Will Steffen: “O principal desafio do século XXI é restaurar a ligação dos humanos à Natureza”
d.r.
O conhecido cientista norte-americano do Sistema Terrestre defende em entrevista ao Expresso que “as economias devem ser organizadas para promover e manter o bem-estar humano, e não para tornar as pessoas mais ricas”
Will Steffen é também professor emérito da Escola Fenner de Ambiente e Sociedade da Universidade Nacional da Austrália (Camberra), investigador do Centro de Resiliência de Estocolmo (Suécia) e copresidente da Comissão Científica da Casa Comum da Humanidade (CCH).
Desde 23 de setembro, esta organização global com sede na Universidade do Porto está a realizar uma campanha de divulgação internacional da sua iniciativa “Um Sistema Terrestre, um Património Comum, um Pacto Global”, em parceria com a agência de notícias norte-americana The Planetary Press.
A campanha conta com uma série de entrevistas feitas por esta agência – as “Conversas da Casa Comum ONU75” – a personalidades de projeção internacional. O Expresso publica todas as quartas-feiras uma entrevista e um vídeo enquanto durar a campanha, mas esta semana, devido às eleições presidenciais nos EUA, interrompemos excecionalmente esta série e publicamos uma entrevista a Will Steffen no âmbito de uma parceria entre a CCH e a Universidade de Stanford (Silicon Valley, Califórnia, EUA), uma das mais prestigiadas do Mundo, que já ganhou 85 Prémios Nobel.
Mas na próxima semana retomaremos as “Conversas da Casa Comum ONU75”. Will Steffen foi, aliás, o primeiro entrevistado desta iniciativa, tendo abordado as propostas da CCH no âmbito do direito internacional (pode ver aqui). Esta semana estão em destaque os seus fundamentos científicos.
A CCH defende o reconhecimento do Sistema Terrestre como Património Comum da Humanidade, para restaurar um clima estável, criar um modelo de governança para os recursos naturais comuns do planeta e promover um novo Pacto Global para o Ambiente junto da ONU, que acabe com o atual impasse nas negociações climáticas. Para concretizar este objetivo, a CCH está a organizar uma coligação global de conhecidos cientistas do Sistema Terrestre e da sustentabilidade, juristas, economistas, sociólogos, Estados soberanos, ONG, organizações internacionais, autoridades e comunidades locais, povos indígenas e universidades.
A Casa Comum da Humanidade tem como fundadores sete universidades portuguesas, a ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável, o Ministério do Ambiente e Ação Climática, as Câmaras Municipais do Porto e de Gaia e especialistas de todo o Mundo. E tem também uma série de parceiros além da The Planetary Press, como o IIDMA – Instituto Internacional de Derecho y Medio Ambiente (Madrid), a rede The Planetary Accounting Network, a Global Voice ou a Earth Trusteeship Initiative.
Darren Boyd / ANU College of Asi
Tem escrito bastante sobre o impacto humano nos limites operacionais seguros dos sistemas vivos da Terra. O que mudou nas últimas décadas?
A melhor maneira de olhar para isso é olhar para o fenómeno da Grande Aceleração. Há cem anos as coisas estavam a mudar. Estávamos na era industrial, a usar combustíveis fósseis, a desmatar terras. Mas nalgum lugar por volta de meados do século XX descolámos. Chamamos isso de Grande Aceleração e podemos ver este fenómeno na população, na atividade económica, no uso de energia, no ambiente global, no rápido acumular de gases de efeito estufa após 1950, quando as temperaturas começaram a subir. E a taxa de desflorestação, principalmente nos trópicos, aumentou dramaticamente. Nos últimos 10 ou 20 anos, provavelmente um dos aumentos mais dramáticos que vimos foi das chamadas novas entidades, coisas novas que estamos a atirar para o Sistema Terrestre, como os plásticos e uma infinidade de produtos químicos feitos pelo Homem, ou a radiação eletromagnética associada ao mundo digital, hoje com estações repetidoras em todo o Mundo. Esta Grande Aceleração está a mudar um pouco de caraterísticas, mas não há sinais de que esteja a diminuir. Entrámos numa época muito diferente em termos de relacionamento humano com o planeta.
Quais são os processos biofísicos que definem os chamados nove Limites do Planeta?
