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Os “Cartoons” de João Abel Manta estão de volta, 48 anos depois: o que nos revelam sobre o Estado Novo?

“Mais um bocado de força e acabam-lhe de vez com a conversa” é o título deste cartoon, o primeiro de Abel Manta publicado no “Diário de Notícias” em julho de 1974
“Mais um bocado de força e acabam-lhe de vez com a conversa” é o título deste cartoon, o primeiro de Abel Manta publicado no “Diário de Notícias” em julho de 1974

Os 49 anos da Revolução dos Cravos trouxeram consigo a reedição do álbum “Cartoons — 1969-1975”. A arte gráfica de João Abel Manta chega agora às livrarias

Sara Figueiredo Costa

No mês em que se assinalam os 49 anos da Revolução dos Cravos, ver chegar às livrarias a reedição do álbum “Cartoons — 1969-1975”, de João Abel Manta, é uma celebração que enaltece o trabalho gráfico de um autor que o soube praticar com mestria inigualável. Mais do que isso, é o resgate há muito em falta de uma herança extraordinariamente valiosa. Se os cartoons de João Abel Manta são criações gráficas exímias na análise e no comentário sobre o país e o mundo, a apreciação do seu trabalho em sequência, formando um corpo complexo, revela essa inteligência atravessada pela mordacidade que o caracteriza ao longo das décadas e que ganha em cada composição a força de um texto visual que se basta a si mesmo, sem precisar de qualquer acrescento.

Passaram 48 anos sobre essa edição de “O Jornal”, quase tantos como já levamos de democracia, e o livro de Abel Manta não voltou a estar disponível, até agora. É um facto estranho, se atentarmos na importância destes trabalhos para a memória coletiva dos anos imediatamente anteriores e posteriores ao 25 de Abril, mas será um daqueles absurdos que caracterizam o nosso mercado editorial, sempre tão cheio de novidades que aparecem e desaparecem das livrarias a um ritmo vertiginoso e sempre tão escasso de fundos, de reedições que não deixem desaparecer do acesso aos leitores bibliografia tão essencial como esta. Merecíamos, coletivamente, que esta herança não ficasse confinada às bibliotecas e às prateleiras mais caras dos alfarrabistas.

A nova edição deste álbum que entretanto se tornou mítico, quer pela sua qualidade, quer por ter sido remetido para a condição de raridade, é assumida por Pedro Piedade Marques, que já havia assegurado o mesmo labor editorial na edição de “Caricaturas Portuguesas dos Anos de Salazar”, publicado há um ano, também pela Tinta-da-china. É do investigador a responsabilidade pelas várias inovações que esta edição traz aos leitores, a começar pelo extenso texto introdutório, que não se fica pelo trabalho de Abel Manta nos anos que balizam o livro, estendendo-se em considerações biográficas, apreciações estéticas e dados sobre colaborações regulares ou dispersas e sobre o seu impacto na vida do autor e na receção dos leitores de então. A esse texto, Piedade Marques soma algumas opções certeiras. Uma delas é a extensão cronológica, uma vez que opta por acrescentar à edição de 1975 alguns desenhos que lá não estavam (embora tivessem sido criados e publicados antes dessa data), bem como uma série de trabalhos publicados por Abel Manta entre 1975 e 1992 na imprensa periódica de carácter generalista, opção que permite visionar uma continuidade dessa capacidade de ler o país e o mundo e de a transformar em imagens que, por sua vez, criam novos desafios de leitura e outros pontos de partida para o questionamento sobre o nosso rumo coletivo. A outra opção editorial que se assume nesta edição é a legendagem de todos os desenhos com a origem e a data de publicação (ou uma data aproximada, em alguns casos), devidamente organizados por ordem cronológica e acompanhados de breves notas, que são essenciais para contextualizar alguns destes trabalhos.

O traço de João Abel Manta possui as muitas características que lhe asseguram a intemporalidade, essa miragem para tantos artistas, mas alguns dos temas tratados estão inevitavelmente ligados a determinados episódios e protagonistas que talvez já não sejam facilmente identificados por todos os leitores.

Os primeiros trabalhos que aqui se incluem correspondem ao início da colaboração de João Abel Manta com o “Diário de Lisboa”, onde viria a publicar alguns dos cartoons mais icónicos do período revolucionário. Antes disso, e recuando um pouco no tempo, o que vemos é um traço de uma absoluta inovação gráfica logo a partir de 1969, com imagens como a que dedicou à Guerra do Vietname, onde trabalha com imagens em sequência como na banda desenhada e onde os censores, tantas vezes pouco inteligentes, não souberam ver a referência à Guerra Colonial. A mesma desatenção da censura permitiu a publicação, também em 1969, de um cartoon dedicado ao presidente do Comité Olímpico Internacional, Avery Brundage, responsável pelo afastamento do desporto oficial dos atletas negros que, um ano antes, ergueram os punhos e exibiram a luva que homenageava o movimento Black Panthers. Vê-se claramente esse punho erguido na imagem, refratando uma espécie de eco visual a lembrar certas imagens derivadas do psicadelismo, e não se compreende se a censura não o viu ou não o soube ler. Se estes cartoons escaparam ao lápis azul, o mesmo não se pode dizer de outros que aqui também se incluem. Nesses, revela-se um olhar simultaneamente devastador e humorístico sobre aspetos da vida portuguesa que o Governo preferia não ver impressos nos jornais, como esse mapa de Portugal todo a negro que vomita uma amálgama medonha e cujo título é “Indigestão por excesso de condimentos histórico-patrióticos”.

Os anos passam, Salazar cai da cadeira e Marcello Caetano não tem como impedir a mudança. A cor vai chegando aos trabalhos de Abel Manta até que, em 1974, já não há definição cromática que impeça a explosão de alegria, que ainda assim não afasta a causticidade do pensamento e da reflexão que o autor continua a fazer no seu trabalho. A preto e branco e a cores, Abel Manta cria os seus cartoons mais reconhecidos, regista episódios da vida política na ebulição que se segue ao 25 de Abril, manifestações e ações várias. Também comenta as mudanças sociais colocando o “povo” a conhecer as “vocelências”, que são várias figuras da cultura universal, ou um militar de pés descalços a tentar pôr ordem nas disputas que envolviam Sá-Carneiro, Mário Soares e Álvaro Cunhal. É do seu traço que saem os elementos que continuam a definir a nossa memória gráfica desse período da história portuguesa e é difícil conceber como nos relacionaríamos — quem viveu os anos de 1974 e do PREC e quem já nasceu depois — com ele sem o trabalho de Abel Manta. Mudando-se para Londres depois do 25 de Novembro, desiludido com o rumo político do país, João Abel Manta continua a trabalhar e não deixa de fazer cartoons e outras ilustrações, algumas delas também publicadas neste livro. Agora, é garantir que esta edição se reimprime à medida que esgotar, para que não deixemos de ter à mão um dos livros que tão bem mostra de onde viemos e o que andámos para aqui chegar.

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