Os representantes das comunidades judaicas de Lisboa e Porto estão contra a iniciativa. Para Esther Mucznick, que acompanhou o processo legislativo que resultou na lei da nacionalidade para os descendentes de sefarditas e integra a comissão de análise dos candidaturas em Lisboa, a comunidade judaica “sempre respeitou o pacto de confiança com o Estado português, apreciando os processos requerentes com o maior rigor”.
A Comunidade Israelita do Porto também não concorda. “Dadas as nossas responsabilidades para com as nações portuguesa e judaica, não podemos ser a favor de uma proposta que percorre todos os corredores da Assembleia da República à velocidade da luz, em tempos de pandemia, sem passar por uma votação na generalidade”, respondeu ao Expresso Michael Rothwell, da direção da CIP. Para completar que “a exigência de uma ligação efetiva atual é algo novo e, sim, pode ser ponderada com equidade e justiça, por via de circunstâncias diversas que não a residência obrigatória”.
Duas cartas a Marcelo Rebelo de Sousa
Esta quarta-feira e pela segunda vez em dias consecutivos, uma organização internacional de defesa do povo judeu escreve ao Presidente da República Portuguesa a propósito das propostas de alteração à lei da nacionalidade. Depois de ontem Charles Kaufman, presidente da influente B’nai B’rith, ter “implorado” a Marcelo Rebelo de Sousa para travar as mudanças sugeridas pelo PS, volta a surgir um gesto idêntico de Jonathan Greenblatt, da Anti-Defamation League, com sede em Nova Iorque.
Desde 2015 que os descendentes de judeus sefarditas podem obter cidadania portuguesa apresentando apenas certificado de registo criminal e declaração de descendência (emitida pela Comunidade Israelita). Se a proposta socialista singrar, passam a ter de comprovar “tradição de pertença a uma comunidade sefardita de origem portuguesa, com base em requisitos objetivos comprovados de ligação a Portugal, designadamente apelidos, idioma familiar, descendência direta ou colateral e que tenham residido legalmente em Portugal pelo período de dois anos”. É o que se lê na versão preliminar do projeto defendido pela deputada Constança Urbano de Sousa, ex-ministra da Administração Interna. O processo legislativo está na fase da especialidade, depois e no ano passado a Assembleia da República ter aprovado na generalidade projetos de lei do PCP e do PAN.
Greenblatt lembra que “a comunidade judaica internacional redescobriu Portugal nos últimos anos, graças ao interesse gerado pela Lei da Nacionalidade e as pequenas, mas extremamente hospitaleiras comunidades judaicas do Porto e de Lisboa”. Os que visitam o país ficam “admirados e maravilhados ao saber que o antissemitismo não é uma questão em Portugal”, o que o torna “uma exceção na Europa”.
É por isso que a Anti-Defamation League pede a Marcelo que “evite a adoção das mudanças propostas”, que, por exigirem residência em solo, “reduziria significativamente o número de potenciais candidatos à cidadania”. Greenblatt crê que “nem o Governo português nem a comunidade judaica internacional desejariam tal resultado”. Os novos requisitos, a serem aprovados, entrariam em vigor a 1 de Janeiro de 2022.
Ainda não há data para a o debate e votação da lei na especialidade, que acontecerá na comissão parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias. O PSD já se pronunciou contra as mudanças, não por causa dos sefarditas, mas por rejeitar as facilidades dadas a estrangeiros na obtenção da cidadania portuguesa e por considerar que a lei tem sido sucessivamente alterada e deve vigorar por algum tempo, para poder ser avaliada.
Pertença histórica
Sefarad é a designação hebraica para Península Ibérica e está na base da decisão legal de garantir a nacionalidade aos descendente dos judeus que saíram de Portugal em 1496, quando o rei D. Manuel , seguiu a orientação do Decreto de Alhambra de 1492, que, após a conquista de Granada, expulsou os judeus de Espanha. Saíram mas continuaram sempre ligados à terra e aos costumes ibéricos. Seja na língua, seja na fora de ser. E é esse património que, centenas de anos de pois, os descendentes reivindicam. E é com provas históricas que tentam justificar a descendência e a pertença à comunidade ibérica.
