E agora, já percebeu o impacto das alterações climáticas? Vamos passar a ter muitos verões destes?
PATRICIA DE MELO MOREIRA
A situação é “inequívoca”. O clima português está a aquecer como resultado da ação humana e isso irá significar mais ondas de calor, mais intensas e duradouras. Sem medidas de mitigação das alterações climáticas, fenómenos extremos como o dos últimos dias poderão acontecer dez vezes por ano em 2100
Ondas de calor. Seca. Incêndios. Nenhum destes fenómenos é novo em Portugal. Contudo, a combinação registada nos últimos dias no continente fugiu aos padrões a que nos temos vindo a habituar.
“Em Portugal, no verão, temos sempre alguns dias de temperaturas elevadas e em média, no que é chamado o clima histórico, temos sempre uma a duas ondas de calor por ano. Isto quer dizer que a ocorrência de uma onda de calor per si é sempre um fenómeno extremo, mas pertence à variabilidade climática normal”, explica o climatólogo Pedro Matos Soares.
“O que se passa neste caso em concreto é que estamos a ter uma onda de calor muito intensa e em que estamos a bater recordes de temperatura em muitas cidades e localidades. A partir do momento em que se estão a estabelecer novos recordes significa que estamos a ir para além do normal. Sempre que temos um recorde de temperatura quer dizer que alguma coisa está a mudar e estamos a transitar para um clima mais quente”, sublinha o investigador do Instituto Dom Luiz da Universidade de Lisboa.
Na Chamusca, em Santarém, o termómetro já batia nos 38°C às 11h de quinta-feira
Neste novo clima mais quente, dias como os vividos na última semana poderão ser cada vez mais frequentes.
“Em Portugal, entre 1971 até 2000 tínhamos uma a duas ondas de calor por ano em média”, afirma o investigador. Segundo as projeções da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, se houver uma “política substancial de mitigação das emissões dos gases com efeito de estufa (GEE)”, poderemos passar a ter uma média de três ondas de calor por ano até meio deste século. Mas este é apenas o melhor cenário. No pior dos casos, “sem mitigação e com a continuação da queima dos combustíveis fósseis”, poderemos ter de enfrentar cinco ondas de calor por ano.
“Num futuro mais longínquo, nos últimos 30 anos do século, teremos sinais ainda mais gravosos. O cenário é que, se [o Acordo de] Paris se cumprisse mais ou menos, teríamos uma estabilização de ondas de calor entre duas e três por ano. Não era muito mais do que já temos hoje. No cenário mais gravoso, que é o que nos preocupa mais, estamos a falar em dez ondas de calor por ano.”
“E não é só o número, mas também a duração. Se virmos as projeções para a duração média das ondas de calor, também ela aumenta de acordo com os cenários.” A onda de calor que estamos a atravessar, considera Pedro Matos Soares, já se destacou por “alguma excepcionalidade na sua duração”, uma vez que o tempo muito quente já dura desde o final da semana passada e, pelo menos no interior, as previsões do IPMA indicam que deverá prolongar-se até domingo.
Na última semana houve ainda uma conjugação de fenómenos que se “realimentam positivamente”. “Tendo o solo muito seco por causa da seca, a onda de calor torna-se mais intensa, porque a energia do solo é toda ela utilizada para aquecer a superfície terrestre e a atmosfera subjacente. Se temos temperaturas elevadas em seca, temos a floresta muito seca e com muito combustível com pouco conteúdo de água, ou seja com uma capacidade de arder muito rápido. Daí, numa circunstância extrema como a que estamos a viver, temos um risco de incêndio meteorológico muito forte.”
Aquecimento “inegável” poderá significar três meses por ano com temperaturas máximas a exceder os 30ºC
Para a comunidade científica, esta “alteração climática é inegável”. Mesmo com as variações anuais, a tendência geral é claramente para o aquecimento.
“Os cinco anos mais quentes a nível mundial desde que há medições ocorreram nos últimos dez anos. E os últimos dez anos mais quentes ocorreram desde 2000”, corrobora o climatologista David Carvalho. “Ou seja, tem-se vindo a verificar, sem qualquer tipo de dúvida, um aumento muito rápido e até mais rápido do que os próprios modelos climáticos previam.”
“Isso é o facto mais assustador e preocupante. Os modelos climáticos já estavam a prever um aquecimento grave, mas mais lento do que aquele que se tem verificado”, acrescenta o investigador da Universidade de Aveiro.
Além das ondas de calor é esperado um aumento generalizado das temperaturas. Um estudo coordenado por David Carvalho, cuja versão revista foi publicado em setembro passado, prevê que, na Península Ibérica, as temperaturas deverão aumentar em média 2ºC até meio do século e 4ºC até 2100. O aquecimento mais pronunciado deverá acontecer na região centro-sul durante o verão (mais 6ºC a 8ºC neste período), mas por todo o país poderemos vir a ter quase três meses por ano com temperaturas máximas a exceder os 30ºC e 40ºC.
Na Chamusca, na quinta-feira, ainda não eram 11h e os termómetros já marcavam 38 graus
“O que se espera é que nos próximos anos os recordes venham a ser consecutivamente batidos e que não durem muito tempo”, afirma.
Para os cientistas a origem destas alterações é igualmente evidente, garantem os investigadores. “Já existem provas inequívocas de que o único fator diferente nos últimos 30 ou 40 anos relativamente ao período pré-industrial é a concentração de gases com efeito de estufa [na atmosfera]”, afirma David Carvalho.
