19 novembro 2022 20:42

O último livro de Serge Daney é o testamento de um grande pensador do cinema que morreu demasiado cedo
19 novembro 2022 20:42
Já doente e debilitado, Serge Daney queria publicar um último livro, não mais uma colectânea de críticas [v. a antologia “O Cinema Que Faz Escrever”, Angelus Novus], mas um ensaio que fosse uma “cine-biografia”. E aceitou a oferta do seu colega e amigo Serge Toubiana para fazer esse livro a partir de umas conversas gravadas, que tiveram lugar em Fevereiro de 1992. Meses depois, morreria vítima de sida, aos 48 anos, o que transformou este texto no seu testamento (ou um deles: em 91, fundou a revista “Trafic”, que durou até 2021).
“Perseverança” (1994) é uma reivindicação da biografia como instrumento crítico. Daney chegou ao cinema por motivos específicos: por ter nascido em 1944, numa família pobre, filho de pai judeu precocemente desaparecido, por ter crescido entre mulheres, por ter frequentado os cinemas de bairro com a mãe e a avó, por ser homossexual e de esquerda, aluno de Henri Agel, leitor devoto dos “Cahiers du cinéma” de capa amarela, etc. Sentia-se um “ciné-fils”, um “filho do cinema”, projectava-se no miúdo assombrado de “A Sombra do Caçador”, e o fantasma do seu próprio pai, que aparecera num punhado de filmes, uma das vezes a fazer de cadáver, levou-o a considerar o cinema o “lugar dos pais mortos”. Quando, em 1961, leu o texto de Jacques Rivette sobre “Kapò”, de Gillo Pontecorvo, onde se dizia que um travelling pode ser “uma questão de moral”, sobretudo tratando-se do Holocausto, Daney fez dessa outra das suas evidências, mesmo sem ter visto “Kapò”.