Sociedade

Chegaram os McCarthiminions

Chegaram os McCarthiminions

Francisco Louçã

Economista, Professor Catedrático

Os chefes exigem que a Nato seja adorada como um totem religioso, que se torne a identidade do ocidente. E é a esse trabalho que se lançam os McCarthiminions, para converterem os selvagens e para submeterem os recalcitrantes.

A crueldade da guerra é infinita, como se comprova na invasão da Ucrânia. E como esta é a primeira guerra europeia do tempo dos smartphones, somos inundados pelas imagens pungentes das famílias nos abrigos, das mães e crianças a correrem para as fronteiras, dois milhões de refugiados, dos hospitais refugiados nas caves, dos edifícios esventrados. Essas pessoas são a verdade da guerra e, mesmo que a luta de propaganda seja um dos instrumentos bélicos e abuse da falsificação, sabemos que aquele sofrimento é o da nossa gente, ameaçada, bombardeada e perseguida pelos invasores. Que todas as guerras sejam assim, do massacre de Sabra e Chatila ou dos ataques a Gaza até ao bombardeamento de Bagdade ou do Iémen, em nada muda a realidade destes dias, antes confirma o terror de todas as estratégias exterministas. A guerra é a política mais suja e a ocupação de um país soberano é a última condenação da hipótese democrática.

Talvez então não surpreenda que a guerra, a guerra imposta e sofrida, se courace também com artifícios justificativos e, até, com derivas patuscas. Lembram-se? Quando a França recusou apoiar a invasão do Iraque (como a Alemanha), que tinha sido confirmada na Cimeira das Lajes entre Bush, Blair, Aznar e Durão Barroso, os restaurantes do Congresso em Washington mudaram a designação local das batatas fritas (“french fries”, por curiosas razões históricas), para assim castigar a referência francesa. Foi um ato político empossado da dignidade de uma decisão de alto nível, pueril que fosse. Os menus da Casa Branca seguiram o novo protocolo vingativo. A guerra do Iraque provocou nos três primeiros anos, segundo a Lancet, 600 mil vítimas.

Passados cerca de vinte anos, toda a operação fracassou. O Iraque está agora dominado por forças políticas opostas a Washington. O Afeganistão, invadido em 2001, foi entregue no verão passado aos talibãs e o exército norte-americano retirou-se à pressa, deixando para trás centenas de conterrâneos e a segunda derrota militar da sua história. Mas a ferida política dessas derrotas é ainda mais profunda, sobretudo para a Nato e os seus mandantes: agravou a crise na região, expandiu as guerras, acentuou a vulnerabilidade das populações, reforçou os poderes talibânicos. O descrédito da Nato, bem como das sucessivas presidências desta guerra, Bush, Obama, Trump, Biden, criou um vazio de liderança.

A resposta política de Washington à invasão da Ucrânia por Putin é conduzida por essa ferida afegã. Está em jogo a viabilidade da Nato, depois de o presidente francês lhe ter diagnosticado um “morte cerebral”. E recuperou-a com grande sucesso, dado que o restabelecimento da sua autoridade na Europa é indiscutível e o seu avanço no leste europeu foi acelerado neste novo contexto. Quando se completar um ano da fuga de Cabul não haverá memória do facto e estaremos só a olhar para as fronteiras do leste. Em qualquer caso, esse trabalho de relegitimação exige mais do que a agenda militar, requer igualmente a imposição da norma e do reconhecimento, da hierarquia e da naturalização do poder. Os seus chefes exigem que a Nato seja adorada como um totem religioso, que se torne a identidade do ocidente. E é a esse trabalho que se lançam os maccarthiminions, para converterem os selvagens e para submeterem os recalcitrantes.

