5 novembro 2017 11:00
António Damásio
luís barra
A obra de António Damásio é uma viagem pelos territórios desconhecidos e conhecidos da mente humana. Não se restringe aos livros publicados e decorre de anos de investigação em parceria com a mulher, a cientista Hanna Damásio. O seu último livro, “A Estranha Ordem das Coisas”, é apresentado na próxima semana em Portugal
5 novembro 2017 11:00
O livro é indigesto, ninguém vai perceber uma palavra. Mas como o senhor professor é uma estrela, vou vender seis mil exemplares”, disse-lhe o primeiro editor português de “O Erro de Descartes”. Vendeu, no primeiro ano, cem mil.
“Nunca escrevi um livro para ser popular. O livro tornou-se popular. E os livros seguintes correram bem, incluindo aquele onde digo que, ao contrário de Descartes, Espinosa tinha razão”.
Ficará certamente conhecido por ter trazido os sentimentos, ou as emoções, e os nomes não coincidem, para a ordem primeira da ação humana. “O Erro de Descartes” tornou-se um best-seller mundial por ter invertido na vulgata a ideia da supremacia (cartesiana) do intelecto sobre a emoção, fundamento de tantos equívocos e discriminações culturais e outros adquiridos, como a inferioridade do género feminino instintivo e emocional sobre o género masculino racional e ponderado. A obra de António Damásio, que não se restringe aos livros publicados e tem por trás muitos anos de investigação em parceria com a mulher, a cientista Hanna Damásio, e equipas de cientistas e assistentes, poderia ser resumida como uma longuíssima perambulação pelos territórios desconhecidos e conhecidos da mente humana, que incluem os vastos mistérios e decisões. Uma vez, disse-me António Damásio que a complexidade do cérebro humano faz a complexidade do cosmos, e as suas múltiplas interrogações físicas e metafísicas parecerem pequenos problemas. Na USC, University of Southern California, o Dornsife Brain and Creativity Institute foi criado exclusivamente para servir a investigação do casal, dotando-o de tudo o que ambos necessitavam e mais ainda. O senhor Dornsife, um multimilionário generoso e um mecenas em sentido clássico, parece nem ter pestanejado quando Hanna indicou a necessidade de vários scans para prosseguir a sua investigação, sabendo-se que cada uma destas máquinas prodigiosas que espreitam para dentro de nós, do nosso cosmos interior, custam vários milhões de dólares. “18 PET scans!”, maravilhava-se Hanna, na altura, e nem uma objeção do capital. Hoje deverão ser mais, porque o trabalho do Instituto tem vindo a alargar o espectro de atuação e de investigação, estendendo-se a interrogações de ordem cultural e social e estabelecendo uma arqueologia e uma geologia do que nos torna não apenas humanos mas atores diferenciados dos outros animais e organismos vivos em áreas como a arte ou o simples comportamento criativo. O génio humano.
“Vemos os nossos esforços atuais do mesmo modo que as outras ciências sociais o fazem, não como um substituto. Trazemos as ferramentas biológicas para a compreensão do que acontece no espaço social — governança, comunicação, o tecido social dos grupos, o fabrico de narrativas e o jogo teatral da imaginação. O estudo dos efeitos da música no cérebro das crianças e no seu comportamento é importante, tal como o sentimento, a consciência, e a interação desta nova biologia com os campos da inteligência artificial e da robótica.”
Título de um artigo publicado no jornal “Human Brain Mapping”, por exemplo? “Descodificando a representação neural dos significados de história através das linguagens.” Não, não é simples, e a vida dos dois cientistas não é simples. Implica muito trabalho, diário, ininterrupto, incansável, e implica a felicidade da descoberta pessoal ou da conjunção das equipas que esse trabalho dá. Implica uma vida social rica em amizades fora da área científica, com escritores como Jorie Graham, ou músicos como Yo-Yo Ma, Daniel Barenboim ou Maria João Pires, ou gente do teatro e do cinema, como Peter Brook. Fazendo parte deste círculo de amizades, sou testemunha de, pelo menos, um facto que tenho como científico. Os Damásios nunca descansam. Nunca tiram férias. Quero eu dizer com isto que nunca param de pensar. De questionar. De ensinar e aprender. São dois cérebros abertos e curiosos, na conquista do conhecimento aliado ao prazer do conhecimento e ao gosto das artes. São os dois ávidos espectadores de cinema, leitores de ensaio, ficção e poesia, melómanos. Foram sempre. Hanna é uma escultora que podia ter tido uma carreira e António um bom praticante, apreciador e colecionador de fotografia. E arte. A ciência que praticam seguiu a ordem natural das coisas, o amor antigo às coisas ditas da cultura que é mais do que isso, é uma insatisfeita perseguição do mistério da beleza e de uma ordem ética e estética.
O novo livro, “A Estranha Ordem das Coisas”, segue-se a “O Livro da Consciência”, de 2010. Repararão no hiato de sete anos entre um livro e outro, pouco habitual no autor. Esta “Estranha Ordem...” deu muito trabalho e precisou de muito tempo para sedimentar. A ambição da explicação aumentou exponencialmente e estamos já distantes de “O Erro de Descartes”, ou mesmo de “Ao Encontro de Espinosa” ou de “O Sentimento de Si”, três dos meus favoritos. Entramos agora no espaço sideral que vai da origem da vida, e da homeostasia, à “versão algorítmica da humanidade”. Os novíssimos campos da robótica e da IA ou as tentações da imortalidade como um objetivo realizável merecem da parte de António e Hanna Damásio uma atenção científica que contradiz as utopias ou distopias, dependendo do ponto de vista, dos dólares e megalomanias dos techies de Silicon Valley. É, pelo menos para mim, infinitamente interessante e compensador verificar que a fantasia humana de fazer de Deus tem os seus limites biológicos. Já lá iremos.