Vamos começar pelos três grandes. Um é o sistema climático e é bastante óbvio que já está seriamente desestabilizado. Outro é a integridade da biosfera. Estamos a mudar a parte viva da Terra a um ritmo enorme, principalmente em terra, mas agora também no mar. O terceiro grande processo é o que chamamos de novas entidades. São as novas coisas que nós, humanos, estamos a lançar no Sistema Terrestre: novos tipos de produtos químicos, materiais radioativos, plásticos. Depois, podemos considerar algumas grandes componentes geofísicas do Sistema Terrestre. Uma é a camada de ozono à volta da Terra, que é importante porque impede que os raios ultravioleta, muito prejudiciais, nos afetem e a outras formas de vida. Outra é a acidez do oceano. Normalmente é muito bem controlada por processos naturais e é muito importante para a vida no oceano, mas precisamos de mantê-la dentro de limites muito estreitos. O terceiro grande Limite do Planeta geofísico são os aerossóis, partículas emitidas para a atmosfera, algumas delas naturais, devido às tempestades de poeira.
Qual é a função dos aerossóis?
Ajudam a regular o equilíbrio de energia na superfície planetária, mas também causam problemas diretos para a vida na Terra, através da poluição. Os três últimos processos para descrever como a Terra opera são mais em termos da biosfera terrestre. O primeiro é o ciclo da água, importante para toda a operação do Sistema Terrestre, e por isso devemos ter um sistema de água saudável. O segundo é a mudança do uso da terra. As paisagens estão a mudar rapidamente, como acontece na floresta amazónica e em algumas das grandes florestas do norte da Sibéria e do Canadá. O último é a interrupção do ciclo do fósforo e do azoto, elementos de que precisamos para a agricultura. Quando colocamos os nove Limites do Planeta todos juntos e olhamos para as suas interações, podemos descrever como funciona o Sistema Terrestre. Todos eles estão a mudar rapidamente e o principal fator que impulsiona estas mudanças é a atividade humana. Os limites para um Sistema Terrestre em bom funcionamento já foram excedidos.
O metano é muito mais potente como gás de efeito estufa do que o CO2. Por que não vemos esta questão ser levantada de maneira mais crítica?
A libertação de metano foi ofuscada obviamente pelas emissões diretas de CO2, que é o principal gás de efeito estufa e o mais importante em geral. No entanto, é uma preocupação real que a concentração de metano na atmosfera tenha aumentado na última década. A maior parte ainda se deve às atividades humanas diretas, como a criação de gado e o consumo de gás natural, mas o mais importante é o metano armazenado nas elevadas latitudes do Norte, basicamente no permafrost (solo permanentemente gelado). Também está preso nos sedimentos no fundo do Oceano Ártico e estamos a constatar emissões mais altas de metano à medida que o Ártico sofre um aquecimento excessivo, o dobro da média global. Felizmente, o crescimento das emissões ainda se regista a taxas bastante baixas, mas há um sistema de feedback de autorreforço. Na Sibéria, por exemplo, quando o permafrost derrete liberta não só metano como CO2. O problema é que poderemos atingir um ponto de não retorno interno onde todo o sistema se autorreforça, isto é, o derretimento do permafrost em si gera calor suficiente que, mesmo se pudéssemos estabilizar o clima, continuaria a acontecer. Se atingirmos esse ponto crítico vamos libertar uma grande quantidade de metano na atmosfera, o que vai aquecer a Terra a uma taxa acelerada e provavelmente fará com que o derretimento da Gronelândia seja irreversível.
Este processo pode desencadear um efeito dominó?
Sim, com a redução da circulação do oceano no Atlântico Norte e a desflorestação da Amazónia a Sul, devido à diminuição das chuvas tropicais, porque metade das chuvas sobre a floresta amazónica são provenientes do Atlântico. O problema do metano não tem recebido a atenção que merece porque ainda vemos o sistema climático como um sistema linear, isto é, onde o aumento da temperatura e do CO2 estão linearmente relacionados com as emissões de combustíveis fósseis. Mas a verdade é que tudo isto poderia conduzir o sistema climático a um estado muito mais quente, porque não é linear, tem mudanças abruptas e irreversíveis.
Culturalmente, os humanos têm funcionado como se estivessem acima da Natureza, ao invés de serem uma parte dela.
Sim, desenvolvemos culturas e sociedades que estão cada vez mais desligadas da Natureza ou do Sistema Terrestre. Pensamos que podemos operar independentemente da Terra e que as nossas economias podem funcionar sem limites, com o resto da Terra visto principalmente como um recurso para ser explorado. Mas o que estamos a ver agora é que existem claramente limites. Por isso precisamos de mudar a forma como vemos o nosso lugar na Natureza. Construir uma economia onde encaramos o planeta como algo externo a nós - o que os economistas chamam externalidade - está totalmente errado. Na verdade, nós fazemos parte do planeta vivo. Se não conseguirmos ser os gestores eficazes e sábios da biosfera e do resto do planeta, já podemos hoje ver as consequências, porque a sexta grande extinção está a acontecer, tal como a interrupção dos ciclos dos grandes elementos ou a perturbação do sistema climático. Ou seja, as culturas humanas colocaram-nos em conflito direto com o nosso próprio sistema de suporte de vida. Por isso, temos de restaurar a nossa ligação à Natureza. Esse é o nosso principal desafio no século XXI.
