A Fundação José Saramago recebe esta quarta-feira Ana Aranha, Carlos Ademar e a resistente antifascista Georgina Azevedo, para falarem sobre um livro que teve origem num programa de rádio com o mesmo nome, emitido na Antena 1, em 2014, ano em que se comemoraram os quarenta anos do 25 de Abril. “No Limite da Dor - A Tortura nas Prisões da PIDE” (Parsifal, 2014), com prefácio de Irene Flunser Pimentel e posfácio de Mário de Carvalho, recolhe testemunhos daqueles que passaram pelas prisões da PIDE, a polícia política do anterior regime. Com Ana Aranha recordámos uma obra que não quer esquecer aqueles que “lutaram pela vida no sentido mais nobre”.
À parte da questão política, estes testemunhos ensinaram-lhe mais sobre a vida ou sobre a morte?
Sobre a vida. Estes testemunhos são lições de vida e de vidas muito especiais. Foram pessoas que aceitaram um sacrifício de grande dor e sofrimento em defesa de ideais de liberdade que iam contra as formas de repressão da ditadura. Quem aceita sujeitar-se a este tipo de sofrimento e quem luta como eles lutaram está a lutar pela vida no sentido mais nobre.
Há algum relato que a tenha acossado por ser demasiado terrível?
Todos os relatos são terríveis. Houve situações mais extremas ou mais extremadas, onde as torturas foram levadas a níveis inimagináveis. De facto, houve um ou outro que, pela complexidade psicológica, me marcou mais. Na verdade, as experiências relatadas são tão dolorosas, tão fortes, tão impressionantes, que eu, olhando para o conjunto, não gosto muito de destacar esta ou aquela. São pessoas de uma fibra extraordinária.
Quis ter uma seleção representativa das várias oposições ao regime?
Sim. Tentei ter alguns parâmetros. Quis entrevistar pessoas de formações partidárias diferentes. Durante a maior parte da ditadura, os presos políticos e os torturados foram quadros e militantes do Partido Comunista Português (PCP). Mas a partir de determinada altura também eram detidos e barbaramente torturados militantes de outros movimentos políticos, como os de extrema-esquerda ou os católicos progressistas. Depois, tive a preocupação de entrevistar pessoas de origens diferentes: operários, gente do mundo rural, estudantes, universitários. Embora não se possa dizer isto de forma simples, o tratamento que a PIDE dava a pessoas de diferentes origens não era idêntico. Outra questão muito importante para mim, até porque continua a ser um assunto muito estigmatizante, tem a ver com o que normalmente se refere como “a questão de porte”, ou seja, a forma com as pessoas se comportaram sob tortura e prisão. Aqueles que prestaram declarações ficaram com um peso e uma mágoa para a vida inteira, porque todos eles queriam resistir. O objetivo da PIDE era que as pessoas falassem mesmo quando já sabia o que iriam responder. Porque quando um preso saía em liberdade, e se dizia que tinha prestado declarações, passava a ser uma pessoa proscrita na organização política, perante a família e o seu círculo de amigos. Quem resistiu a tudo, e pôde dizer que não informou a PIDE, tem a alma lavada. É muito claro nos vários testemunhos que estão no livro que falar era a linha que nenhum preso queria transpor. Sofreram na altura, fisicamente e psicologicamente, mas não carregaram mais nenhum peso para a vida.
Quem resistiu, e não falou, também carregou as sequelas da tortura…
Sim, há pessoas que falam das sequelas físicas. Há pessoas que ficaram com uma mão aleijada, a ouvir mal, com insónias… Algumas tiveram que procurar ajuda psiquiátrica. Na verdade, não podemos imaginar que perante experiências tão extremas as pessoas passem incólumes, mesmo passados tantos anos.
“Memórias do Exílio”, o vosso livro mais recente, também surge desta recolha de testemunhos?
No mesmo ano de “O Limite da Dor”, os quarenta anos do 25 de Abril, fiz uma série de programas de rádio (Antena 1) sobre clandestinidade, que foi outra forma de resistência muito interessante. Podia ter dado um livro, mas não deu. Mais tarde, em conversas com a jornalista Diana Andringa, percebi que seria interessante recolher testemunhos dos exilados e do seu contributo para a luta antifascista. O espírito deste livro é, por isso, mais ou menos o mesmo. Tentei diversificar as origens das pessoas e os destinos destas, as suas dificuldades. Quis também trazer ao de cima a deserção daqueles que fugiam à Guerra Colonial, um assunto que ainda hoje não está resolvido, nem está pacificado, como alguns deles dizem. São pessoas com experiências e percursos de vida muito interessantes, sendo que algumas delas não são figuras públicas. Para umas coisas o caminho que se percorreu desde o 25 de Abril até agora é próximo, para outras é um bocado longínquo. Nos últimos quatro anos, temos andado pelo país com “O Limite da Dor”, muitas vezes acompanhados com os entrevistados e vamos começar a fazê-lo também com “Memórias de Exílio”.
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