Sociedade

Grupo que reivindicou ataque à Porta dos Fundos é inspirado em admirador de Salazar que escreveu obra de leitura obrigatória em Portugal

O sketch de Natal da Porta dos Fundos, e o subsequente ataque à sede da produtora, motivou o debate sobre o integralismo brasileiro
O sketch de Natal da Porta dos Fundos, e o subsequente ataque à sede da produtora, motivou o debate sobre o integralismo brasileiro
Porta dos Fundos

Plínio Salgado, pai e líder supremo do integralismo brasileiro, esteve sete anos exilado em Portugal na década de 1940. Encantado com o líder do Estado Novo português, quis criar um “salazarismo à brasileira”. Cerca de 80 anos depois da sua passagem por Portugal, pessoas que se dizem parte do movimento fundado por Plínio Salgado atacaram a Porta dos Fundos por causa de um filme humorístico em que Jesus é retratado como gay

O vídeo a reivindicar o ataque à sede da produtora do programa de humor Porta dos Fundos, no Rio de Janeiro, foi retirado do YouTube por violar a política relativa a conteúdo violento ou explícito, mas nem isso acalmou o debate em torno do movimento integralista no Brasil. De cara tapada, três homens que se dizem parte do movimento apareciam vestidos com uma bandeira com a letra grega sigma e vestidos com camisas verdes, dois símbolos do integralismo brasileiro.

Não é a primeira vez que o “Comando de Insurgência Popular Nacionalista, da Grande Família Integralista Brasileira”, o faz: há exatamente um ano, o mesmo grupo roubou e queimou três bandeiras antifascistas da UniRio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) como resposta ao grupo de combate e denúncia do discurso de ódio daquela universidade. Em ambos os casos usou as redes sociais para se dizer autor dos ataques e em ambos os casos viu a principal liderança do movimento, a Frente Integralista Brasileira (FIB), distanciar-se dele. Não é ainda claro onde está o intruso. Se é a FIB a usar a estratégia de se distanciar para fugir a eventuais investigações ou se é o grupo dos ataques apenas um conjunto de “lobos solitários”, sem qualquer articulação ou ligação às lideranças. Mas o debate está lançado: quem são, de onde apareceram e para onde querem ir os integralistas?

Por mais que os militantes o neguem, o movimento é, para os investigadores, “o fascismo brasileiro”. Leandro Pereira Gonçalves, professor do departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora, lembra ao Expresso que o termo — como outros da mesma família — tem sido bastas vezes mal empregue: “nas redes sociais a intolerância virou fascismo, mas ela não é. Academicamente, fascismo é outra coisa”. E não deve ser confundida com a governação de Jair Bolsonaro, eleito presidente do Brasil há pouco mais de um ano. Nessa altura, os integralistas deram um “apoio crítico” ao então candidato: continuam a concordar com o conservadorismo nos costumes, com o anticomunismo, mas discordam das boas relações com Israel e Estados Unidos e sobretudo da política económica liberal proposta pelo ministro das Finanças, Paulo Guedes. Os integralistas são ferozmente nacionalistas, na política e na economia. Não acreditam na democracia liberal e propõem uma “democracia orgânica”, em que as decisões são tomadas por grupos sociais aos quais cada cidadão deve pertencer (os sindicatos, por exemplo). Defendem a doutrina social da Igreja, sobretudo católica. “Não é o Deus pentecostal de Bolsonaro, tal como a família conservadora tradicional não é a mesma”, diz Pereira Gonçalves.

As semelhanças, porém, existem e vão além da “ameaça do papão comunista”. Materializaram-se há um mês quando Bolsonaro fundou um novo partido, o Aliança pelo Brasil, e se apropriou do slogan integralista, que se ouve agora a várias vozes - “Deus, Pátria, Família”. Fundado no catolicismo, o integralismo brasileiro dita valores morais e apresenta o Brasil como uma família. A letra sigma, que significa somatório, representa essa ideia, tal como “Anauê”, a saudação de origem tupi guarani, que significa “você é meu irmão”.

“Os integralistas estão aproveitando o ambiente político conservador para chamar a atenção para as suas bandeiras”, comenta Pereira Gonçalves. E a principal é o fascismo tradicional à italiana. O fundador Plínio Salgado, “pai, chefe, líder máximo, único e supremo” do movimento, esteve em Itália em 1930, onde conheceu Benito Mussolini e de onde “saiu encantado”. Nessa altura já a personalidade política do escritor e jornalista brasileiro estava desenhada (tinha 35 anos), mas é pouco depois dessa visita que nasce a Ação Integralista Brasileira (AIB), aquela que é até hoje a referência de todos os neointegralistas — aqueles que se juntaram ao movimento após a morte de Plínio, em 1975.

Pedro Doria, prestes a lançar um livro sobre a história do integralismo, aponta no Facebook: “A extrema direita brasileira dos anos 1930 não era como a de hoje num aspeto - Plínio leu poesias suas durante a Semana de Arte Moderna de 1922. Barroso [Gustavo Barroso, outros dos fundadores] já era membro da Academia Brasileira de Letras quando a AIB nasceu. Reale [Miguel Reale, outro ainda] foi talvez o maior jurista brasileiro do século 20. Eram intelectuais. De extrema-direita mas homens que liam, que escreviam e refletiam.” Atraíam outras figuras do universo cultural brasileiro, como Glauber Rocha ou Vinícius de Moraes, ambos com passagem pelo integralismo. “A atual extrema-direita”, completa Doria, “se orgulha em menosprezar a elite intelectual”.