Cada livro é uma consequência dos anteriores, existe uma teleologia.
“Este livro é novo em muitos aspetos mas tem o ADN da família a que pertence. O centro do livro está nos afetos. A inteira realidade dos sentimentos e a ciência dos sentimentos e do que está por baixo dos sentimentos. O sentimento é a personagem central. É também central uma coisa que me preocupa muito, o presente estado da cultura humana. Que é terrível. Temos o sentimento de que não está apenas a desmoronar-se, como está a desmoronar-se outra vez e de que devemos perder as esperanças visto que da última vez que tivemos tragédias globais nada aprendemos. O mínimo que podemos concluir é que fomos demasiado complacentes, e acreditámos, especialmente depois da Segunda Guerra Mundial, que haveria um caminho certo, uma tendência para o desenvolvimento humano a par da prosperidade. Durante um tempo, acreditámos que assim era e havia sinais disso”.
Em 1989, por exemplo, com a queda do Muro de Berlim? “Sim, sem dúvida, embora o bom senso nos obrigasse a pensar que depois da Segunda Guerra Mundial tivemos a Guerra da Coreia e a Guerra do Vietname. Mas 89 foi um tempo de otimismo”.
António Damásio é americano, um português transportado para solo americano, e viver na Califórnia dá-lhe uma espécie de lugar na primeira fila para o espetáculo do mundo. Diferente do que tinha em Iowa, onde viveu anos e onde trabalhou na Universidade de Iowa. Mais perto dos protagonistas das grandes transformações, e trans-des-humanizações, das últimas décadas.
“Do lugar onde estamos podemos ver não apenas com muita clareza, como podemos acompanhar de perto o modo como as coisas deixam de correr bem para passarem a correr muito mal. A Califórnia é, de certo modo, um país. São 40 milhões de pessoas, uma das maiores economias do globo, poderia separar-se dos Estados Unidos e continuaria a ser um país importante. E tem uma tradição de bom governo, ou governança. É liberal. Tem uma população rica e altamente educada. Tem uma capital avançada e progressista, Los Angeles. Tem as melhores universidades, as melhores tecnologias, e as melhores propriedades agrárias, onde se cultiva de tudo e se pode fazer tudo bem, como vinho. Onde existe Hollywood. E onde existe Silicon Valley, para o melhor e para o pior. Voltando ao livro, nele está uma ideia que sempre me interessou, os estados da consciência social. O problema da consciência e a resposta à pergunta, porque é que os seres humanos, entre todas as criaturas, incluindo criaturas com sistemas nervosos semelhantes, ou com inteligência, foram os criadores desse espetáculo extraordinário que é a arte ou a religião? Utilizo a palavra cultura no seu sentido mais lato, mais amplo. As artes e sistemas sociais e morais, governança, justiça, economia… tudo o que foi criado pelos seres humanos e nos distingue de todas as outras espécies. Nas outras espécies nada existe que se pareça com a criação da escrita ou da religião. O modo de responder a isto é fazer a pergunta e segui-la pela pergunta lógica seguinte e ver o modo típico como a pergunta é respondida. Os humanos não têm apenas a inteligência, têm, por exemplo, a linguagem. E temos uma socialidade muito mais complexa do que a de outras criaturas. E os impulsos criativos. E analisando estas respostas, vemos a ideia. A ideia forte é a de que tudo o que há de bom e de bem, tudo o que ajudou instrumentalmente a criar culturas, nunca teria acontecido se não tivéssemos sentimentos. Sentimentos ora de dor e sofrimento ora de plenitude e prazer.”
E são sentimentos iguais a emoções?
“Não, sentimentos são experiências de emoções. E as emoções são movimentos, motions. Emoções são o movimento-base. Se eu atacar a bactéria, a bactéria reage da mesma maneira, move-se. Defende-se. Os sentimentos só podem ser conquistados por criaturas que já possuem uma mente e só se pode ter uma mente se se tiver um sistema nervoso. A emoção e a cooperação podem conflituar. As emoções começaram aproximadamente há 3,9 mil milhões de anos. Sentimentos, mentes e sistemas começaram aproximadamente há 100 milhões de anos. Com criaturas que viveram nesta terra as suas vidas complexas, capazes de sociabilidade, de estabelecerem conexões, de criarem alianças ou traições. Apesar de as raízes serem as mesmas, organismos unicelulares não foram capazes de criar culturas porque lhes faltava a parte do sentimento, a capacidade de criarem uma experiência. Estavam vivos mas sem a possibilidade de conhecerem Heidegger, se quiserem. A razão para o título, “A Estranha Ordem das Coisas”, está neste facto: embora só os humanos tenham culturas assim, todos os seres vivos têm estratégias que prenunciam as culturas, que as insinuam. A ironia está em percebermos que temos culturas que assentam em qualquer coisa de misterioso e que esse mistério é na verdade o sentimento. O sentimento é a representação do imperativo homeoestático.”
E onde se inscreve aqui a palavra consciência?
“Sentimentos e consciência têm a mesma raiz, é quase paradoxal, porque não podemos ter consciência sem sentimentos e não podemos ter sentimentos sem consciência”.
E qual dos dois vem primeiro?