Os descendentes de judeus sefarditas portugueses têm de demonstrar esta pertença a uma comunidade sefardita de origem portuguesa através da comprovação da ligação a Portugal, designadamente apelidos, idioma familiar, descendência direta ou colateral, “desde que sejam maiores ou emancipados à face da lei portuguesa e não tenham sido condenados, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos”.
Mas para a deputada socialista e vice-presidente da bancada do PS, Constança Cunha de Sousa, não basta. Em declarações ao “Público” disse que a nova regra deverá entrar em vigor a 1 de janeiro de 2022 e explicou que “Portugal só exigia um certificado de registo criminal e uma declaração de descendência passada pela Sociedade Israelita de Lisboa ou a do Porto”.
Explica ainda que esta abertura terminou em Espanha em 2019, o que “vai aumentar a pressão” sobre Portugal, que “passa a ser o único país a usar esta via verde de atribuição de nacionalidade a descendentes de sefarditas”, mas “agora obedecendo ao cumprimento do princípio basilar da nacionalidade que é o da conexão efectiva a uma comunidade”. Ou seja, passa a ser necessário viver durante dois anos país.
Além disso, considera que a alteração vai limitar os pedidos: “Em 2016 entraram 5100 pedidos, em 2017 foram 7044, em 2018 houve 13.872 e em 2019, atingiram os 25.199.” Trata-se de “um crescimento exponencial”, defendeu ao “Público”, lembrando que “a este número acrescem os pedidos de extensão aos filhos e cônjuges, que também registaram um enorme crescimento”. Pedidos originários, sobretudo, de Israel e da Turquia.
“A concessão de nacionalidade significa a concessão de passaporte português o que dá direito a residir na União Europeia e a entrar, sem visto, nos Estados Unidos”, explicava ainda Constança Urbano de Sousa, que alertava também para a existência de “um comércio de passaportes instalado em que estão envolvidos grandes escritórios de advocacia”.
Empenho de Mário Soares e Jorge Sampaio
A lei aprovada em 2015 visava, portanto, reconectar Portugal com as comunidades sefarditas tradicionais de origem portuguesa, sem exigir nem a residência no território nacional nem o domínio da língua portuguesa. Na altura, Maria de Belém Roseira, então presidente do PS, numa exposição ao grupo parlamentar, justificava que a legislação seria o “corolário de um percurso de reabilitação histórica iniciado pelos Presidentes da República Dr. Mário Soares e Dr. Jorge Sampaio”.
O Decreto-Lei n.º 30-A/2015, de 27 de fevereiro, enuncia, as regiões onde se estabeleceram as comunidades sefarditas tradicionais de origem portuguesa, após a partida: "regiões do Mediterrâneo (Gibraltar, Marrocos, Sul de França, Itália, Croácia, Grécia, Turquia, Síria, Líbano, Israel, Jordânia, Egito, Líbia, Tunísia e Argélia), norte da Europa (Londres, Nantes, Paris, Antuérpia, Bruxelas, Roterdão e Amesterdão), Brasil, Antilhas e EUA, entre outras.”
Também deixava claro tratar-se da “atribuição de um direito” aos judeus sefarditas, explicitando que “não haverá prazo para o exercício deste direito. E que seria necessário contar com a colaboração das comunidades judaicas portuguesas no processo de certificação dos casos individuais que reivindicavam a nacionalidade. José Ribeiro e Castro, deputado do CDS, foi um dos principais defensores da legislação: “O Governo não se limitou a ouvir os representantes da comunidade judaica para os consultar, mas consagrou a sua colaboração futura nos processos administrativos que venham a correr. Não podia ser doutro modo: só a comunidade judaica possui o conhecimento necessário a certificar a ancestralidade de que se trata e a legitimidade das pretensões individuais. E não deveria ser doutro modo: esta lei é, nalguma medida, uma reparação histórica, ligando de novo o que fora rompido; ora, essa ligação repousa melhor, e sobretudo mais segura, na boa colaboração entre o Estado português e a comunidade judaica, velando ambos pela aplicação justa da lei, evitando abusos ou oportunismos que a desprestigiassem e pudessem pôr em risco e consolidando o novo regime como marco e pilar inapagáveis.”