As diferenças entre os velhos e os novos integralistas não acabam por aí. Enquanto os primeiros “acreditavam que o Brasil precisava de autoridade” — “não fingiam ser democratas” —, os novos “fingem”. No vídeo entretanto apagado do Youtube, a bandeira do Brasil imperial chama a atenção para uma terceira diferença. “O fascismo é revolucionário (...), quer uma mudança radical no Estado, no país”, acrescenta Pedro Doria. Já os novos movimentos misturam a ideia de revolução com a de reação. Querem “um retorno ao Brasil agrário monárquico” e distância de um “país industrial e urbano”.

Portugal no coração

Nem Plínio Salgado passou despercebido em Portugal nem o país foi indiferente para a vida do fundador do integralismo brasileiro. Obrigado a exilar-se do Estado Novo no Brasil (e da ditadura de Getúlio Vargas, que ilegalizou os partidos), Plínio chegou a Portugal em 1939, nove anos depois do encontro com Mussolini. Assentou perfeitamente no Estado Novo português.

“Com uma proposta nacionalista e basicamente católica, Salazar inspirou Plínio” ao longo dos sete anos em que este viveu em Lisboa, conta Leandro Pereira Gonçalves, via WhatsApp. Nessa altura, o brasileiro aproximou-se da elite portuguesa, sobretudo a que estava ligada ao integralismo lusitano, frequentando os mesmos espaços que figuras como Alberto Monsaraz, Hipólito Raposo, Pequito Rebelo ou o Cardeal Cerejeira, Patriarca de Lisboa, e amigo pessoal de Oliveira Salazar. Com o ditador português, que admirava, Plínio só contactará de forma mais profunda em 1962, numa das inúmeras visitas que fará a Portugal, depois de regressar definitivamente ao Brasil e fundar o Partido de Representação Popular (PRP).

António de Oliveira Salazar e Plínio Salgado num encontro a 15 de maio de 1962
“Plínio Salgado: um católico integralista entre Portugal e o Brasil (1895-1975)”

“Portugal foi destaque na organização doutrinária de Plínio” durante o exílio, “momento que utilizou para reordenar o seu pensamento, ações e articulações políticas, tendo a vertente do espiritualismo católico como força central”, explica Pereira Gonçalves. O investigador esteve em Portugal a estudar a figura do fundador do movimento, o que deu origem ao livro “Plínio Salgado: um católico integralista entre Portugal e o Brasil (1895-1975)”, editado em Portugal pela Imprensa de Ciências Sociais. Também em Lisboa, Plínio Salgado “encontrou o espaço para a rearticulação da proposta política” e passou a “ser um defensor supremo da política de Oliveira Salazar, imagem que seguiu até o fim da vida”. Tornou-se também uma figura admirada pelo Estado Novo português, sobretudo a partir de 1943, data em que por cá foi publicado o livro “Vida de Jesus”. Desdobrou-se em entrevistas na imprensa, controlada pelo regime, e apresentou a obra do Algarve a Trás-os-Montes, a ponto de a mesma chegar à casa “de qualquer família católica portuguesa que se prezasse”. Pouco tempo depois, “Vida de Jesus” tornar-se-ia mesmo leitura obrigatória nas escolas do país.

Plínio Salgado incorporou as ideias políticas de Salazar, mas também influenciou o ambiente social, político e religioso português. O seu livro “Vida de Jesus” tornou-se leitura obrigatória nas escolas
“Fundo Partido de Representação Popular – Brasil do Acervo Documental AIB/PRP-DELFOS-PUCRS”

Do encontro de 1962 com Salazar, Plínio Salgado deixou registadas algumas palavras ao “Diário da Manhã”, jornal oficial do Estado Novo. “Quando se está com o prof. Oliveira Salazar aprende-se sempre muito. Durante o nosso encontro abordámos diversos problemas, tanto nacionais como internacionais, e examinámos a expansão do Mundo com as correntes que hoje são a melhor lembrança da clarividência e do equilíbrio de Salazar, que considero um dos maiores estadistas do nosso tempo.”

Falar deles é dar-lhes força?

O debate sobre a atenção dada a grupos radicais, especialmente quando são ainda pequenos, não é novo. Existe entre académicos e jornalistas. Palavra a um dos primeiros. “Acho que é importante ter cautela, mas não podemos silenciar” estes movimentos, acredita Pereira Gonçalves. Tal como um colega da mesma universidade de Juiz de Fora, Odilon Caldeira Neto, o professor tem dado nos últimos dias diversas entrevistas sobre o integralismo, como já havia feito há cerca de um mês quando um grupo de dezenas de pessoas marchou em São Paulo com as insígnias do movimento. “O que me deixa preocupado é quando os investigadores têm o mesmo espaço, ou às vezes até menos, do que os militantes.” Por uma questão “de likes, de engajamento”, o risco é real. E porque a atenção para estas questões é também recente. “Você não tem ideia da quantidade de vezes que já me perguntaram se sou integralista só porque estudo a doutrina. É um problema no Brasil, que não soube olhar o seu passado”, comenta o professor.

Entre os estudiosos do integralismo e do neointegralismo há a crença de que a margem de crescimento do grupo é, apesar de tudo, curta. Atualmente trata-se de um conjunto de “grupelhos”, como lhe chamam, disperso, fragmentado, com causas nem sempre coincidentes. “Há uma miscelânea muito grande, uns mais radicais, outros mais conservadores”, reforça Leandro Pereira Gonçalves.

É provável que muitos integralistas brasileiros se tenham sentido ofendidos com o sketch de Natal da Porta dos Fundos, sendo também certo que “muitos não concordam com o ataque” à sede da produtora. Permanecem incertas as ligações do grupo que reivindicou esse ataque a outros da mesma índole. Tem agora a palavra a Polícia Militar do Rio de Janeiro.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: jdcorreia@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate