19 militares foram acusados no caso dos comandos. As penas podem chegar aos 16 anos de prisão
tiago miranda
Violência, castigos, agressões, humilhação, racionamento de água e encobrimento das situações. Foi assim a instrução do 127º curso dos comandos, segundo a acusação deduzida pela procuradora Cândida Vilar, em que é relatado hora a hora o que aconteceu nos bastidores deste treino militar.
Toca a acordar tá de pé, vamos lá embora, o curso de comandos já começou”. A ordem dada aos berros pelos oficiais do Exército às 21h30 naquele dia 3 de setembro de 2016 dava inicio à “prova zero” do 127º curso dos Comandos.
Os 67 recrutas estavam a ser acordados com granadas de instrução, munições de salva e sirene de ambulância. Depois de se vestirem, e já cada um deles com a sua ração de combate, dirigiram-se para a parada onde se despiram por completo e foram revistados pelos oficiais. Perto da meia noite foram todos para o Campo de Tiro de Alcochete, onde chegaram às duas da manhã. Durante os primeiros 60 minutos realizaram uma marcha. Foram divididos em quatro grupos. Em dois deles estavam Dylan Silva e Hugo Abreu, dois dos recrutas mais dedicados daquele curso.
03h00
Depois da marcha, o Hugo e os colegas beberam quatro tampas de cantil– cerca de um terço de uma garrafa de 33cl. Dois deles não ingeriram nada pois não tinham água no cantil por terem sido castigados ainda no Regimento de Comandos. Um dos recrutas quis dar-lhe um bocado mas ouviu um “não” do instrutor. E só pela pergunta todos tiveram um castigo: fazer flexões.
Entre as 03h00 e as 05h00
Os recrutas estiveram a montar e desmontar várias vezes as tendas porque o instrutor achava que não estavam bem alinhadas. Nesse momento tiveram outro castigo: rastejar no solo e a fazer mais flexões. Ninguém dormiu. Estiveram durante a noite a limpar o armamento.
Das 06h20 às 07h00
Os recrutas tomaram o pequeno-almoço mas não lhes foi fornecida toda a ração de combate prevista. Comeram cinco bolachas e um doce, em vez das 15 bolachas e duas embalagens de doce. Além disso, não beberam água. No fim, abasteceram os cantis com menos de 1 litro.
tiago miranda
Das 07h30 às 08h20
Teve inicio a instrução de Ginástica Educativa com saltos, elevações, flexões laterais, rotações do tronco, extensões de braços, corrida, , abdominais, entre outros exercícios. Nessa altura o calor já atingia os 24º C. Ninguém bebeu água.
Das 08h30 às 10h20
Sem intervalo, os recrutas realizaram a instrução de Técnica de Combate. Com uma arma na mão rastejaram de costas e de gatas. Estavam exaustos ansiosos, com náuseas, vómitos, desidratados e com um cansaço físico extremo. Um deles pediu para beber água. Mas a resposta foi negativa. E levaram mais um castigo: dois graduados tiveram de se atirar para as silvas, ficando com várias feridas.
10h21
Os recrutas puderam descansar durante 10 minutos e beber quatro a cinco tampas de água – menos que meia garrafa de água de 33cl.
Das 10h30 às 11h20
Teve inicio a instrução de Ginástica de Aplicação Militar durante qual rastejam, fazem transporte de feridos, jogos de equipas, dão cambalhotas. As temperaturas chegaram a atingir os 35,3 ºC. Dois recrutas desmaiaram. Com eles no chão, o instrutor ordenou a alguns dos outros recrutas que lhes pegassem pelos pés e os arrastassem para as silvas. Depois obrigou todos os outros a rastejar também no mesmo local. Todos ficaram com feridas.
11h20
Os instrutores dão ordem para que vão a rastejar buscar as mochilas que estão a 200 metros e que regressem a correr. Dão-lhes sete minutos para o fazer. Os recrutas não conseguem e sofrem mais um castigo: não terão intervalo para a atividade seguinte e não vão beber água.
Das 11h30 e as 12h20
Os 10 recrutas dão início ao carrossel- um exercício de grande desgaste. Trata-se de uma instrução de Técnicas de Combate 2 que é feita de mochila às costas e armas na mão. Os militares colocam-se num círculo largo, pousam as mochilas no chão e deitam-se, escondidos atrás da mochila. Depois e à ordem do instrutor, correm o mais rápido possível até à posição seguinte. A ideia é imaginar que estão em combate. Nessa altura as temperaturas já se situavam entre os 35,3 e os 37,6.ºC. Mas ninguém pôde beber água. Um dos recrutas perdeu entretanto os sentidos e outros dois desmaiaram. “Estás a atrapalhar os camaradas!”, gritou o instrutor a um dos graduados que estava exausto no chão. Vários outros começaram a dar sinais de cansaço extremo e um deles tinha tanta dificuldade em andar que os superiores hierárquicos o mandaram colocar à sombra de uma árvore. Pouco depois um outro colega também desmaiou e um outro ainda caiu prostrado no solo. Três deles foram nessa altura levados para uma zona coberta com toldo e os socorristas deram-lhes a beber três garrafas de água de 1,5 litros. Dois tiveram entretanto de ser transportados para a enfermaria onde ficaram a soro. Desde as 21h30 da noite anterior, até então os recrutas beberam apenas 10 tampas de água (320ml – o equivalente a uma garrafa de água de 33cl).
