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Porque é que os piores alimentos são os mais apelativos? Porque “uma bolacha tem muito mais dinheiro para se publicitar do que uma maçã”

Porque é que os piores alimentos são os mais apelativos? Porque “uma bolacha tem muito mais dinheiro para se publicitar do que uma maçã”

Depois do combate direto aos maus hábitos alimentares, ao limitar alimentos considerados “prejudiciais à saúde” nas escolas, o próximo ataque do Programa Nacional para a Alimentação Saudável não tem nada que ver com alimentos: é a publicidade

Porque é que os piores alimentos são os mais apelativos? Porque “uma bolacha tem muito mais dinheiro para se publicitar do que uma maçã”

Joana Ascensão

Jornalista

Há uma expressão que muda tudo na história da alimentação: “ambiente obesogénico”. O palavrão teve origem na década de 2010 e saiu dos rascunhos de teóricos ingleses. Significa que, independentemente de alguém ser doutorado ou de ter a 4ª classe, se existirem condições à sua volta incentivadores de uma alimentação inadequada, esta vai ser praticada.

A descoberta revirou toda a estratégia tomada desde o início do século para combater a obesidade, especialmente a infantil, que vinha a ganhar um lugar no primeiro plano das emergências em saúde pública.

Veja-se Portugal: o êxodo rural dos anos 60 e 70, fruto de uma industrialização da sociedade, acarretou consigo uma grande mudança nos hábitos alimentares dos portugueses. “Hoje temos uma população a viver entre Viana do Castelo e Setúbal e depois no Algarve, sempre junto ao mar, as mulheres ocupam grande parte do mundo do trabalho e dos estudos”, descreve o nutricionista Pedro Graça. Essas mudanças fizeram com que houvesse o abandono de uma alimentação baseada no cultivo familiar e precipitou uma necessidade por parte dos nutricionistas em informar.

“Toda a estratégia de educação alimentar para a população portuguesa foi muito baseada na ideia de que as pessoas desconheciam uma alimentação adequada, estavam a modificar os seus hábitos alimentares por causa da urbanização e precisavam de ser informadas para fazerem escolhas adequadas”, diz o primeiro diretor do Programa Nacional para a Alimentação Saudável (PNPAS), organismo da Direção-Geral da Saúde, e atual diretor da Faculdade de Nutrição da Universidade do Porto.

Surgem a roda dos alimentos e as grandes campanhas de saúde alimentar dos anos 80, “todo o esforço que foi feito nas escolas para ter a roda dos alimentos nos manuais escolares” - e a ideia de que os ovos e os frangos não nascem no supermercado.

A mudança de paradigma

Uma conferência em Istambul, promovida pela Organização Mundial da Saúde e pela Comissão Europeia em 2006 por causa do contínuo aumento da obesidade, fez mudar o paradigma, diz Pedro Graça. “Apercebemo-nos, já no século XXI, de que independentemente do sítio onde estávamos no mundo e do investimento que era feito em educação, a obesidade infantil e a obesidade no geral, bem como algumas doenças resultantes de hábitos alimentares inadequados, estavam a aumentar”.

Se a educação até amortecia o fenómeno, uma outra série de questões de ambiente contrariavam a tendência, ao contrário do que havia sido calculado. Ela sozinha não estava a conseguir parar o crescimento “avassalador” da obesidade. Aqui entra o ambiente obesogénico, que Pedro Graça se esforça por explicar.

“Se o esforço que eu tenho para comer saudável foi muito superior ao esforço que eu tenho de ter para comer não-saudável, vou comer não-saudável. Ponto final”. O mesmo acontece com a atividade física, se o local do exercício for longínquo e o tempo escassear, ou se os outros vão rir-se de uma pessoa quando ela se despir. O mesmo para conseguir tomar café sem açúcar. “A máquina tem por defeito a saída de café com dois pauzinhos de açúcar, mas se eu colocar no default café sem açúcar, passa a ter de haver um esforço para alguém tirar café com açúcar”, explica. “Se eu aqui na cantina [da faculdade] quiser ter opção de sumo de laranja natural mas esse sumo custar dois euros e meio e demorar dez minutos a ser feito e um refrigerante demorar segundos e custar um euro e meio, está a ver o ambiente obesogénico?”.

