de referência para todos, desde o cidadão comum ou às empresas até ao legislador e às entidades públicas, o documento finalmente aprovado neste mês de dezembro visa ainda deixar claro que os direitos aí elencados se aplicam tanto no mundo offline quanto no mundo online.
Subjacentes aos direitos preconizados estão os valores da UE e as diferentes formas de os concretizar, passando pela conetividade acessível e de alta velocidade até à utilização e partilha informadas de dados pessoais e não pessoais na esfera digital. É um conjunto de prerrogativas que espelham o tipo de transição que a UE quer promover e defender tanto dentro do mercado interno como para além dele.
A Declaração é redigida em torno destes quatro pilares: colocar as pessoas no centro da transformação digital, solidariedade e inclusão, liberdade de escolha e participação na esfera pública digital. Pesem embora os enormes benefícios da digitalização, que devem ser relembrados e postos em patamar de equilíbrio com os seus riscos, esta matriz mais social é particularmente importante depois dos últimos anos em que temos vindo a ser confrontados com a evidência de que o espaço digital é, hoje, um fórum incontornável e determinante para as nossas vidas em sociedade.
Em primeiro lugar, uma transição digital bem-sucedida no que diz respeito a priorizar as pessoas requer investimentos e infraestruturas suficientes para combater a exclusão digital e promover a coesão territorial, social e económica dentro da UE. Durante a pandemia, por exemplo, nem todas as famílias e crianças puderam acompanhar de igual modo a transição, ainda que temporária, para modelos educativos digitais. Tenha sido por viverem em zonas com conetividade reduzida, por terem menos meios económicos para adquirir os materiais requeridos ou por simplesmente não terem informação e conhecimento suficiente.
Em segundo lugar, uma transição digital solidária e inclusiva implica a adoção de medidas para fechar o fosso digital, exacerbado também por crises como a pandemia. A verdade é que esta transição tem, até agora, agravado a desigualdade de género. As mulheres, que mais frequentemente assumem o papel de cuidadoras sem remuneração ou que ainda podem receber menos pelas mesmas funções exercidas por um homem em muitas situações, continuam a ter, naturalmente, mais dificuldade em aceder à Internet (e todos os serviços e possibilidades aí oferecidos) quando esta comporta custos elevados, ou não terão o tempo e recursos necessários para investirem numa educação e formação que lhes permitiria estar a par do desenvolvimento digital.
*As opiniões expressas neste artigo são estritamente pessoais e não representam as posições do Parlamento Europeu ou do grupo S&D
Para além deste fenómeno, é preciso igualmente diminuir o contraste de informação e acesso entre gerações, principalmente entre aquelas que têm vindo a crescer com o uso privilegiado de meios digitais e aquelas para quem estes representam um desafio e condicionante com o qual se deparam numa fase mais tardia das suas vidas.
Em terceiro e último lugar, uma transição digital que garanta liberdade de escolha e promova uma participação elevada na esfera pública digital só passará de utopia a realidade se os trabalhadores forem protegidos, os consumidores empoderados, a imprensa e os meios de comunicação social fortalecidos e, por último, o público em geral educado sobre e advertido contra a desinformação.
A utilização de algoritmos e inteligência artificial no contexto laboral, não importa para que efeitos (ainda que nem todos devessem ser permitidos, como por exemplo vigilância levada a cabo pelo empregador), deve ser regulada e respeitar a integridade física e mental dos trabalhadores, sem discriminar ou colocar em risco os seus direitos ou boas condições de trabalho, incluindo o direito a desligar.
Os consumidores, por seu turno, precisam de ter à sua disposição direitos claramente estabelecidos em relação a decisões automatizadas e discriminatórias ou enviesadas, à compra online de produtos possivelmente defeituosos ou falsificados e, sobretudo, às práticas de publicidade “direcionada” com base em características e preferências pessoais e históricos permitidas neste momento pelo uso significativo de plataformas digitais e redes sociais.
A liberdade de imprensa tem de ser fortalecida também no foro digital, face aos inúmeros exemplos registados nos últimos anos tanto pela UE como pela Organização das Nações Unidas que colocam o seu normal funcionamento em causa (ameaças e ataques online, influência indevida da parte de governos ou empresas privadas, litígios abusivos, etc.).
Finalmente, assistimos hoje a uma deturpação e manipulação do espaço público sem precedentes que exige mais empenho e consciencialização da parte de todos. A UE já deu passos essenciais neste sentido com a adoção de leis relativas aos mercados e serviços digitais. Contudo, para além da regulação e até que se consigam sentir os seus efeitos de forma tangível - o que ainda demorará alguns anos e não sendo plausível que nos possamos dar ao luxo coletivo de aguardar impavidamente - é urgente educar, alertar e responsabilizar o público quanto às diferentes formas como o tipo de informação disponível e o acesso à mesma podem ser injustificadamente controlados, promovidos ou dificultados. Principalmente porque esta transição tem resultado num uso crescente dos meios digitais para o acesso à informação no dia-a-dia, em detrimento de outros. Temos o dever e necessidade (de sobrevivência) comuns de evitar a todo o custo a chegada a um ponto em que o discurso e debate públicos, alicerces das nossas democracias, estejam irremediavelmente comprometidos pelos Elon Musks ou Viktor Orbáns deste mundo.
Tendo tudo isto em conta, a Declaração é um bom ponto de partida para políticas mais progressistas neste contexto ao relevar, graças em larga medida ao papel do Parlamento no seu processo de negociação, os seguintes pontos (entre outros): a proteção dos direitos fundamentais dos trabalhadores; a garantia duma dimensão de género mais forte; o uso de inteligência artificial centrada no ser humano, ética e respeitadora dos direitos fundamentais salvaguardados pela UE; a aposta na educação e formação digitais; a luta contra a desinformação; a salvaguarda da liberdade e pluralismo da imprensa; ou a proteção das crianças no ambiente digital. Se estes objetivos forem cumpridos num futuro próximo (o que dependerá de muito mais do que da mera magia do Natal), acredito que os direitos digitais que nos aguardam a todos no sapatinho não serão uma promessa vazia.
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