Ele aí está, o filme que torna real a ‘impossível’ adaptação da saga de Frank Herbert a chegar às salas de cinema neste princípio de quase-normalidade (pelo menos na Europa ocidental, lugar rico e em paz). Nesta chegada, joga tudo, incluindo a hipótese de se completar.
Com efeito, o quebequense Denis Villeneuve não pôs em “Duna” todo o arco narrativo do livro de Herbert, deixando a ação no ponto em que o herói (Paul Atreides/Timothée Chalamet) contacta e consegue a confiança dos Fremen, o povo que vive no desértico planeta Arrakis de onde vem a mágica ‘especiaria’ sem a qual não há navegação interestelar possível. O resto da narrativa - na realidade, toda a resistência e luta contra o despótico Império que governa a galáxia - ficará para um filme a haver - e que, todavia, só foi garantido depois de os resultados de bilheteira de “Duna” se revelarem interessantes para os investidores.
Tanto quanto lembro, foi a primeira vez que algo assim aconteceu. George Lucas argumentou que sempre pensara “Star Wars” como um painel de três trilogias, mas a verdade é que, quando fez o filme inicial, ele fazia sentido só por si e não precisava de sequelas ou de prequelas. De igual modo se dirá de Francis Ford Coppola que imaginou “O Padrinho” em dois andamentos, mas fechava o primeiro com a morte de Vito Corleone e o espectador não se sentia com falta de alimento ficcional.
Já “O Senhor dos Anéis” de Peter Jackson ia deixando a narrativa em suspenso, mas a produção da inteira trilogia nunca esteve em causa, as filmagens foram sendo feitas tendo em conta todo o projeto. Agora, não: tanto quanto se sabe, Villeneuve só teve luz verde para entrar em pré-produção com os resultados do filme já estreado. Não está fácil a vida de artista…
De onde vem a ‘impossibilidade’ da adaptação ao cinema do mítico romance de ficção científica que Herbert deu à estampa a meio da década de 60 do século XX? Antes de tudo, da complexidade. “Duna” situa-se num longínquo futuro, 25 mil anos para lá da nossa era, portanto num quadro impensável em termos realistas. Tecnologicamente estamos num avançadíssima idade, contudo as formas de governo da galáxia são feudais, baseadas em casas nobres e num poder imperial que concede privilégios ou retira benesses a seu bel-prazer. Não há computadores nem robôs, interditados há muito.
As ‘máquinas pensantes’ foram substituídas por mentes humanas especialmente treinadas para fazer cálculos complicados. E há uma forte religiosidade profética - ou, mais exatamente, um poderoso misticismo (de que a ordem feminina das Bene Gesserit é exemplo) - em toda a complicada trama. Mas há também razões de ordem literária a dificultar o trabalho dos adaptadores de que são exemplo os ‘diálogos interiores’ que os personagens travam consigo mesmos, algo que, no cinema, só tem equivalente na sempre problemática voz off (foi o que David Lynch fez no seu filme de 1984, com duvidosa felicidade; Villeneuve pura e simplesmente prescindiu dessa vertente do romance). E é tamanha a quantidade de personagens e de relações que qualquer vontade de fidelidade à obra original se torna estulta.
No filme de Lynch, a confusão narrativa era um dos vários problemas que a obra tinha, envolta num conturbado processo de produção (foi um dos derradeiros cometimentos gigantescos de Dino de Laurentiis na América), ao ponto de a montagem final ter sido retirada ao realizador que rejeitou ser seu o resultado final. Em geral, a crítica desfez o filme com grande intransigência (não eu, que ali do meu canto no “Diário de Lisboa” me entusiasmei, em Agosto de 1985) e o público também não aderiu aos excessos e delírios de um cineasta com uma imagética muito particular que se atrevia a fazer de Sting o perverso sobrinho de um monstruoso barão e que figurava os portentosos vermes das areias como criaturas escancaradamente penianas. Deixem-me lembrar que quem queira visitar com dignidade esse filme ‘maldito’ pode contar com uma edição especial em blu-ray, saída, há poucas semanas, no Reino Unido. Faltará sempre, todavia, o grande ecrã que dê total dimensão à fotografia amarela, suja, arenosa, de Freddie Francis.
Não cair em similar armadilha fantasista parece ter sido a preocupação cimeira de Denis Villeneuve. Homem experimentado no território da ficção científica - lembremos o esplêndido “O Primeiro Encontro”, em 2016, e o menos feliz “Blade Runner 2049, em 2017 - apostou na contenção visual e na clareza narrativa. Concentrou-se no conflito que está no fulcro da história, a tentativa de extermínio da Casa Atreides e a aliança solitária do seu herdeiro, Paul Atreides, com os Fremen para combater o Imperador.
No cômputo geral pode dizer-se que nos deu um filme poderoso, mas não uma maravilha, mau-grado a concessão de um prodígio visual, deveras só desfrutável no grande ecrã de uma sala escura
Não exuberantiza no guarda-roupa, joga na beleza e na funcionalidade que a ficção justifica. Usa o topo de gama digital dos efeitos visuais para criar umas quantas preciosidades, como os ‘ornithopters’, aquelas naves que parecem libélulas gigantes, mas nunca se põe a olhar para elas para nos embasbacar. Tenta captar a atenção do público juvenil indo buscar o muito belo Timothée Chalamet para protagonista (seria um acabado ídolo das matinées, se tal qualificativo ainda estivesse operacional): parece que uma superprodução só pode ser rentável se essa faixa de espectadores for conquistada. Pontua a longa duração ao filme (duas horas e trinta e cinco minutos) com cenas de combate, ágeis como agora se pratica (montagem rápida, vê-se pouco e parece que está tudo em incessante movimento) - o tal público jovem não gosta de demoras. Todavia não submete a respiração épica às necessidades do excipiente que facilita a administração do verdadeiro fármaco.
No cômputo geral pode dizer-se que nos deu um filme poderoso, mas não uma maravilha, mau-grado a concessão de um prodígio visual, deveras só desfrutável no grande ecrã de uma sala escura. O realizador, aliás, muito se tem batido para convencer os espectadores de todo o mundo a não ficar à espera do streaming que a navegação à vista dos executivos da Warner está a tornar premente. Pode ser que partam os dentes no processo, o problema é se é um caminho sem retorno.
Na sua batalha em múltiplas frentes, Villeneuve joga, cinematograficamente, pelo seguro, toma o seu tempo, assegura que uma obra em grande escala - financeiramente, um blockbuster de 165 milhões de dólares! - possa ter uma dimensão ‘arte e ensaio’ (como se dizia dantes), mostra-se em primeira mão pela via de um prestigiado festival (estreia mundial em Veneza, no princípio de Setembro), tendo conseguido um bom impacto mediático inicial e uma muito favorável onda crítica.
Tem o problema de nos deixar com fome. Fome de mais filme, evidentemente, pois o que este “Duna” narra é a preparação de um último ato em que tudo será consumado, último ato que a Warner aceitará fazer, ou não. Que uma praga desfigure a empresa que um dia nos deu “Casablanca” (e “As Aventuras de Robin dos Bosques” e “My Fair Lady” e tantos outros…) se não nos deixarem chegar ao momento em que Paul Atreides cavalga os vermes colossais numa batalha final, até para verificar se o rapaz tem caparro para nos convencer. Porque quem quer que tenha lido o romance ou assistido a este filme é isso que quer ver, com a música de Hans Zimmer a ribombar. O clímax, pois claro.