“Esse é o tema do meu próximo livro! E esse livro vou escrevê-lo num ano! O ponto crítico é este, em passar do lugar onde nos encontramos agora culturalmente para o sentimento, sendo o sentimento o delegado da homeoestasia. Os sentimentos fundamentais são dor, sofrimento, bem-estar, mal-estar, doença, e por aí fora... o sentimento é uma expressão do estado em que o organismo se encontra. Diz-nos se esse estado é válido ou não. A expressão de uma emoção diz-nos se o nosso organismo está a funcionar bem ou não. Quando não está a funcionar bem, sofremos. Quando está a funcionar bem, sentimo-nos bem. Se alguém nos trair, por exemplo, a nossa mente induz um estado que causa sofrimento. O que os franceses chamam douleur morale.”
E em que se distingue essa dor da dor física? Se alguém me agride e causa dor, sofro simultaneamente a dor física e a dor moral da agressão, da violência. Se me insultarem chamando-me um feio nome ou se me esfaquearem como distinguir uma dor da outra? E os caminhos neuronais são os mesmos? O que se passa no cérebro nesse momento?
“As raízes da dor física e da dor moral são exatamente as mesmas. E dentro do cérebro, o ponto onde tudo isso termina é o mesmo. Com avenidas de aproximação diferentes. O caminho é diferente mas a certo ponto convergem no mesmo lugar.”
E isso vê-se? Realmente pode ser observado? Nos scanners? E vê-se o ponto terminal? Ou infere-se?
“Sim, realmente vê-se. Nos scanners. E a fisiologia é a mesma. O ponto terminal é por inferência e pelas sucessivas camadas de complexidade atravessadas, os vários sistemas, os cognitivos, os sistemas de larga escala, etc., e tudo isso pode ser estudado por técnicas diferentes. O problema está em construir a história de tudo isso, em montar a história, porque a pessoa que estuda os sistemas não é a mesma que estuda as células. A ideia é integrar conhecimento que vem da filosofia, das ciências cognitivas, da psicologia… somos várias vezes multidisciplinares e esse é o método a diferentes níveis”.
Sendo António e Hanna médicos, a tentação é pensar que trabalham com médicos, mas a aproximação é muito mais vasta.
“Os médicos existem, a começar por nós, mas trabalhamos com cientistas de muitas áreas e não apenas cientistas. Se queres saber sobre a dor tens certos fatores que determinam a sequência. Tens sentimentos que são delegados da homeoestasia, a regulação da vida, depois tens a regulação da vida, que mantém a vida num sistema bioquímico. Tenho um belo capítulo no livro a que chamo ‘Numa Região como Nenhuma Outra’. ‘A Region of Unlikeness’. A tradução é difícil em português.”
Resumindo, não apenas os sentimentos são importantes, mais do que o famoso intelecto, ou razão, como são fundamentais para compreender a vida inteligente e criativa da condição humana.
“Tens de ver os sentimentos como sendo os motivadores de tudo o que construímos culturalmente. Uma das coisas contra as quais nos erguemos é a da construção do puro intelecto como força e poder computacional. Algoritmos. Não é verdade. Parte da ciência e, definitivamente, a tecnologia, estão a seguir esse caminho.”
Um mundo robótico “Westworld”, como na série HBO. Hanna diz que é “totalmente ridículo” pensar nisso. “Não podemos criar sentimentos nos robôs. É impossível. Estamos absolutamente certos disso. É impossível. Porque os sentimentos, tal como acontece com todos os aspetos da mente, são gerados por um arranjo cooperativo e interativo entre os sistemas nervosos e o corpo em geral. E porque os sistemas nervosos não são as joias da coroa da natureza, é o corpo. É a vida. Os sistemas nervosos são servos. São sempre subservientes. No processo de se tornarem muito bons administradores dos sistemas da vida, os sistemas nervosos podem desenvolver mentes que são capazes de fazer montes de coisas que nos distraem e que acabam por atestar isso mesmo, que os sistemas nervosos são servos do corpo”.
E o corpo o que é? “É tudo o que no teu organismo é vida. Imagina que podias extrair um sistema nervoso, o cérebro, e os sistemas nervosos, e retirá-los do corpo. Impossível”. E não poderá um dia ser feito, ligando um cérebro humano a um robô? Silicon Valley acha que sim.
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“Silicon Valley tem esse problema de pensamento, pensa o corpo em função da ciência computacional. Sem o corpo orgânico não pode ser feito. O que as pessoas não compreendem é a razão pela qual temos sistemas nervosos. Durante milhares de milhões de anos, organismos existiram na terra. Organismos simples, como as bactérias, e complexos, com múltiplas células. Existiram durante muito tempo, muito bem, com belas estratégias para resolverem os seus problemas. Para cooperarem, detetarem batoteiros, matarem os inimigos, sem terem um sistema nervoso. E tendo memória, sensibilidade, tendo respostas. Tudo isso é despoletado por tecidos orgânicos. Isto precede os sistemas nervosos em milhares de milhões de anos. Milhares de milhões, não milhões. Num determinado ponto da evolução, os organismos ficaram tão complexos, com tantas células múltiplas, que de modo a manterem a vida num organismo complexo precisavam de ter o que chamo sistemas globais como o sistema endócrino, o sistema circulatório ou o sistema imunitário. E o sistema nervoso, a coroa. O sistema endócrino entrega e distribui químicos por todas as partes do corpo, por difusão nos estádios iniciais. Um químico ia por difusão de uma célula para outra. Isto será bom se tiveres dez células, se tiveres um milhão não funciona bem. O sistema imunitário funciona da mesma maneira para defender o corpo dos bárbaros como as bactérias e os vírus e por aí fora. Funciona com base em químicos. Depois, tens o sistema circulatório, que a natureza engendrou para criar uma espécie de sistema fluvial e assim criou vasos sanguíneos, capilares, vasos linfáticos, etc., que andam pelo corpo todo a entregar coisas, como oxigénio e nutrientes, recolhendo ao mesmo tempo o lixo. O que digo no livro é que o sistema circulatório é o Amazonas inventado pela natureza, combinado com o sistema de recolha de lixo. Por fim, os organismos ficaram tão complexos que foi preciso inventar sistemas nervosos para coordenar as operações. Quando chegámos à hidra, já tínhamos um grande problema. A hidra é um bom exemplo de um organismo complexo com estes sistemas sem maneira de os coordenar. Apareceram os primeiros tapetes nervosos, nervos simples que ajudavam o organismo e o animal a contrair e criaram, com efeito, o primeiro exemplo de um sistema digestivo. Digo no livro que a hidra é como um sistema digestivo flutuante. Não havia cérebro, nem mente nem atividade neural, apenas uma grande cavidade onde a água podia entrar, absorver os nutrientes e expelir o dejeto, e onde um sistema nervoso comandava a atividade.
Isto é, afinal, biologia?
“É biologia e neurociência. Ou neurobiologia. Deixei de me chamar um neurocientista. Sou um biologista interessado na mente e no cérebro. Sou o oposto.”
Aqui está uma novidade. Nunca tinha ouvido António Damásio dizer isto. “Isto faz parte das muitas coisas que mudaram com este livro. O primado da biologia. E o livro começa com a bactéria e com o que a bactéria faz e que nós também fazemos mas de modo diferente”. E os vírus também? “Não, os vírus são diferentes, estão mais próximos dos ácidos nucleicos. Não são uma verdadeira célula, não são autónomos. O vírus depende de ti, depende de outras células vivas para sobreviver. As bactérias são organismos completos, só lhe falta uma mente. Porque não têm cérebro”.
Será que não têm uma mente apesar de serem unicelulares? Sendo tão inteligentes.
“Exato, algumas pessoas dão esse salto em frente e dizem, quem sabe? São demasiado espertas para não terem mente. Mas posso dizer que não têm, embora possamos dizer que não sabemos. Mas não têm. Não têm. E no livro explico as razões pelas quais não têm. Não precisam de uma mente para fazer o que fazem. E para ter uma mente é preciso a capacidade de fabricar imagens, esta é a parte intermédia do livro, e as bactérias não têm essa capacidade.”
Isto já estava em “O Sentimento de Si” ou em “O Livro da Consciência”, a capacidade imagética da mente. “Há muitas coisas neste livro que descendem do trabalho anterior e outras que são inteiramente novas. Precisas de ter imagens dos sons, do tato, da visão, de tudo”.
São, portanto, incapazes de construir uma narrativa.
“Mais do que isso, são incapazes de construir uma imagem porque não têm um sistema nervoso para isso. Só podes ter numa imagem de mim se tiveres um sistema nervoso que possa fazer um mapa de mim e apanhar a minha configuração. Isto é uma coisa que podemos ver no cérebro, não apenas dos humanos mas de outros animais. Até nos ratos. Os ratos têm hipocampo, a capacidade de fazer imagens. E não são só os mamíferos. Existe em certos invertebrados, ou insetos sociais, que têm cérebros, mentes, imagens e até um bocadinho de cultura. Vê as abelhas. Ou os lagartos, que são muito espertos. Bichos encantadores. Mas a hidra não pode fabricar imagens. Não passa de um estômago flutuante. No livro, faço um gracejo, o primeiro cérebro não foi tanto o chamado cérebro límbico, o primeiro cérebro foi no intestino.”
As abelhas têm a capacidade de mapear, que as orienta, e de fabricar imagens, e uma certa cultura. E memória.
“As bactérias têm memória. Os insetos sociais, abelhas ou formigas, têm uma cultura, conseguem construir colónias que exigem uma arquitetura com sistemas de ventilação e transporte, de limpeza, salas próprias para a rainha, têm uma organização social em castas com distribuição de tarefas, como ir buscar comida e trazê-la para a colmeia ou o ninho, podem reconhecer a importância da rainha, podem mudar a colónia se sobrevier um problema com a sua estrutura física, enviando batedores, e por sistemas de comunicação através das asas podem descrever a outras abelhas o sítio para onde devem mudar-se. A seguir, mandam vir uma companhia de carregadores e mudam-se todas ao mesmo tempo. Isto é organização social e cultural e não no aspeto mais simples. Escusamos de ter peneiras humanas, não somos os únicos a ter uma cultura.”
Mas ninguém dentro da colmeia pensa em matar a rainha e substituí-la, ou revoltar-se contra a organização. Não há um Lenine na colmeia. Nem um Marx. Não há revolucionários.
