
Em vez de retratar a história de Serena ou Venus Williams, “King Richard: Para Além do Jogo” centra-se em Richard, o pai/treinador de ambas. O drama biográfico de Reinaldo Marcus Green valeu a Will Smith o seu primeiro Óscar
Em vez de retratar a história de Serena ou Venus Williams, “King Richard: Para Além do Jogo” centra-se em Richard, o pai/treinador de ambas. O drama biográfico de Reinaldo Marcus Green valeu a Will Smith o seu primeiro Óscar
No centro deste filme de Green está uma personagem real. Trata-se de Richard Williams: o pai e o primeiro treinador da Venus e da Serena com o mesmo apelido, que, nas últimas décadas, dominaram o circuito do ténis feminino (tornando-se, aliás, nas duas primeiras tenistas negras a atingir o nº 1 do ranking da WTA).
Elas são as coprodutoras de um biopic desportivo que procura sobretudo reabilitar a imagem do pai: uma figura controversa no meio do ténis que, no início das suas carreiras, se fez notar junto da imprensa pela sua arrogância, pelos seus questionáveis métodos de treino e pela sua aparente vontade de se autopromover à custa das filhas.
Para fazê-lo, o filme recria um período bastante curto da vida da família Williams, debruçando-se sobre o quinquénio que precedeu a chegada de Venus ao circuito profissional, com apenas catorze anos (1989-1994). Mas basta ver a sequência de abertura para perceber que ele nos propõe uma releitura do trajeto de Richard em chave hagiográfica. Nela, o protagonista (Smith) vai sucessivamente tentando convencer uma série de treinadores incrédulos da urgência de assumirem, de modo gratuito, a formação desportiva das filhas, dizendo-lhes que – graças ao plano de carreira que ele próprio concebeu antes do seu nascimento – elas hão de ascender em breve ao Olimpo do ténis feminino.
As sequências seguintes servem para vincar o génio de Richard, contrastando a grandiosidade da sua visão com a precariedade da sua situação. Isto é: mostrando-nos como ele vive com a sua extensa família numa cidade problemática nos arredores de Los Angeles, onde, faça chuva ou faça sol, ele todas as noites leva Venus e Serena a treinar consigo num court de ténis público. O regime espartano ao qual as raparigas são submetidas chamará a atenção da segurança social, que enviará uma assistente à casa da família – da qual sairá sem dizer palavra, após escutar um monólogo de Richard sobre a sua missão educativa.
Estamos perante uma cena que ilustra bem o modus operandi do filme, que aproveita tudo o que possa pôr em causa o comportamento do protagonista para acentuar o seu altruísmo. Na verdade, o argumento sofre de um caso agudo de delírio retrospetivo: sabendo que a história verídica que conta acabou bem, ele reenquadra cada um dos seus momentos como um passo necessário no caminho das duas irmãs para o sucesso.
A ilusão de ótica impede o filme de questionar o carácter de Richard, sugerindo que os seus gestos de prepotência (para com a mulher, os treinadores das filhas…) se encontram justificados à cabeça pelo desfecho da história. E tão preocupado está o texto com a justificação do protagonista, que acaba por desconsiderar todos os aspetos da sua biografia que não concorrem diretamente para ela: saímos da sala sem perceber qual era, afinal, a sua profissão… Aceitaríamos um rei, mas para santos falta-nos a paciência.
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt