- Quantos filhos querem ter?
- Não sei.
- E nomes? Têm algum pensado?
- Não sei.
As respostas incertas de Joana são as de quem sabe bem a incerteza que é a vida. O “não sei” é dito entre um riso nervoso e ansioso, ainda com esperança. Não se quer comprometer. Para ela ter um filho não basta querer tê-lo - até porque essa vontade não lhe falta. Joana e o namorado esperam que a gestação de substituição (vulgarmente conhecida como barriga de aluguer) seja aprovada e legalizada. Não há outra forma de a gravidez acontecer porque Joana é infértil. Primeiro, ainda nem tinha chegado à maioridade, descobriu que não tinha vagina. Depois, não muito depois, soube que não conseguiria engravidar, não tinha útero.
Joana Freire tem 32 anos e tem síndrome Mayer-Rokitansky-Küster-Hauser.
Aos 17 anos ainda não tinha menstruação, mas o médico sempre a tranquilizara. Embora incomum, podia acontecer só aparecer mais tarde. Não conseguia ter relações sexuais, mas diziam-lhe que o hímen era demasiado rijo. Joana estranhou e marcou uma consulta no ginecologista. Foi com a mãe mas pediu-lhe que ficasse fora do gabinete, pois não sabia das frustradas tentativas da filha para iniciar a vida sexual. A médica examinou e, por fim, disse-lhe: ‘a Joana não tem vagina’.
“Foi um choque. Comecei chorar.” Nesse instante voltou a ser menina e chamou pela mãe. “Só chorava e queria-a ali. Quando entrou, a médica disse outra vez: a Joana não tem vagina.”
Não houve qualquer negligência ao longo do crescimento. A olho nu, a vulva de Joana é como a de outra mulher e tem o orifício do canal vaginal com alguns milímetros. “Dali para a frente é que não há nada e, por isso, sempre se pensou que estava tudo bem.” Na prática, o síndrome Mayer-Rokitansky-Küster-Hauser é uma doença congénita do aparelho reprodutor feminino caracterizada pela ausência de canal vaginal, que está fechado. Acontece a uma em cada 4500 a 5000 mulheres.
“Depois o mundo voltou a desabar, tiraram-me o chão, tiraram-me tudo”: Joana não poderia engravidar.
Fizeram-se análises, exames, ecografias, ressonâncias magnéticas. Joana, de agora em diante sempre acompanhada pela mãe e a irmã - e já lhe explicaremos o quão importante é esta irmã na história - acabaria por ser operada em dezembro de 2004, submetida a uma reconstrução do canal vaginal. “Tiraram um excerto do intestino, foi tratado e criado o canal”, explica.
Naquela altura, essa era a maior preocupação de Joana. Ter filhos não era objetivo imediato. A relação que tinha então, acabou. E para as pessoas que em seguida conheceu, encontrou uma “estratégia”, como ela diz. Ao fim de pouco tempo explicava a sua condição e a incapacidade de gerar um bebé. “Sempre acreditei que se a pessoa quisesse, ficava. E sabendo de tudo desde o princípio, tomaria a sua escolha.” Hoje, Joana e o namorado, Flávio Tico, falam abertamente da “nossa” infertilidade - assim mesmo, no plural.
Porque tinha de ficar ali?
Um dia Joana estava muito irritada. Tinha consulta de ginecologia e aguardava na sala de espera que a chamassem. E aquilo irritava-a mesmo: esperava no mesmo sítio que todas as outras mulheres esperavam, a diferença é que elas estavam grávidas e Joana não. Nem nunca estaria. Quando entrou para o gabinete médico, questionou porque tinha de partilhar o mesmo espaço. Não era por exigência, era por dor. “Custava-me muito olhar para as barrigas. Hoje já é bem mais fácil, mas por vezes ainda choro.”
Lida-se mal com tudo isto, diz-nos, e precisa-se de ajuda. No meio do medo, sentia-se menos mulher. Não consegui ter conversas sobre menstruação ou relações sexuais. “Com o tempo percebi que a doença não me definia e que só por ser diferente que não poderia sentir-me inferior. Isso acontecia mais no começo, mas ainda vai acontecendo nos dias em que estou mais em baixo.” E nesses dias tenta focar-se no trabalho, pensar noutras coisas, ocupar a cabeça.
Falar abertamente e partilhar a experiência, ajudou. Criou um blogue, “a(m)arte”, e surgiu a oportunidade de escrever um livro. O que começou por ser um relato de mulheres que vivem síndrome Mayer-Rokitansky-Küster-Hauser, tornou-se num testemunho de várias mulheres que não podem carregar no ventre o bebé que tanto desejam. “A viagem que não escolhemos – histórias sobre a infertilidade” (Editora Ancora, €15) é lançado esta quarta-feira no Parlamento, em Lisboa, onde vai ser apresentado por Eurico Reis, antigo Presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, e Cláudia Vasconcelos, Presidente da Associação Portuguesa de Fertilidade.
As amigas de Joana já têm quase todas filhos. Ela ainda não, mas acredita que pode acontecer e a gestante será a sua irmã mais velha, que já foi mãe duas vezes. “A minha infertilidade é ambígua, tenho ovários e material genético, posso ter um filho. Só não tenho o útero, não posso gerar”, diz. “Para mim, foi importante mudar a forma como via as coisas. Dizia: não posso ter um filho. Corrigi: não posso gerar um filho.”