Porque é que os piores alimentos são os mais apelativos?

Ao mesmo tempo, os ingredientes que se associam ao prazer - o açúcar, o sal, as gorduras - também embaratecem o alimento. Um pacote de bolachas pode estar numa bomba de gasolina durante três ou quatro semanas e não se estraga. “Ao retirar-lhe água e introduzir sal ou açúcar, a possibilidade de uma bactéria crescer naquela atmosfera é muito baixa”, explica Pedro Graça. Para além disso, torna-se menos pesado, o que o torna mais fácil de transportar, e conserva as suas propriedades nutricionais e de sabor durante mais tempo. A longo prazo, este vários fatores embaratecem os produtos.

Com o dinheiro que sobra, os produtores podem investir em publicidade, o que faz com que, simplificadamente, o nutricionista diga que “uma bolacha tem muito mais dinheiro para se publicitar do que uma maçã”.

Mas a este, acrescenta-se outro problema: a bolacha tem um nome e a maçã não tem, é toda igual. Uma maçã ou um pão “são produtos pobres a vários níveis: não têm ninguém que os publicite, não se conseguem diferenciar uns dos outros... no entanto, são os produtos mais saudáveis e mais baratos”.

“Não faz sentido Portugal estar a proibir uma bebida quando um produtor de jogos israelita traz um jogo para cá cujas cores são iguaizinhas a uma bebida que nós queremos proibir”, Pedro Graça, diretor da Faculdade de Nutrição do Porto.

Em 2012, quando o governo decidiu criar o Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS), olhou-se para o que estava a ser desenvolvido na União Europeia e começaram a implementar-se medidas apontadas ao ambiente.

Em janeiro de 2017, a quantidade máxima de açúcar permitida nos pacotes passou de oito para seis gramas. Três anos depois, em janeiro de 2020, os pacotes que acompanham o café nas grandes superfícies passaram a não poder ter mais do que quatro gramas.

Já em 2019, as bebidas com açúcar passaram a ter de pagar o Imposto Especial sobre Consumo (IEC).

Como a publicidade se tornou uma das principais “ameaças”

A última medidas do grupo, que incidiu sobre a proibição de mais de meia centena de alimentos nos bares e máquinas das escolas públicas veio complementar outras que já se tinham implementado especificamente para a faixa etária que comete “os principais erros alimentares”, garante a atual diretora do PNPAS, Maria João Gregório, e por isso é considerada “um grupo de intervenção prioritário”.

Em abril de 2019, três anos depois de ser proposta, foi publicada a legislação que proibiu a publicidade a bebidas e alimentos que fazem mal à saúde nas escolas, nos cinemas, em programas televisivos e em aplicações dirigidas a menores de 16 anos. “Portugal foi dos primeiros países europeus a ter uma lei para esta área”, congratula-se Maria João.

Mas foi sol de pouca dura. O espaço digital e a forte presença dos jovens nele veio complicar as contas dos especialistas. “Agora a exposição é muito maior porque é dirigida ao perfil individual de cada um. O ambiente digital está a alterar a forma como consumimos e isso foi claramente acelerado pela pandemia”, sublinha a nutricionista que coordenou uma ‘Call to Action’ no âmbito da Presidência Portuguesa da Comissão Europeia para a necessidade de acelerar medidas.

“Com a pandemia e a maior parte dos miúdos fechados em casa a estudar, o desafio é tremendo”, corrobora Pedro Graça. “Não faz sentido Portugal estar a proibir uma bebida quando um produtor de jogos israelita traz um jogo para cá cujas cores são iguaizinhas a uma bebida que nós queremos proibir. É tudo muito sensível. Desde o português dos anos 80 que levava a rodas dos alimentos debaixo do braço, nós hoje estamos a discutir que há um miúdo oito horas fechado em casa, que precisa do computador para estudar e que gosta de uma bebida por associação a uma cor que surge no ecrã quando o herói ganha. É a este nível que estamos a discutir”.

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