“Existem vários fatores naturais que poderiam justificar uma alteração climática, como a alteração da órbita da Terra, da atividade solar ou atividade vulcânica intensa. Em milhões de anos, a Terra já teve diversos períodos em que o clima era diferente, mas no nosso caso em particular, todos esses fatores naturais já foram todos postos de parte com provas científicas, excepto os GEE que resultam da ação humana. Não existe outra fonte possível para o aumento tão rápido que temos vindo a assistir nos últimos 30 a 40 anos.”
“Nesse ponto de vista não há dúvida”, corrobora Pedro Matos Soares. “Todos os exercícios de modelação nos melhores consórcios são inequívocos a mostrar que este aquecimento e estas mudanças no sistema climático têm um único responsável, as emissões de GEE antropogénicas.”
Ainda assim, o investigador do Instituto Dom Luiz adverte para a necessidade de ter cautela ao ligar a atual onda de calor ao aquecimento global. “Não podemos dizer taxativamente que este fenómeno foi devido às alterações climáticas sem o estudar, podemos fazer um trabalho científico a posteriori e perceber de que forma as alterações climáticas foram um contributo importante para esse fenómeno, mas isso não se faz ao mesmo tempo que o fenómeno decorre.”
Menos chuva, mais errática e em alturas prejudiciais à agricultura
O aumento das temperaturas e das ondas de calor não será contudo o único efeito das alterações climáticas a ser sentido no nosso país, indica David Carvalho.
Imagens de barragens secas como as que assistimos este inverno poderão vir a tornar-se mais habituais devido à diminuição da precipitação
“Outra consequência muito grave é a diminuição da precipitação. O que está projetado é que a quantidade de precipitação será menor, o que em países que sofrem de seca como Portugal e Espanha é um problema sério. E para além disso, a pouca chuva que iremos ter irá ser mais concentrada em menos dias e em alturas que são prejudiciais à agricultura.”
“Iremos ter chuva mais errática, com dias em que chove muito e depois muitos dias em que não chove. Podemos ter ao mesmo tempo problemas de seca e de inundações, tendo a pouca chuva concentrada em poucos dias ou semanas num ano”, elabora o investigador sobre “problema que poderá ser mais sério que temperaturas mais elevadas”.
É ainda expectável a subida do nível do mar, um “processo mais lento”, embora haja zonas que irão ser muito afetadas, porque estão a baixo do nível do mar, como é o caso da Ria Formosa e Ria de Aveiro.
Haverá também fenómenos mais extremos, nomeadamente tempestades mais intensas, com ventos muito fortes.
“As consequências das alterações climáticas serão em cascata e irão refletir-se em quase todas as áreas importantes do nosso mundo”, conclui David Carvalho. Haverá efeitos na economia, na agricultura, no setor florestal, no turismo (com certas zonas a ficarem demasiado quentes para visitar no verão, por exemplo) e para a saúde humana.
“A adaptação às alterações climáticas tem de começar a ser pensada de uma forma muito séria”
Num momento em que alterações climáticas já são o presente, torna-se necessário “preparar a sociedade para estes extremos”, encontrando sistemas e estratégias que permitam proteger os grupos mais vulneráveis da população. Neste aspeto, Pedro Matos Soares destaca o exemplo de França, que foi muito afetada pela onda de calor de 2003 (durante a qual morreram 70 mil pessoas na Europa das quais 15 mil só em território francês), mas que nas últimas ondas de calor teve uma mortalidade muito menor devido à “ação das autarquias e regiões muitíssimo bem coordenada”.
Ana Silva, António Assunção, António Rodrigues da Costa, Armindo Silveira, Eunice Duarte, Fábio João Marçal, Mário Montez, Matilde Alvim, Miguel Manso, Margarida Marques, Maria Teresa Rito, Paulo Pimenta de Castro, Isabela Ferro, João Camargo, Pedro Triguinho
Esta tentativa de atenuar os efeitos passa também, por exemplo, pela climatização das habitações e por medidas de mitigação do ar muito quente nas cidades, com a aposta em mais espaços verdes.
“A adaptação às alterações climáticas tem de começar a ser pensada de uma forma muito séria, mas isso é só a adaptação ao que já está a acontecer”, defende David Carvalho. “Para mitigar as causas a solução é só uma e já está mais do que referida. É a descarbonização da nossa forma de vida e das fontes de energia”.
“A mitigação é muito importante. Se tivermos um mundo em que este problema das alterações climáticas seja levado a sério, e tivermos uma redução substancial das emissões, podemos cercear muito [este problema]”, acrescenta Pedro Matos Soares. Isto porque, de acordo com o cenário de emissões, temos realidades muito diferentes e necessidades de adaptação muito variadas (com custos igualmente diferenciados).
Para já, avança David Carvalho, “não há nenhum país que esteja completamente preparado para este tipo de alterações tão intensas e tão rápidas como as que estamos a assistir. Obviamente que há países muito melhor preparados que outros, mas completamente preparados é difícil. [O problema é que] não se vê nada a mudar e isso é que assusta muito. Nem no combate à causa das alterações climáticas nem em termos de medidas efetivas para nos adaptarmos. Ainda há um longo caminho a percorrer tanto num caso como noutro.”