Um economista da agência financeira Bloomberg, Tyler Cowan, terá sido quem primeiro chamou a este processo Macarthismo, sabendo a carga histórica que estava a usar. Cowan é um tradicionalista nos EUA, mas reagiu à perseguição que sentiu na sua família, a mulher e a filha nasceram na antiga URSS e, como acontece em Portugal, passaram a ser apontadas como suspeitas. As mais espetaculares expressões desta perseguição são as proibições culturais, a conferência sobre Dostoieviski que foi anulada na Universidade de Milão, o afastamento de um estilista russo da Semana de Moda de Paris por não assinar um texto repudiando a invasão, a anulação pela Royal Opera House e pelo Carnegie Hall de representações do Bolshoi, a orquestra de Munique que despede o maestro russo e a cantora, a orquestra de Zagreb que anula concertos de Tchaikovski, os gatos russos interditados num festival internacional de felinos, as equipas russas e bielorrussas proibidas nos Jogos Paralímpicos, como noutros campeonatos desportivos, as televisões de propaganda do Kremlin censuradas na Europa. O incómodo com esta cruzada é visível mesmo entre alguma direita radical: Pereira Coutinho escreve, no Brasil, que “cancelar os russos por causa do Putin é uma forma de barbárie também” (mesmo que em Portugal escreva que não vangloriar a liderança da Nato é prova de “hostilidade ao Ocidente”). De facto, afastar o Lago dos Cisnes dos palcos, retirar o Crime e Castigo das prateleiras ou temer a infecciosidade política dos gatos russos só faz sentido para uma visão ultra-maccartista.

Em Portugal, como talvez fosse de esperar considerando a nossa história recente, os maccartiminions desfilam com argumentos da ordem do burlesco. A sua primeira narrativa é o pânico com a ameaça: Raul Vaz, na Antena Um, repete o aviso ao Presidente, não deve convocar o Conselho de Estado para não ter de conviver com facínoras que se atrevem a defender a Constituição da República Portuguesa e a sua norma que exige a dissolução dos blocos político-militares. Num jornal chamado “Novo”, Rita Matias, do Chega, inscreve-se nesta vertente, com um vibrante apelo a “exorcizar os demónios vermelhos”, o Macarthismo mais puro, bem que lhe fica.

O segundo discurso é mais curioso: é o que afirma que quem recusa e condena a invasão russa é porque, disfarçadamente, apoia Putin. A prova de ser putinista é precisamente a artimanha de condenar Putin, quod erat demonstrandum. Chegam os psicólogos, que torturam as intenções escondidas dos adversários para revelarem toda a verdade. A recusa da invasão é uma “trapaça”, grita Tiago Dores no Observador e Alberto Gonçalves repete-o na sua cruzada de sempre, como Vítor Rainho, no Sol. O que condenam a invasão russa não são “credíveis”, sentencia um novel deputado da IL, Rui Rocha, no Novo. Há também quem também tente usar a pista venezuelana, o truque bolsonarista que tão bem resultou no Brasil, se bem que sofra em Portugal de uma dificuldade, é que a lista de quem fez a ponte aérea de negócios com Caracas ao longo dos anos é reveladora. Henrique Raposo, aqui no Expresso e com a elegância que nunca lhe falta, invetiva quem critica a Nato a ir viver para a Rússia, vai para a tua terra, malandra. Bugalho, mais imaginativo do que os restantes, explica o seu desprezo por quem a 12 fevereiro não descreveu graficamente o “banho de sangue” ocorrido com a invasão que se realizaria doze dias depois, o que suponho que se lhe aplica também.

Há ainda um terceiro discurso. É a nova ofensiva para garantir que o Chega é o partido respeitável. Ventura “apoia a democracia”, ao contrário da esquerda, que a proscreveria, afiança pela enésima vez João Marques de Almeida, no Observador. Almeida, que foi nomeado para o Instituto da Defesa Nacional por Durão Barroso após à invasão do Iraque e o seguiu para Bruxelas, deve saber do que fala. Diniz de Abreu, no Sol, repete-o, como seria de esperar. E aqui estão eles, confirmando-se mutuamente: quem não seja da Nato deve ser “exorcizado” dos seus “demónios vermelhos”, chegou o tempo da purificação.

Dizem que querem ser levados a sério.

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