O chefe indigesto apresenta “O Menu”. “A Guerra dos Tronos” e “Succession” são outros projetos do mesmo realizador
Ralph Fiennes no papel de Slowik, o reputado, marmóreo e sinistro chefe dono-daquilo-tudo
Sátira repleta de humor negro e com influências de Buñuel e “Parasitas”, de Bong Joon-ho, “O Menu” chega esta quinta-feira às salas de cinema portuguesas. O filme, sobre um cozinheiro tirano e egomaníaco, é assinado por Mark Mylod
No princípio, “O Menu” promete um filme sobre a arte de bem comer. Começa com um casal, Tylor e Margot, jovens namorados, supomos, a caminho de uma experiência gastronómica inesquecível. Ele chama-se Tyler e parece mais convencido do que ela, Margot. Há entre ambos uma tensão estranha e percebe-se rapidamente quem levou quem na viagem. Ele reservou há meses uma mesa num restaurante tão exclusivo, tão seleto, tão à imagem da reputação do seu chefe, que só chegar lá já é uma aventura: o sítio finório fica numa ilha privada (é uma ideia muito escandinava, há restaurantes assim na Noruega), só de ferry é possível pôr lá os pés. Já ela, descobre-se logo a seguir, não estava propriamente na lista do manjar e está ali a ocupar o lugar de alguém que nunca saberemos quem foi, como se uma pedra tivesse entrado subitamente na engrenagem... Tyler é interpretado por Nicholas Hoult, jovem britânico que já vimos no último “Mad Max” e em mais do que um “X-Men”. Margot é Anya Taylor-Joy, fez-se notar aos 20 anos em “Split” e a M. Night Shyamalan voltou em “Glass”, tornando-se depois inesquecível para todos os que viram “Gambito de Dama” na Netflix.
Tyler (à dir.) é interpretado por Nicholas Hoult, jovem britânico que já vimos no último “Mad Max” e em mais do que um “X-Men”. Margot (à esq., em primeiro plano) é Anya Taylor-Joy, fez-se notar aos 20 anos em “Split” e a M. Night Shyamalan voltou em “Glass”, tornando-se depois inesquecível para todos os que viram “Gambito de Dama” na Netflix.
O resto dos comensais que fazem companhia a Tylor e Margot, 12 ao todo, como os apóstolos, são, sem surpresa, gente riquíssima, se não de carteira, pelo menos de influência. Aquilo é tudo menos local acessível ao comum dos mortais e, para que a chiqueza seja clara em matéria de carcanhóis, Tyler até nos informa que foi preciso pagar o repasto em adiantado. Este parágrafo não acaba contudo nos 1250 dólares por cabeça que custa a brincadeira. É que, entretanto, conhecemos Slowik, o reputado, marmóreo e sinistro chefe dono-daquilo-tudo que traz a estampa de Ralph Fiennes.
Slowik é o polo principal desta sátira que não tarda a servir-nos pratos de pão sem pão (!) e a evoluir para coisas mais desgrenhadas, explorando o que na alta gastronomia pode haver de mais empolado e absurdo. A personagem diz-nos muito de um estrelato fútil, papagueado pelos media e pelas redes sociais, que os mestres da cozinha rebuscada atingiram nos últimos anos: o homem tem tanto de ditador como de rock star. Tirano com os criados, segundo o cliché de que na cozinha só com punho de ferro se manda, Slowik é um sedutor para quem pagou para se sentar à mesa, ciente de que a sua clientela high-end está preparada para desfrutar de um espetáculo aberto a surpresas chocantes.
“Ver os muito ricos a sofrer mexe com todos nós. Neste ponto, o filme dá continuidade a ‘Sucession’, que já tratava de gente poderosa e horrível” Mark Mylod, Realizador
Por trás de tudo isto está uma dupla de argumentistas batida na TV, Seth Reiss e Will Tracy, e o britânico Mark Mylod, realizador regular da HBO, com quem falámos há dias por videochamada. Mylod fez cinema no passado, tem CV considerável no pequeno ecrã, participou em “The Affair”, realizou seis episódios de “A Guerra dos Tronos”, assinou a maioria dos capítulos das três temporadas de “Succession” que, tal como “O Menu”, teve Adam McKay e Will Ferrell na produção. “Isto de ver os muito ricos a sofrer mexe com todos nós de uma maneira ou de outra, neste ponto o filme dá continuidade a ‘Sucession’, que já tratava de gente poderosa e horrível”, contou-nos.