Darren Boyd / ANU College of Asi
Os humanos estão muito ligados a uma economia que coloca o lucro à frente da Natureza, das pessoas e do planeta. Como podemos mudar esta economia?
Estão a surgir soluções inovadoras. Uma das mais interessantes é a chamada “economia do donut”, desenvolvida pela economista Kate Raworth, da Universidade de Oxford. As economias devem ser organizadas e projetadas para promover e manter o bem-estar humano, e não apenas para tornar as pessoas mais ricas. Na verdade, há hoje muitas evidências de que ficar simplesmente mais rico e individualista é destrutivo para o bem-estar humano. Precisamos de olhar para os valores sociais. Kate Raworth define o círculo interno do donut como equidade social. E o anel externo como o nosso limite ambiental ou planetário. E usa os nove Limites do Planeta como uma estrutura para orientar um Sistema Terrestre em bom funcionamento. Um sistema económico que funcione bem não deve envolver riqueza cada vez maior, mas precisa antes de fornecer bem-estar social dentro dos limites operacionais seguros para o planeta. E alguns países já estão a começar a desenvolver a economia do bem-estar, como a Nova Zelândia.
As tecnologias para construir um futuro sustentável para a Humanidade parecem já existir. Podemos passar do tribalismo para um consenso planetário que coloque a sobrevivência comum em primeiro lugar?
É uma questão crítica. Temos de voltar aos sistemas de valores básicos que impulsionam as nossas sociedades. Uma das ideias mais fascinantes foi apresentada pelo jurista português Paulo Magalhães, que desenvolveu o conceito de Casa Comum da Humanidade e argumenta que parte da razão pela qual não podemos forjar um futuro sustentável é que não temos uma estrutura legal que nos permita fazer isso. Quando olhamos para um mapa do Mundo vemos as fronteiras que identificam os Estados-Nação, mas quando subimos ao Espaço vemos um único sistema. A inovação jurídica de Paulo Magalhães foi reconhecer o Sistema Terrestre, não o planeta físico, mas o software, a interface do seu funcionamento, a circulação dos oceanos e da atmosfera, o movimento do carbono, azoto e fósforo à volta da Terra. Portanto, temos esperança de mudar a maneira como pensamos, devido ao facto de vivermos em Estados-Nação, mas partilharmos um único sistema de suporte à vida, o Sistema Terrestre. A inovação de Paulo Magalhães é defender que precisamos de uma nova estrutura legal no direito internacional para nos ajudar a reorganizar a forma como operamos a economia e a sociedade. E que precisamos de ver o Sistema Terrestre reconhecido legalmente como património natural intangível da Humanidade.
Esta proposta passa por influenciar a ONU?
Sim, Paulo Magalhães iniciou um movimento que agora está a ganhar muita força nas Nações Unidas. O mundo das nações precisa de um tratado que reconheça o Sistema Terrestre como o património intangível comum de todos os seres vivos do planeta. Assim que o fizermos podemos começar a reconhecer legalmente e a penalizar as ações que danificam esse sistema de suporte de vida comum. E a recompensar as pessoas e agentes que estão a regenerar ecossistemas e a remover o CO2 da atmosfera, o que poderá ser reconhecido como algo que tem valor económico, o que hoje não acontece. Talvez já existam movimentos suficientes, como as greves e manifestações de estudantes pela ação climática, que podem alimentar a ideia de reconhecer legalmente o Sistema Terrestre no direito internacional.
O que pode fazer cada um de nós para garantir que os processos biofísicos estejam a operar dentro de limites seguros e sustentáveis?
É uma questão de ação coletiva. Individualmente, podemos mudar o nosso estilo de vida, mas todos estamos inseridos em sistemas económicos exploradores que são muito prejudiciais para o Sistema Terrestre. Por isso, precisamos de mudar a forma como operamos a economia. Muitos de nós vivemos em sistemas democráticos e temos a oportunidade de mudar o sistema, através de manifestações pacíficas, de pressão sobre os governos e sobre os sistemas financeiros para que direcionem dinheiro para atividades económicas menos prejudiciais, de pressão para salvar áreas preciosas dos ecossistemas.
Entrevista feita por Geoffrey Holland, coordenador dos “Diálogos MAHB de Stanford” (Millennium Alliance for Humanity and the Biosphere), Universidade de Stanford, EUA
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