O maior problema de “Triângulo da Tristeza” não é sequer o ralo escatológico que o sueco Ruben Östlund decidiu abrir à sua sexta longa-metragem. Muitos filmes, não necessariamente ‘de’ mas ‘com’ merda — perdoe-se a crueza do substantivo —, foram feitos na história do cinema e saíram incólumes do seu cheiro nauseabundo. Não, o problema grave de “Triângulo da Tristeza”, em jeito de sátira descabelada aos muito ricos, é a sua completa incapacidade de gostar do que quer que seja, o seu imenso enjoo pela Humanidade, bem patente em todas as personagens. Incapacidade essa que traz água no bico, já que o filme espera que a audiência veja o tal ralo escatológico como uma metáfora do capitalismo e do atual estado do mundo.
Essa é a mensagem óbvia deste “Triângulo...”, é a ela que se agarram os seus defensores, mas ver apenas isso não é querer ver muito pouco? Östlund foi pescar o batismo do filme ao mundo da moda e com conhecimento de causa, pois é casado com uma fotógrafa que trata por tu aqueles meios. O dito ‘triângulo triste’ é um termo da cirurgia plástica que se refere a uma zona particular do rosto entre as sobrancelhas e o nariz. No mundo da moda, muitas modelos corrigem por intervenção cirúrgica essa parte da cara em que as rugas não perdoam. E aqui perguntamo-nos: não é o filme logo desmascarado pelo seu título, nome de operação de lifting?
A cena mais conseguida é uma das primeiras, a que nos introduz ao casal de namorados Carl (Harris Dickinson) e Yaya (Charlbi Dean), modelos na berra à mesa de restaurante catita. Ele está descompensado por ganhar três vezes menos do que ela. Yaya é, além disso, influencer. Nenhum deles quer pagar o jantar, empurram a conta um para outro. Talvez vivam, afinal, acima das suas possibilidades. Ou então foram os egos que já lhes lixaram qualquer cortesia. Pouco depois — já o casal se instalou a convite no iate de luxo dos muito ricos que é metáfora do mundo — surgirá outro momento de ténue noção da realidade, quando Carl se espanta por ter causado sem querer a demissão de um tripulante. E, contudo, nem Carl, nem Yaya, nem Abigail, a responsável pela limpeza das retretes, nem aquele patusco casal de idosos britânicos, donos de um império de armamento, conseguem alguma vez descolar-se do esboço que representam. E o mesmo acontece com o oligarca russo Dimitry, defensor acérrimo do capitalismo, e o capitão marxista-leninista do navio (Woody Harrelson), que o confronta, perdido de bêbedo.
Todos embarcam numa mesma orquestra de personagens estereotipadas à medida que a Humanidade vai caminhando para o desastre e o realizador se compraz com a retórica de tal descida. Aqui, são os excrementos e os vómitos do navio sob tempestade que vêm à tona, os literais e os simbólicos, isto é, sempre o dinheiro, o capitalismo e as relações de poder redesenhadas na segunda metade do filme. E também o ouro veio à tona, o do júri de Cannes, que coroou o cineasta sueco com uma segunda Palma, que agora lhe permitirá fazer o que quiser, até ‘um filme na Lua’, se assim o entender. Haverá uma tubagem subterrânea entre o ouro e o esterco? A questão não é irrelevante. Acontece que Östlund, ao contrário de um Buñuel ou de um Ferreri, não sabe o que fazer ao seu humor de guilhotina. Condescende sem cortar. Plana sem ferir, sem desmascarar o jogo social. Por isso achamos “Triângulo da Tristeza” um filme falsamente subversivo e as suas personagens uma panóplia de fantoches. Por isso acaba por ser mais estimulante ouvir o que Östlund diz do seu trabalho do que ver o filme propriamente dito.
Diga-se o que se disser deste filme controverso, não podemos deixar de concluir em diálogo com o leitor que o dramatismo de “Triângulo da Tristeza”, para lá do seu convite imediato à provocação, é paupérrimo. Aliás, é confrangedor até no próprio universo de Östlund, nem é preciso sair dele. Carl, Yaya, Dimitry, Abigail ou o capitão estouvado são cobaias, não passam de caricaturas quando comparadas à impotência de Tomas em “Força Maior” (um filme defendido com entusiasmo nestas páginas) e à prepotência de Christian, o curador de arte de “O Quadrado”. Nada mais sobra do que uma árida crueldade, um homem a sair de campo em corrida desenfreada, um diagnóstico de impostura a fazer tábua rasa de exploradores e explorados: somos todos horríveis, é como se já estivéssemos mortos.
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