“Eu gosto de personagens superficiais e tento compreendê-las porque, na verdade, elas são muitas vezes mais complexas do que imaginamos. E quando nos damos conta do nosso engano, é em nós próprios e nos nossos preconceitos que ficamos a pensar. Nunca tive uma má experiência em restaurantes de luxo mas nunca me senti confortável em nenhum deles. Visitei alguns com o máximo de estrelas Michelin graças ao David e ao Dan [David Benioff e D.B.Weiss, gionistas de “A Guerra dos Tronos”], que são grandes foodies. Mas nunca tive bagagem para os acompanhar e fiquei sempre embaraçado. Foi nisto que pensei quando li o guião de ‘O Menu’ pela primeira vez. Acho que, para começar, este é um filme sobre o desconforto.”
Por falar em desconforto, já houve quem tenha aproximado “O Menu” do filme que venceu o Festival de Cannes, “Triângulo da Tristeza”. Afinal, tratam ambos de más consciências e da necessidade de autoestima, assuntos quase sempre polémicos em qualquer arte. Da nossa parte, a comparação é deslocada. O filme de Mylod não é apenas mais convincente que o de Östlund na construção das personagens (e basta pensar-se em Slowik, que é uma personagem por inteiro), é também mais contundente nos objetivos a partir do momento em que a audiência se apercebe que está ali um jogo massacrante em curso. Mylod não olha para Slowik como um vilão nos píncaros de uma cultura de consumo, vê-o antes como “um artista egomaníaco e perfeccionista que está em sofrimento e desespera por não ter chegado ainda ao topo da sua arte. E isso também o torna cómico. O seu grande dilema é o de não conseguir casar o elitista e o popular, o prato mais sofisticado com o simples hambúrguer”.
A maior influência de “O Menu”, confessou-nos Mylod, veio de “O Anjo Exterminador”, obra-prima de Luis Buñuel, “em que nos perguntamos se os convidados encurralados têm noção da sua culpabilidade e das suas fraquezas. Eu adoro esta ideia porque há neste cerco um tremendo potencial para o conflito dramático. E é também por causa do cerco que a comédia negra se desencadeia”. Outra coisa “que me fez muito bem”, acrescentou o cineasta, foi rever “Parasitas”, de Bong Joon-ho, e a maneira como ele “tira proveito da arquitetura da casa dos ricos para a transformar numa arma. É outro filme fabuloso que deu forma a todas as nossas escolhas cenográficas e à ligação, por exemplo, entre a cozinha e a sala de jantar do restaurante com aquela janela que dá para o mar”.
Mylod desconfia da deificação dos chefes que está a ser feita nos dias de hoje, acha que é coisa de caprichos, moda recente. Não tem um prato favorito nem há nada que o faça esquecer a massa folhada de carne de South Devon, a região do sudoeste de Inglaterra em que cresceu. E também não compreende porque é que há pessoas que pagam 10 mil dólares por uma garrafa de vinho, “mas quem sou eu para pregar lições de moral”. O feedback que tem tido da indústria gastronómica tem sido fantástico. “Encaixaram com piada o retrato que fizemos deles e disseram-me que se sentem representados. Acham o filme credível.
Ficámos a dever muito à Dominique Crenn, a nossa chefe e consultora francesa, creio que ela é ainda a única pessoa que tem um restaurante com três estrelas Michelin nos Estados Unidos, em São Francisco. Ela adorou o argumento. Foi ela que nos ajudou a preparar os pratos do filme!” Já Margot, a personagem de Anya Taylor-Joy, existe para pôr aqueles caprichos à prova. O muito provável êxito que “O Menu” encontrará nas salas a partir de agora vem sobretudo do choque entre ela e Slowik — Ralph Fiennes, contou Mylod, foi “primeira e única” escolha para o papel. “E eu precisava de uma atriz que lhe desse luta, olho por olho, dente por dente. O núcleo do filme é o antagonismo deles. Precisava de uma mulher instintiva, inteligente, muito forte a nível mental e a Anya tem tudo isso. A presença dela no ecrã é incrível, deixa tudo paralisado à sua volta.”
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