12h20: Hora de almoço
Quatro dos recrutas foram almoçar à tenda. Comeram uma lata de ração e beberam a água que restava do cantil (680ml – um pouco mais de uma garrafa de meio litro), tendo sido autorizados a beber mais um cantil (1 litro). Os três recrutas que estavam a descansar no toldo não comeram nada.
Tiago Miranda
14h00
Dá-se a formatura. Alguns dos recrutas não comparecem.
14h10
Os militares iniciaram a instrução de Tiro de Combate que incluiu cambalhotas, rastejar no solo, rebolar, corrida rápida, marcha hiperflectida, subir um monte em passo de corrida e descer a rastejar ou a rebolar alternadamente, após o que se seguia o tiro de combate. Estavam já 40º C, Ouviam-se gritos dos instrutores para os obrigar a concluir os exercícios. Dois dos recrutas perdem os sentidos e caem no chão. Mas são obrigados a levantar-se e a continuar. Um deles, colocou o joelho em terra e levou bofetadas na cabeça e pescoço. Em estado de exaustão, três dos recrutas foram encaminhados para o médico que assistia a tudo. Mandou-os rastejar até à ambulância. Os outros recrutas davam também sinais de alarme: uns desmaiaram, ficando prostrados no solo, outros não conseguiam mexer-se, outros estavam num estado confusional, Alguns foram para enfermaria.
Por essa altura Hugo Abreu ainda tentava fazer a prova de tiro. Com a temperatura do solo a rondar os 45º C e depois de rastejar, rebolar, marchar e dar cambalhotas, Hugo chegou à linha de tiro e deu sinais de que algo não estava bem. Mal se mantinha em pé, estava confuso, com tonturas, sede e desidratado e sem conseguir efetuar o tiro. Foi visto pelo enfermeiro que optou por não o encaminhar de imediato para a ambulância. Hugo não parava de cuspir a seco. Um dos chefes aproximou-se e colocou-lhe na boca um punhado de terra que apanhou do chão. “Cospe lá agora, burro, seu pacação.” Pouco depois ordenam aos recrutas que entrem para a viatura “MAN”. Hugo Abreu estava mal. Ficou deitado no chão. Enrolava a língua e revirava os olhos. Os colegas puseram-lhe uma tampa de cantil na boca para não sufocar.
15h45
Quando chegam às tendas, três recrutas são transportados para a enfermaria, um local sem refrigeração, onde já estavam quatro colegas. A situação de Hugo Abreu agravou-se com lesões físicas e neurológicas. E e outros colegas ficaram ali.. Deram-lhes soroterapia, mas o cenário não melhorava. Além do grupo de 10 recrutas com graduados, os outros três grupos de praças (um com 27 elementos e os outros dois com 15 cada um) estavam a passar pelo mesmo. No grupo nº 3 encontrava-se também um recruta em estado de saúde muito grave- Dylan Silva. Ele e Hugo, assim, como outros, ficaram naquele local durante horas.
19h00
O médico decide que Hugo e Dylan devem ser transferidos para o Hospital das Forças Armadas mas dás-lhes prioridade amarela, ou seja, não urgente. Enquanto isso Hugo começa a vomitar.
20h15
O médico abandona o Campo de Tiro de Alcochete, onde não há mais nenhum clínico
20h36
Hugo Abreu entra em paragem cardiorrespiratória. A equipa tenta reanimá-lo e o enfermeiro, sem experiência, utiliza um desfibrilhador que terá provocado o aumento da temperatura corporal do recruta.
20h37
Um soldado socorrista contata, então, o INEM
21h30
Chega ao local a equipa do INEM e o clínico informa o CODU do mau estado de saúde do recruta.. Ao mesmo tempo, pede ao CODU que abra ficha para outro militar, Dylan Silva – que, segundo explicou, se encontrava com hipertermia de 40.ºC, desidratação, hipoglicémia de 50 e hipotensão 80,50 – falência circulatória, hipoxia, aumento das necessidades metabólicas, provocados pelo golpe de calor. Situação que acabou por provocar a morte de Dylan Silva uns dias depois, a 10 de setembro de 2016, no Hospital Curry Cabral, em Lisboa. Mas naquele dia 4 de setembro, pouco depois de chegar, o médico do INEM não tardou a perceber que Hugo não apresentava sinais de vida. Ainda o tentaram reanimar, mas sem sucesso
21h45
Num certificado de óbito, o médico confirma o pior: o recruta Hugo Abreu não resistiu aquele dia de treino do 127º curso dos Comandos.