Sociedade

Russiagate: Câmara Municipal de Lisboa multada em mais de um milhão de euros

Russiagate: Câmara Municipal de Lisboa multada em mais de um milhão de euros

O montante é uma multa por um caso de divulgação indevida de dados pessoais

A Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) multou a Câmara Municipal de Lisboa (CML) em 1.250.000 no caso que ficou conhecido como Russiagate, e que se relaciona com o facto de a CML ter enviado dados pessoais de ativistas russos, nomeadamente para a embaixada russa, que se manifestaram em Lisboa contra o regime de Vladimir Putin, Presidente da Rússia, e a favor da libertação de um dos seus maiores opositores, Alexei Navalny.

“A CNPD delibera aplicar ao arguido Município de Lisboa, observando ao disposto no n.º 3 do artigo 83.º do RGPD, uma coima única, no valor de € 1.250.000 (um milhão duzentos e cinquenta mil euros) em razão da violação do princípio da licitude lealdade e transparência; da violação do princípio da minimização dos dados, na vertente de “need to know” (necessidade de conhecer); da violação do dever de prestar as Informações previstas no artigo 13.º do RGPD; da violação do princípio da limitação da conservação e da violação da obrigação de realização de uma avaliação de impacto sobre a proteção de dados”, lê-se na deliberação a que o Expresso teve acesso.

Multa teria sido “muito mais grave” não fosse a pandemia

A Câmara Municipal de Lisboa pediu à CNPD que a multa fosse reduzida, atendendo à situação financeira da autarquia num período de pandemia mas o organismo não aceitou, tendo justificado que se não fosse precisamente a situação atípica em que todos nos encontramos, as multa teriam sido muito mais altas.

“Veio o arguido requerer, ao abrigo do n.º 2 do artigo 44.º da Lei n.º 58/2019, de 8 de agosto, a dispensa da aplicação da coima, avançando, como justificação para tal pedido, as dificuldades financeiras provocadas pelo advento da pandemia que ainda atravessamos, a qual implica o agravamento do contexto económico e da arrecadação de receitas por parte do Município”, lê-se ne deliberação, depois de explicadas as razões da multa. “Sem prejuízo de se admitir e reconhecer a razão que assiste ao arguido no argumento sobre o impacto que a situação pandêmica tem na sua atividade, deve porém notar-se que a CNPD já tomou em consideração esses elementos no momento em que procedeu à determinação do valor parcelar das coimas aplicáveis. Com efeito, caso a situação financeira fosse distinta e os efeitos da pandemia estivessem ultrapassados ou fossem inexistentes, a gravidade das coimas aplicadas seria seguramente bastante mais elevada, porquanto o grau de censurabilidade das condutas e os riscos para os titulares dos dados justificariam um nível de sanção muito mais elevado”. 

“Herança pesada” de Medina, diz Moedas

O valor é, de facto, abaixo do previsto já que quanto a CNPD comunicou que tinha identificado 225 contraordenações nas comunicações feitas pela Câmara de Lisboa no âmbito de manifestações, essas multas, segundo o que vem previsto na lei, poderiam andar entre os 10 e os 20 milhões de euros por cada infração.

A autarquia já reagiu, através de um comunicado. “Está decisão é uma herança pesada que a anterior liderança da Câmara Municipal de Lisboa deixa aos lisboetas e que coloca em causa opções e apoios sociais previstos no orçamento agora apresentado. Vamos avaliar em pormenor esta multa e qual a melhor forma de protegermos os interesses dos munícipes e da instituição.”

Mais detalhadamente: como se lê na longa lista de infrações e respetivos montantes máximos previstos na lei para elas, a CML poderia ter recebido uma fatura muito maior. Por exemplo, na deliberação está escrito que 111 contraordenações (das 225) dizem respeito à comunicação de dados a terceiros, outras tantas são relativas à difusão de informações para serviços e gabinetes municipais, existindo ainda uma comunicação que viola o “direito de informação”, outra que interfere com “o princípio da limitação da conservação de dados” e ainda uma terceira contraordenação por “ausência da avaliação de impacto sobre a proteção de dados”, que a CNPD considera não ter sido feita. A coima relativa a esta última contraordenação pode atingir 10 milhões de euros, enquanto as restantes 224 podem ir, cada uma, até aos 20 milhões de euros.

