Quando fica bêbado, depois de longas purificações da alma com aquela cerveja espessa, escura, que, na Irlanda, é tão símbolo da pátria como a bandeira ou o catolicismo, ele até é um tipo com quem é agradável estar. Pelo menos é o que diz Colm Doherty/Brendan Gleeson, seu amigo de todos os dias, ao longo dos anos, de fim de tarde no pub do lugar onde reina uma desolação de densidade da espécie humana tão incisiva que não são de estranhar amizades do peito como a que se trava com a burrica “Jenny”. Só que, na maior parte do tempo, Pádraic/Colin Farrell (de apelido Súilleabháin, impenetravelmente gaélico) é um chato, aborrecendo os circunstantes em geral e Colm em particular, até à exasperação. Não que ele faça alguma coisa exuberantemente aborrecida, não, ele é, na definição deveras oportuna dos que se dedicaram ao exame científico da coisa, um existenchatista (uma pessoa que é chata porque existe, na taxinomia proveitosa do “Tratado Geral dos Chatos”, de Guilherme Figueiredo). Tudo se passa numa pequena ilha ao largo da Irlanda, corre o ano de 1923. Do outro lado do curso de mar que a separa da terra-mãe, ruge, cruenta, a guerra civil.
Chega então o dia em que Colm decide pôr termo ao convívio de todos os dias. Nem mais uma tarde, nem mais uma palavra, nem mais um copo. A vida é curta demais e há que nos concentrarmos no essencial. Para ele, o essencial é, no momento, a peça musical para violino em que está a trabalhar. E assim o comunica a Pádraic — que não quer acreditar no que ouve. Para reforçar o propósito, Colm ameaça: de cada vez que Pádraic lhe dirigir a palavra, querer retomar o convívio, de cada vez que o chatear, vai cortar um dedo. Não é um dano que cause ao outro, é uma mutilação que aplica em si próprio, mas cujo ónus de culpa sobre Pádraic cairá. E cumpre, Colm é um homem de palavra.
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