“Exatamente! É esse o ponto. Onde é que esses insetos aprenderam essas rotinas? Não foram para um caro colégio privado. Tudo aquilo foi transmitido através dos genes. Os genes criaram as estruturas nos sistemas nervosos nos cérebros que as autorizam a fazer isto. É muito belo, muito complexo e tem o arquétipo das culturas. O que lhes falta? As abelhas não se interrogam sobre a mortalidade, sobre a doença, não têm preocupações metafísicas. E não fazem nada que não lhes seja transmitido pelos genes. Toda a vida delas, incluindo a cultural, está programada. O que é diferente em nós é que temos uma consciência mais desenvolvida e temos uma capacidade de intelecto e de afeto mais desenvolvida, passando a ter a possibilidade de fazer interrogações. E de prestar atenção a um problema. De diagnosticar e resolver um problema. Um exemplo que dou logo ao princípio, no capítulo ‘Inícios’, a medicina é o arquétipo do desenvolvimento cultural. Claro que nenhum animal até aos humanos tem medicina. É um desenvolvimento humano, uma mistura de tecnologia e ciência, e existe porque há pessoas que estão doentes e quando estão doentes têm um sentimento de doença. Dores, uma queixa. Os primeiros doentes eram assim, como são agora, e os primeiros médicos foram pessoas que tiveram compaixão pelo doente. E empatia. E procuraram resolver o problema. Este é para mim o modelo do desenvolvimento cultural. Acontece o mesmo com as artes, com a música, com a religião. Donde vieram os Dez Mandamentos? Do mesmo lugar. Donde vieram as religiões que se desenvolvem nos 500 anos antes de Cristo? Todas as religiões monoteístas. E antes disso com o confucionismo na mesma época. Ou o budismo. Essas religiões desenvolveram-se a partir do confronto com o sofrimento humano. E da necessidade de reduzir esse sofrimento criando regras e leis de comportamento em sociedade. Quando Moisés vem da montanha, com os Dez Mandamentos, não foi Deus Nosso Senhor que lhos deu, nasceram da necessidade de obter uma coleção de regras de vida para o grupo, como não matar, não atraiçoar, etc.”
Onde se instala a diferenciação dos monoteísmos das outras religiões? Outras religiões, incluindo as animistas, faziam sacrifícios humanos e não possuíam grande compaixão ou empatia. Os deuses gregos ou maias eram cruéis e caprichosamente exigentes. Os judeus e os cristãos inventaram um deus novo.
“Todas as religiões nascem dos mesmos problemas, principalmente o sofrimento e a morte. Quando vamos às grutas de Lascaux, encontramos flautas com cinco orifícios. É evidente que aquelas pessoas faziam música. E faziam-na para quê? Porque a música podia ser usada ou como consolo para alguém que sofria ou como instrumento de sedução. Ou estás em situação de sofrimento e dor ou em situação de desejo. É o corpo, ou em equilíbrio homeoestático ou em desequilíbrio, dor e sofrimento, ou em equilíbrio, desejo e alegria.”
O corpo tende para o seu bem-estar. E como deriva isto para os outros sistemas sociais?
“Deriva, por exemplo, para a economia, para o lucro, que é uma manifestação intelectual e social do desejo de ter dinheiro. Que é uma maneira de ter poder. E assim comprar o bem-estar. O que eu quero com o livro, e esta é a ideia principal, é que as pessoas parem de dizer que as culturas são criadas por intelecto. São criadas por intelecto mas graças à motivação que lhes é dada pela vida dos sentimentos. Poderia dizer-se que isto é tão lógico que seria estúpido contra-argumentar. Mas há aqui uma originalidade na vida dos sentimentos, foram eles que serviram de monitores e determinaram se uma invenção cultural funciona ou não. Vou outra vez ao exemplo da medicina. Tens uma dor e o médico dá-te um medicamento para a dor. Como é que o médico e tu sabem se a intervenção funcionou? Através de um sentimento, o de não ter dor. Ou seja, bem-estar. Não é só a motivação, é a motivação e o controlo da execução. E existe ainda a constante negociação que os afetos introduzem em qualquer atividade social”.
Parceiros. A exuberância de António é completada, sem nunca ser contrariada, pela tranquilidade silenciosa da mulher, Hanna, que foge das atenções e tem horror a luzes e multidões
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Afetos são sentimentos? “Afetos é o nome geral. Tens afetos, vida afetiva, e dentro dos afetos tens objetivos, motivações, impulsos, emoções, enfim... os sentimentos são a experiência mental de tudo o que se passa nos afetos. A dor é um sentimento e é a expressão mental de um estado do corpo num determinado momento. O bem-estar também. Significa que o corpo está a funcionar homeoestaticamente. Os sentimentos traduzem dentro da mente o que estamos a viver.”
António Damásio foi convidado a ir a Dharamsala ter com o Dalai Lama, com outros neurocientistas. As neurociências monitorizaram a mente budista em meditação. Como se explica, a esta luz, o controlo da dor pelos mestres tibetanos?
“A mente não controla a dor, a mente desvia a dor, desvia o sítio da dor. No budismo, a mente cria uma concentração muito grande e cria uma técnica que permite não prestar atenção ao que se está a passar na mente. O Buda é um enorme aliado meu. Aquilo que o Buda diz, o príncipe Siddhartha Gautama, é que não existe dúvida sobre o facto de a vida ser sofrimento e que não existe solução para esse sofrimento. O melhor que temos a fazer é desviar a atenção. Se conseguires concentrar-te ao ponto de criar uma insulação não sofres com o grande sofrimento mas tão pouco tens o grande prazer. Buda percebeu muito bem o problema. O “NY Times” pediu-me para fazer uma recensão a um livro que saiu com grande êxito chamado “Why Buddhism is True”. Um best-seller. De um jornalista budista, Robert Wright. Primeiro resisti e depois acedi, e acedi porque quis usar um exemplo. Não gostei do livro, fui respeitosamente crítico, de modo simpático. Claro que há coisas, no livro e no budismo, que aprecio.”
