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Carta aberta de uma grávida: “Um país que se gaba do SNS e de ter vacinado toda a população contra a covid não pode falhar” nos partos

Carta aberta de uma grávida: “Um país que se gaba do SNS e de ter vacinado toda a população contra a covid não pode falhar” nos partos
Inês Lobo

Sandra Santos está decidida a ter o seu filho Lucas em Lisboa, a mais de 140 quilómetros de casa, por se sentir mais segura assim. Há um ano mudou-se de Lisboa para Grândola, onde vive com o companheiro, mas agora, grávida de seis meses, debate-se com a crise nas unidades de obstetrícia em Portugal. O hospital da sua área de residência, em Santiago do Cacém, tem de momento o serviço desativado. Há "falta de empenho" em resolver este problema, afirma. Eis o seu testemunho numa carta aberta dirigida ao SNS, ao Governo e a todos os portugueses

Sandra Santos
26 anos, 6 meses de gravidez

Sou lisboeta, licenciada em Ciências da Comunicação, mas vivo há um ano com o meu parceiro em Grândola, no Alentejo. O local onde vivo é muito calmo, super silencioso, estou rodeada de natureza, a típica paisagem alentejana, e daqui posso assistir ao pôr do sol mais bonito que já vi. Mas é em Lisboa, que fica a 140 quilómetros, a mais de uma hora de distância, onde me tenho sentido mais segura para ser seguida, numa clínica privada, durante esta minha primeira gravidez.

Estou grávida de 22 semanas, ou seja seis meses, do Lucas. Até há muito pouco tempo pensei trazer na minha barriga uma rapariga, a Olívia, assim me foi dito pelo médico, mas afinal percebeu-se que iria ter um rapaz. Foi engraçado. O que importa é que corra tudo bem e ele seja um bebé saudável. Menino ou menina, tanto faz. Até porque ele depois, mais tarde, poderá vir a identificar-se de outra maneira…

Não tenho dúvidas que quero ter o meu filho Lucas num hospital em Lisboa, especificamente com o obstetra que me segue, num parto natural com epidural e, por isso, terei de deslocar-me semanas ou dias antes para que tal possa assim acontecer.

Está fora de questão ter o meu filho no hospital da minha atual zona de residência, só o farei em caso de emergência, se não tiver alternativa. Até porque o hospital desta minha área é o de Santiago do Cacém, a meia hora de onde vivo, que tem atualmente o serviço de urgências para obstetrícia desativado. Assim, tendo em conta que esse serviço está fechado, o hospital mais perto onde poderia recorrer seria o de Setúbal, que fica a uma hora de distância de onde estou. Prefiro mil vezes ir para Lisboa, para ser tratada por um obstetra que confio. Até gostava de ter o meu Lucas num hospital público, mas desconfio que para as condições que pretendo, com o mesmo obstetra da clínica que me segue, terei de o ter no privado.

Quanto à polémica que tenho lido, acho inacreditável os casos noticiados sobre a crise nas urgências obstétricas e de estarem unidades fechadas em várias regiões, principalmente nos hospitais que não são centrais e que são apoios importantes às pessoas que residem nessas áreas. É absolutamente inacreditável uma senhora ter de se deslocar 100 quilómetros durante uma urgência de parto, por não haver outros serviços disponíveis mais perto. Sinceramente isto demonstra falta de respeito e de empatia para com as grávidas, em particular aquelas com mais dificuldade em deslocar-se. Vimos que o SNS funcionou bastante bem na pandemia, não se percebe porque é que o esforço não é o mesmo quando se trata de serviços de urgência obstétrica.

É impensável perderem-se duas vidas que ficaram por viver pela falta de serviços obstétricos.

Sei que sou uma privilegiada em todo o processo de gravidez que tenho passado, porque estou a ser bem seguida numa clínica privada. Tenho a possibilidade de o fazer, nem toda a gente tem. E tenho também o privilégio de poder ficar em Lisboa dias ou semanas antes do parto se tal for necessário. Mas nem todas as grávidas têm esta minha possibilidade. Serão até talvez poucas as que têm. O que faz com que os serviços devam estar à altura das necessidades do país, para que de alguma maneira todas as mulheres grávidas em Portugal tenham direito ao mínimo de condições de saúde e assistência no parto da sua área de residência.

Ao saber da morte de dois bebés por dificuldade nos serviços de obstetrícia [um deles na semana passada, no hospital de Santarém, e outro em junho, no Hospital das Caldas da Rainha, no distrito de Leiria], soa-me a falta de empenho, de preocupação e do real valor que se dá a este problema.

É impensável perderem-se duas vidas que ficaram por viver pela falta de serviços obstétricos. Não é de um país desenvolvido que, num curto espaço de tempo, tenha perdido dois bebés no processo de parto por crise e encerramento de unidades médicas. Um país que se gaba do seu SNS e de ter conseguido vacinar toda a população para a Covid-19, está a falhar de forma grave em serviços essenciais.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: oemaildobernardomendonca@gmail.com

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