Em 2013, no ano em que este notável documentário começa, o bairro do Aleixo, no Porto, já estava em processo de demolição, anunciado dois anos antes. E contudo, mesmo com as torres 4 e 5 já destruídas e a perda significativa de moradores, aquele era ainda um bairro que palpitava de vida e em que a palavra “comunidade” — na mais ampla e humana noção do termo — fazia todo o sentido. Porque é também de um Porto imemorial e popular (narrado pelos seus descendentes mais desfavorecidos) que André Guiomar aqui nos fala; veja-se, por exemplo, logo no início, o momento da lengalenga do “Aniki Bébé, Aniki Bóbó, Passarinho Tótó...” contada pelos miúdos, tal e qual como ela era contada nos anos 40 e a conhecemos pelo filme de Manoel de Oliveira.
A força de “A Nossa Terra, o Nosso Altar” vem do privilégio da proximidade entre quem filmou e se deixou filmar. Vem do olhar paciente do realizador e dos longos anos passados a testemunhar a queda daquelas paredes, até 2019, numa altura em que o bairro era já um espaço-fantasma. E não há neste documentário recurso a oráculos nem voz off como muleta narrativa, entrevistas ou depoimentos, mas sim pedaços de vida, momentos do quotidiano criteriosamente selecionados na montagem, ora recolhidos em bruto num gesto de cinema observacional, ora ‘recordados’ sem que, dessa encenação, se é que ela existe, o espectador se dê conta — e por aqui se recriam memórias de como foi a vida naquele local condenado, em particular a vida da família que o filme mais acompanha. O bairro do Aleixo era conhecido cá fora como o principal antro de droga portuense, rodeado de crime e de marginalização, fama amplificada pela demagogia das reportagens televisivas. “A Nossa Terra, o Nosso Altar” combate essa ideia preconcebida. Traz-nos antes um bairro que era um organismo vivo feito de pessoas, de memórias, de palavras e de silêncios dignos face ao fim de tudo, como o da cena que é escolhida para o desfecho. São histórias que ficaram debaixo dos escombros. / Francisco Ferreira
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