“Esmeralda”, a nau afundada em Omã, era mesmo de Vasco da Gama
Universidade Nova conclui que achado de 2016 integrava a segunda armada. Identificação foi polémica
Universidade Nova conclui que achado de 2016 integrava a segunda armada. Identificação foi polémica
Jornalista
Imagine o que é retirar 1200 peças e fragmentos com mais de 500 anos do fundo do mar, analisá-los exaustivamente um a um, consultar bases de dados e artigos científicos, para descobrir de que objetos faziam parte e onde foram produzidos, em que porto foram comprados ou em que local foram pilhados. Foi precisamente isto que Tânia Casimiro, 35 anos, fez com a carga de um dos dois navios da segunda armada de Vasco da Gama para a Índia afundados ao largo das ilhas Curia Muria, junto à costa de Omã, na Península Arábica.
A arqueóloga do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa (UNL) foi convidada por David Mearns, da empresa de salvados britânica Blue Water Recoveries (BWR), a estudar aquela coleção e a acompanhar a retirada dos materiais do fundo do mar. Tudo porque a equipa de Mearns teria descoberto a carga da nau “Esmeralda”, que partiu em 1502 de Lisboa integrada numa frota de 20 navios. E quando a descoberta foi anunciada em 2016 houve quem manifestasse dúvidas, como Luís Filipe Thomaz. O maior historiador português do Oriente argumentava que vários navios portugueses se podiam ter afundado na região.
Tânia Casimiro esteve 15 dias em Omã em 2016 e acaba de publicar os resultados da sua investigação no “International Journal of Nautical Archaeology”, a mesma revista onde há dois anos David Mearns, Bruno Frohlich, antropólogo da Smithsonian Institution (EUA), e David Parham, arqueólogo da Universidade de Bournemouth (Reino Unido), publicaram um artigo sobre a descoberta.
A investigadora da UNL apresenta um estudo muito pormenorizado das cerâmicas de Portugal, Espanha, Itália, Índia, China, Sudeste Asiático, Irão e África, bem como de materiais em vidro e em metal. Baseada em toda a informação recolhida sobre a chamada cultura material encontrada no local do naufrágio, a arqueóloga afirma que “estes objetos refletem o itinerário dos navios perdidos comandados pelos irmãos Vicente e Brás Sodré em 1503”. Os barcos deixaram Lisboa em 1502 e foram carregados com vasilhas para armazenamento de água e alimentos e ainda pratos, tigelas e copos em cerâmica. A investigadora conta que nas paragens que a frota fez na costa africana, vários recipientes africanos foram também levados para bordo, provavelmente com comida.
Mas quando os navios alcançaram a Índia, “através do comércio e da pilhagem foram adquiridas quantidades significativas de produtos do Oriente, do Irão, Índia, Tailândia e China, entre outras origens, que serviram como vasilhas e como objetos com um valor intrínseco, devido ao seu exotismo”. Estes objetos “eram raros em Portugal e a obtenção de lucro estava quase sempre na mente dos capitães dos navios”.
Hoje já não está em discussão “se a costa de Omã era local de naufrágios, porque toda a gente sabe que ali se afundaram os navios ‘Esmeralda’ e ‘São Pedro’”, constata Tânia Casimiro ao Expresso, sem hesitações. Mas a investigadora é mais cautelosa em relação ao nome da nau que levava a carga que já estudou: “Não podemos saber claramente se era a ‘Esmeralda’, porque o barco foi queimado e até lhe tiraram a pregaria, segundo a carta do capitão Pero de Ataíde enviada ao rei D. Manuel I em 1504”. Ou seja, não há barco mas apenas o sítio do naufrágio.
“A minha análise teve de ser extremamente exaustiva relativamente à carga do navio, para não haver nenhuma dúvida quanto à sua datação e identificação”, conta a arqueóloga. “E, depois, cruzando a informação arqueológica com relatos históricos de barcos naufragados naquela região, faz todo o sentido ser a ‘Esmeralda’ ou a ‘São Pedro’. E o mais provável é que a carga seja mesmo da ‘Esmeralda’”, insiste. “Acredito piamente nesta hipótese”.
David Mearns adianta ao Expresso que o artigo publicado por Tânia Casimiro “é o último de uma série de publicações em revistas científicas de referência internacional, que confirmam a nossa descoberta do mais antigo navio da armada portuguesa da frota de Vasco da Gama na viagem à Índia de 1502-1503”. Mearns reconhece que “a proveniência e a idade dos materiais identificados pela investigadora da UNL estão corretas para a ‘Esmeralda’”. E as cerâmicas “são coerentes com a rota conhecida, as localizações da atividade comercial e os atos de pirataria conduzidos pelos navios comandados por Vicente Sodré”.
Por outro lado, “o estudo de Tânia Casimiro e a revelação recente de que um disco de bronze recolhido do local no naufrágio é um astrolábio de marinheiro extremamente raro, gravado com o brasão português e a esfera armilar do rei D. Manuel I, põem em causa as posições de um punhado de céticos e críticos, que se recusam a aceitar esta importante descoberta ou os objetivos científicos do nosso projeto”, sublinha David Mearns.
A identificação do astrolábio, “que tem caraterísticas únicas e é o mais antigo a ser descoberto e estudado”, foi feita por Filipe Vieira de Castro, do Departamento de Antropologia da Universidade do Texas A&M (EUA). “É um achado fabuloso”, diz o cientista ao Expresso. “Ainda não estou completamente convencido de que seja a ‘Esmeralda’, mas deve ser, embora os mapas do sítio do naufrágio desenhados pela equipa de Mearns sejam maus e não tenha havido uma metodologia para as escavações, nem uma descrição geológica e morfológica”. Mas é “um dos primeiros navios de guerra portugueses, uma história fantástica muito mal contada por Pero de Ataíde, que odiava os irmãos Sodré e escreveu a versão dos acontecimentos que lhe apeteceu”.
“No futuro próximo”, acredita David Mearns, “vamos estar a publicar mais artigos científicos sobre o significado arqueológico deste navio, que está a ser descrito pelos especialistas como um dos mais importantes até hoje encontrados”. Tânia Casimiro acrescenta que “estamos provavelmente perante a primeira evidência física, material e arqueológica da presença dos portugueses no Oriente e os objetos encontrados, produzidos na Europa, África e China, são algumas das primeiras provas do comércio global” iniciado com as Descobertas. “Sabemos que ocorreram naufrágios anteriores a 1503, mas até agora nada foi encontrado no fundo do mar”.
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