Como é possível, simplesmente, desviar a atenção? Se um filho, ou uma pessoa de que gosto, ou eu mesma, tiver uma doença terminal, estiver em sofrimento, como vou desviar a atenção disto concentrando-me? Do ponto de vista do corpo, e não do Buda, como é isto possível? Isto implica uma transformação biológica?
“Absolutamente. Aí é que as coisas se tornam interessantes, porque a mente é um aspeto do corpo. E voltamos ao Espinosa. Os seres humanos, e não só humanos, têm uma mente mas são seres orgânicos. Tento explicar isto aos budistas mas eles não percebem. É deixá-los estar. Temos três budistas no nosso grupo, e um deles disse que este era o livro mais importante que tinha lido. Como vês, os budistas gostam de mim. A mente atua noutros aspetos do sistema nervoso e do corpo através de vias nervosas e através de química. Quando te cortas num dedo, o que acontece é que através do sistema nervoso vão viajar células imunitárias chamadas para te defender de infeções para o caso de não teres antibióticos. E, ao mesmo tempo, há uma descarga de opiáceos que vão apaziguar a dor para o caso de não teres ninguém que te trate. Quando acontece uma coisa na mente há uma expressão automática do sistema nervoso que se repercute no sistema não nervoso. Tudo está em continuidade e é por isso que não vai ser possível aos senhores de Silicon Valley pegarem em silicone, plástico e aço e fabricar qualquer coisa que pareça ter vida verdadeira e que possa ter sentimentos. Porque os sentimentos se desenvolveram como parte do sistema de defesa do organismo contra a perda homeoestática. Temos sentimentos porque são úteis e necessários para que a vida continue. E os tipos de Silicon Valley não percebem a origem evolucionária. Estão a fazer tudo de cima para baixo e não vão encontrar nada que tenha que ver com criaturas humanas. Podem fazer robôs magníficos e não há dúvida de que os robôs vão ser mais inteligentes do que os seres humanos. Vão ter mais capacidade de memória e raciocínio superior. Como se viu com o Garry Kasparov. A capacidade intelectual vai estar lá toda e vai ser muito grande, a capacidade de sentimento e de experiência consciente não vai estar. Não perceberam. Vão ter um despertar doloroso quando isso acontecer. E vai ser uma luta tremenda.”
E isso impedirá os robôs de nos submeterem e escravizarem?
“Não, esse é o grande perigo. Os robôs por si não vão poder fazer nada contra nós. Mas vão poder ser programados por pessoas como o Vladimir Putin ou o pateta da Coreia do Norte para fazer as coisas mais horríveis. E isso vai acontecer.”
Quando os Damásios começaram a investigar nas neurociências, era impossível pensar que em dez ou vinte anos estaríamos a discutir a probabilidade de a robótica e a IA poderem tornar-se supremas e destronar o cérebro humano.
“Era completamente impossível. Mas tudo o que se passa com a IA tem duas raízes. Uma é Alan Turing e outra um grupo de pessoas no MIT que se convenceram de que seria possível fabricar inteligência humana com inteligência artificial. Nos anos 40. E esse projeto falhou redondamente tendo sempre parecido que não ia falhar porque todo o desenvolvimento tem sido positivo em matéria de sucesso da IA. O sucesso dos robôs e o dinheiro gerado, porque tudo isto tem gerado fortunas incalculáveis. É extraordinariamente difícil a essas pessoas aceitarem que o projeto está fundamentalmente errado. Fazer com que criaturas tenham comportamentos é uma coisa, fazer com que criaturas tenham sentimentos é outra. É tão impossível nos robôs como é impossível nas bactérias. Apesar de podermos fazer com que as bactérias tenham emoções. Falta-lhes a maquinaria necessária!”
Hanna interrompe para dizer que podem ter a maquinaria mas não têm a substância. A humana substância. É por isto que António diz que ouviu falar do sucesso de “Westworld” mas não quer ver a série. Acha tudo o que está por trás do argumento horrível. Hanna diz que mesmo que assinalemos sentimentos aos robôs, e chamemos a programações sentimentos, não são sentimentos. O que nos consola na vitória de “Deep Blue” sobre Kasparov é que “Deep Blue” nunca sentirá a euforia da vitória. A alegria de vencer o desafio. E sem a alegria o exercício é inútil.
“Se não tiveres uma vida, não tens a alegria de estar viva.”
E onde pode entrar aqui o argumento de sermos diferentes porque somos criados por desígnio de uma inteligência superior? Se não lhe quisermos chamar Deus. O argumento não fica invalidado. A gente de Silicon Valley é muito mais perigosa do que os religiosos, porque lhes falta o argumento humano, e porque têm uma fé inabalável não em Deus, um desconhecido sem existência provada, mas na máquina. E assim se acham os donos da razão. Uma nova espécie de fanatismo científico e tecnológico.
“Podes usar esse argumento, ir contra a evolução, mas felizmente não sou religioso. Concordo absolutamente que argumentar contra Silicon Valley é muito mais difícil do que argumentar com a religião. São fanáticos. São fanáticos poderosos que querem comprar a imortalidade.”
António Damásio conhece bem o lunático contratado pela Google a peso de ouro que toma dezenas de pílulas por dia para nunca morrer. Ray Kurzweil. O profeta da dieta imortal. “O tipo é aterrador, profundamente aterrador. Medonho. E ganha muito com estas teorias absurdas. Sabes o que ele fez ao pai, quando morreu? Criogenia. Para o poder reviver.”