Oposição critica palavras de Moedas. “É ridículo”, acusa PS

Quando o tema veio a lume, no verão passado, João Paulo Saraiva era o número dois de Fernando Medina e responsável pelo pelouro das Finanças. Esta tarde, em frente aos Paços do Concelho, o atual líder da vereação do PS, agora na oposição, veio defender a face socialista lembrando que a multa não é definitiva, mas “recorrível para os tribunais”. Se assim decidir, Carlos Moedas contará com “todo o apoio” num eventual recurso. “Não poderia ser de outra forma.”

Aos microfones da SIC e da RTP, João Paulo Saraiva lembrou outros casos em que a CNPD multou a Câmara de Lisboa em determinados valores e que, após recurso aos tribunais, acabaram em quantias mais baixas. Ou nenhumas. “O que a CNPD aplica depois os tribunais vêm dizer que é muito menos”, frisou o vereador, acusando ainda a comissão de atribuir à autarquia “uma ação dolosa, sem o provar”. Além disso, o município lisboeta não aceita a visão da CNPD de que “não é legítimo” transmitir dados dos promotores de manifestações à PSP. “Isso é um absurdo.” “Recusámo-nos a aplicar [esse princípio] com a unanimidade de todas as forças políticas” na Câmara, atira ainda.

Além das críticas à CNPD, Saraiva guarda algumas para o atual executivo de Carlos Moedas e a alegada dificuldade que uma multa desta dimensão pode causar na prestação de serviços essenciais aos lisboetas. Com um orçamento acima dos mil milhões de euros, “alguma coisa vai mal” se uma multa de 1,2 milhões puser em causa algum desses serviços ou prestações sociais. “É ridículo”, acusa o líder do PS na Câmara, para quem o executivo PSD/CDS só o diz “porque estamos em altura de campanha eleitoral”.

A acusação é semelhante à que faz o resto da oposição, tanto do lado do PCP como do Bloco de Esquerda, embora sem se referirem à campanha eleitoral. Para os bloquistas, “as pessoas, sobretudo as mais vulneráveis, nunca devem ser arma de arremesso político”. Por isso, e lembrando mais uma vez o orçamento da Câmara, o Bloco recusa que possam ficar em causa quaisquer apoios sociais, aproveitando para deixar uma bicada a uma das medidas aprovadas por Moedas, contra a qual o Bloco se opôs. “Há apenas uma semana, [a CML] prescindiu de 30 milhões de euros de receita de IRS”, quando aprovou um aumento da devolução do imposto aos munícipes, como Moedas tinha proposto na campanha eleitoral.

Do lado do PCP, a mesma leitura. “A situação financeira do Município não permite que se utilize como pretexto o pagamento desta multa para recusar as necessárias respostas de que a cidade de Lisboa necessita, nomeadamente no plano social”, escreve a vereação comunista, em comunicado enviado esta tarde às redações.

CNPD: CML teve “militante vontade” em violar regras

O relatório da CNPD não “desmerece” as correcções efetuadas pela CML após as más práticas terem sido tornadas públicas, nomeadamente a “avaliação de impacto” pedida por Fernando Medina. No entanto, sublinha: as “correções foram insuficientes” no que toca à “gestão dos avisos e adensam as dúvidas sobre a genuína vontade de alterar os procedimentos por forma a alinhá-los com a lei.”

Nomeadamente, a CNPD critica o facto de a autarquia ter apenas tentado limitar o envio de dados pessoais à PSP e ao Ministério da Administração Interna (MAI) – isto num despacho interno de 2013, que o gabinete de apoio à presidência não respeitou. Esta prática “sugere uma militante vontade de violar as disposições legais aplicáveis”, diz a CNPD, bem como um “défice de organização” na estrutura da CML.

FOTO: Tiago Miranda

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