Porque resistimos tanto à morte? À extinção? Porque nos empenhamos tanto em sobreviver? Porque não nos deixamos morrer naturalmente? Até as bactérias resistem à morte. Até as plantas resistem à morte quando as cortamos. As árvores decepadas continuam a brotar.
“Acabas de dar a resposta à pergunta. A própria vida quer perpetuidade. É assim que a vida funciona. Os organismos unicelulares começaram em continuidade há 3,9 mil milhões de anos, ao dividirem-se. Depois, num determinado ponto, os poder combinatório dos ácidos nucleicos e a capacidade de cópia permitiu a construção dos genes. Assim que vieram os genes, as células começaram a construir a geração seguinte. E a geração seguinte é a manutenção da vida. A perpetuidade. A ideia da eternidade está implícita na vida. A homeoestasia não é uma tentativa de equilíbrio. O equilíbrio, termodinamicamente, é a morte. A homeoestasia é a escolha automática que a célula faz do estado estável que é mais conveniente para o momento e para continuar a ficar com energia para o seguimento da vida. Não é estabilidade, pelo contrário, é uma instabilidade. O steady state que é escolhido é o estado que vai ser possível à célula ter a energia suficiente para manter o seu interior e ter um surplus de energia. Um extra que vai ser utilizado se a célula entrar em stresse. O que os nossos pais nos costumavam dizer, não seja tão magro porque se for magro tem uma doença e morre. É preciso o surplus. E tudo isso existia há praticamente quatro mil milhões de anos. E tem continuado. A ideia de continuidade, de imortalidade, não é estúpida, é uma ideia não razoável no mundo que conhecemos. Ora esta gente que tem de si uma ideia grandiosa, verdadeiros deuses tecnológicos, querem conquistar a imortalidade.”
E nesses mil milhões de anos não subsiste um exemplo de qualquer coisa que se tenha mantido estática. Tudo acusa a degradação. Tudo morre.
“Os donos da Google são algumas das pessoas mais ricas do mundo e estão convencidas de que vão contrariar isso porque são de uma ambição desmedida que raia a loucura. Silicon Valley começa em San Diego e acaba em Seattle. Larry Ellison, Jeff Zuckerberg, Elon Musk, e os outros, acreditam nestas fantasias.”
Ou nas teorias do transumanismo, da singularidade, ou do estudo académico da proteção jurídica e moral dos robôs. A Califórnia sempre atraiu os pioneiros e os charlatães. E não será o Musk o único que chama a atenção para os perigos da tecnologia e da IA?
“Sim, mas é louco. Essa gente é que tem, verdadeiramente, o que eu chamo uma inteligência artificial. Uma inteligência de intelecto com pouco sentimento.”
Uma acusação que não pode ser dirigida aos Damásios. Todas as decisões que tomaram, incluindo a decisão de sair de Portugal e abandonar a investigação e a vida académica em Portugal, tomaram-nas pesando conscientemente a sua vida e o que dela queriam retirar. “Foi a melhor decisão que tomámos”. Hoje, estão no ponto ótimo e têm, de facto, uma vida ideal. O Dornsife Brain Institute é o sonho de qualquer cientista, com a sua arquitetura orgânica, o bom gosto, a aliança entre o equipamento científico e a preocupação cultural. O auditório foi pensado e construído por um dos peritos mundiais em acústica e acolhe concertos e amigos músicos como Barenboim e Yo-Yo Ma, com quem colaboram. Barenboim estará presente no lançamento de “A Estranha Ordem das Coisas” em Berlim, uns dias a seguir ao de Lisboa. A vida pessoal do casal, que mantêm longe dos holofotes, é enriquecida por viagens e um consumo desmesurado de cultura. Foi na rua de acesso ao Musée d’Orsay que nos conhecemos, há muitos anos. Sabendo uns dos outros, nunca nos tínhamos visto, apesar de António e Hanna terem acabado de ganhar o Prémio Pessoa. Eu caminhava pela Rue Solférino quando os vejo sair de um café de esquina ao meu encontro. Eles vinham do museu e eu ia para o museu. Foi o princípio de uma bela amizade. A exuberância de António é completada, sem nunca ser contrariada, pela tranquilidade silenciosa de Hanna, que foge das atenções e tem horror a luzes e multidões. A página da Wikipédia dela em português foi escrita por um brasileiro e está errada e desatualizada. A página em inglês tem as informações corretas. Não que isso lhe importe, não quer ficar na fotografia. Na casa, um retrato de Hanna quando jovem, fotografia feita pelo marido, mostra uma mulher bonita com uma determinação de aço que se reflete na voz pausada e no olhar. A vida secreta deve permanecer secreta mas os dois tomaram a decisão de não terem filhos. Ou teriam filhos ou teriam a carreira académica que queriam. E sabiam, conscientemente, que não poderiam ser os cientistas que são e serem bons pais. Não é assunto de que falemos. É, como a decisão de deixar Portugal, um assunto arrumado. Hanna diz que não sacrificaram nada, porque a vida que têm é muito melhor do que a que acham que poderiam ter tido. “No fim, tomámos a decisão certa.” Pouca gente pode dizer o mesmo.
Na ditosa pátria, o campo de possibilidades estava afunilado. Apesar de manterem a ligação ao país e de lerem o que nele se passa, sabem que este pode ser ingrato e inimigo do perfeccionismo e do sucesso. Do mesmo modo, abandonaram Iowa e a Universidade, onde tinham cargos diretores, e a casa de Chicago, pela Califórnia.
“Nós queríamos fazer o Brain Institute num sítio que funcionasse. Podíamos tê-lo feito no Iowa mas não seria a mesma coisa. Ou em Nova Iorque, e teria sido um erro colossal. Em Nova Iorque, passou o momento de originalidade. É uma cultura europeia adaptada aos Estados Unidos. Esteve sempre dependente das ideias da Europa, do Louvre, do British Museum, das instituições culturais que queriam imitar. Na Califórnia, estão-se nas tintas para a Europa. Está no apogeu da sua civilização e começa a prestar atenção à Europa, mas faz as coisas à sua maneira. É por isso que Silicon Valley está na Califórnia. A Google.”
No rescaldo da guerra na Europa, as cabeças foram para a Califórnia, que tem um clima mais amável do que a Costa Leste, Boston ou Nova Iorque. Era, homeoestaticamente, mais interessante.
“É verdade, o clima é importante. Sofremos os invernos de Chicago e sabemos a diferença. Mas quando decidimos mudar era pela possibilidade de encontrar pessoas interessantes e fazer aquilo que queríamos.”
E a Europa? “Onde? Mesmo com a admiração que tenho pela Alemanha, não podia ser.” Hanna fala na abertura de ideias, que na Europa é diferente. “Na América, se funciona, ótimo, se não funciona, extingue-se. Tem de funcionar. Somos obrigados a ser bem-sucedidos.” António diz que a resposta de Hanna é a mais inteligente. “Não sacrificámos nada porque tivemos uma enorme recompensa. Embora, quando fizemos o sacrifício, não sabermos se íamos ter a recompensa. Por isso, de certo modo, foi sacrifício. Quando se trabalha com entusiasmo e agrado não se sente o sacrifício.”
E períodos de dúvida, de angústia? “Também os tivemos, há sempre momentos de dúvida. As coisas correm mal em ciência, e o nosso trabalho é tanto empírico como teórico e tanto um como outro podem correr mal. Neste momento, as coisas estão a correr muito bem. Nova Iorque teria sido mais fácil mas tivemos a ideia correta ao escolher a Califórnia. Onde já tínhamos amigos, porque demos aulas no Salk Institute. O espírito pioneiro está a morrer nos Estados Unidos e o sítio onde vai morrer é na Califórnia porque ali se atingiu o apogeu”.
Nunca tiveram um momento de remorso. Nem no Iowa, onde ficaram muito tempo, e que tem uma grande universidade. Apesar de terem tido convites para Boston e Nova Iorque escolheram o Midwest.
“A ida para Iowa, ao princípio, foi um sacrifício. Percebemos que seria o melhor lugar para o nosso trabalho. Mesmo os nossos amigos americanos não perceberam a escolha. Hoje, está tudo tão polarizado que as grandes universidades ou estão na Costa Oeste ou na Costa Leste. O interior da América está a esvaziar-se. Trump conseguiu o voto das pessoas abandonadas. Exaustas. Quando estivemos no Iowa era maravilhoso. Humanamente maravilhoso.
Academicamente maravilhoso. Num capítulo do livro faço a pergunta, há uma razão biológica para os falhanços sociais a que estamos a assistir? O falhanço da democracia liberal, os nacionalismos, etc. E dou duas respostas que não são de um sociólogo ou de um cientista político, não sou nenhum. Uma das razões é a biologia moderna. Como somos governados por homeoestasia e por experiência do sentimento, esse sistema desenvolveu-se biologicamente para o indivíduo ou para pequenos grupos como a família ou a tribo. Com paciência e tempo evoluíram para cidades, pequenos países. Logo que os grupos, que estão ligados ao self-interest, ficam muito grandes, um bloco grande, tudo pode falhar. Há muitas identidades culturais, muitos indivíduos, muitas ideias, a possibilidade de confronto aumenta. O único modo de controlar o confronto é por um processo educacional, cultural e civilizacional que demora gerações. E que pode colapsar. Os Estados Unidos são um exemplo disso. O esforço educacional não foi suficiente.”
Não estará a falha primordial na natureza humana? A falácia não faz parte de nós?
“É um mau argumento, mas entronca na segunda razão que dou. Em “O Mal-Estar na Civilização”, Freud diz claramente que não há solução porque temos um desejo de autodestruição e de heterodestruição. O nosso próprio sistema está corrompido por dentro.”
E não contradiz a ideia da homeoestasia?
“Contradiz e não contradiz. Se tudo for harmonizado à volta, é possível manter o bem-estar. Trago para o livro a correspondência de Freud com Einstein. Em 1931, Freud deu a Einstein conselhos sobre como evitar a catástrofe nazi. E Freud respondeu que nada havia a fazer. Era impossível evitá-la, evitar a destruição. E neste momento da história do mundo existe essa tensão. Podemos ter esperança e continuar a tentar”.
Não será a rutura um modo de contrariar a estranha ideia da perpetuidade? De trazer a normalidade da morte para o processo? Nada permanece assim sempre. “Gostaria que não fosse necessária, mas está nas cartas da vida. Nas razões biológicas do nosso falhanço. Vais gostar do capítulo 12.”
“O lançamento de “A Estranha Ordem das Coisas” terá lugar terça-feira, pelas 10h30, na Escola Secundária António Damásio, nos Olivais. A obra será apresentada pelo autor
Artigo publicado na edição do EXPRESSO de 28 de ouubro de 2017