De uma assentada, dois filmes realizados por Kenneth Branagh chegarm às salas com estreias quase coincidentes. Um deles é um disparate a explorar às três pancadas um filão chamado Hercule Poirot, esqueça-se depressa a idiotia de “Morte no Nilo”, que o próprio Branagh interpreta sem conseguir disfarçar o frete. O outro filme inspira-se em memórias de infância do artista e, desde logo a um nível socio-histórico, tem muito maior pertinência — e tanto assim é que, desde a estreia no festival de Telluride, em 2021, tem vindo, pouco a pouco, a somar pontos e a conquistar influência, entrando neste mês de fevereiro, para surpresa de muita gente, com sete nomeações para os Óscares da Academia de Hollywood, incluindo quatro que são do maior relevo: Melhor Filme, Melhor Realização e Melhor Atriz e Ator Secundários. Venceu Melhor Argumento Original este domingo.
É a história de um rapazinho de um bairro popular da capital da Irlanda do Norte que, no pino do verão de 1969, assiste exaltado aos tumultos etnonacionalistas que incendiaram Belfast, e que se alongaram espaçadamente até finais dos anos 90. O conflito, que se tornaria célebre como “The Troubles”, foi acima de tudo político e resultou da escassez económica de uma classe média falida que rapidamente trouxe à tona uma clivagem religiosa entre unionistas e nacionalistas, cada qual com o seu braço armado: se os católicos apelavam a uma revolta contra o Reino Unido a favor da reunificação irlandesa, os protestantes, que tinham o poder e a polícia norte-irlandesa do seu lado, apelavam a uma expulsão dos católicos do território.
Acontece que nesta antecâmara explosiva que teve o seu apogeu no Bloody Sunday de 1972 (e mais tarde, em 1981, com as greves de fome de Bobby Sands), muitos bairros da classe operária de Belfast eram ocupados por católicos e por protestantes em igual medida, eles eram vizinhos de rua que se cumprimentavam e mantinham até então uma existência pacífica possível e este aspeto, esta impossibilidade de definir barricadas, foi o rastilho para o clima de violência que estava prestes a eclodir. A Europa, entretanto, pasmava-se com o facto de existir ainda um conflito desta natureza em plena segunda metade do século XX enquanto o IRA e o Exército Britânico (que o filme nunca aborda diretamente) davam início a uma luta feroz.
Tem o cineasta o direito de ser apolítico e de evitar qualquer debate de fundo, seja ele pró-irlandês ou pró-britânico, sobre o que neste filme está em causa? Kenneth Branagh dirá que sim
Naquele verão de 1969, Buddy (Jude Hill), o alter ego de Branagh em “Belfast”, tem apenas 9 anos. A família é protestante, ele vive numa dessas ruas no norte da cidade, o pai mata-se a trabalhar mas está cada vez mais crivado de dívidas, a mãe, dona de casa responsável, cuida do petiz e do irmão mais velho, a família pensa aliás se não deveria emigrar, quem sabe se a Austrália, ou Vancouver, na costa oeste canadiana, ambas, de qualquer modo, ‘no outro lado do mundo’ e demasiado longe do futuro que foi idealizado para os filhos.
Na mente de Buddy, guerra é coisa de aventuras espaciais de banda desenhada fomentadas com a recente aterragem lunar da Apolo 11, semanas antes da data em que o filme começa. Ou então é coisa de westerns que ele apanha na TV, “O Comboio Apitou Três Vezes” ou “O Homem que Matou Liberty Valence”. Mas, de repente, a guerra explode-lhe ali à sua frente, à porta de casa, paus e pedras a voarem por todo o lado, um carro em chamas, um rasto de vidros estilhaçados. Foi Kenneth Branagh quem o escreveu nas notas de apresentação do filme: “Lembro-me daquela tarde em que tudo se virou do avesso, quase em câmara lenta, sem perceber o som que eu estava ouvindo quando me voltei e depois vi a multidão no fundo da minha rua. A vida nunca mais voltou a ser a mesma. Senti que havia algo dramático e universal naquele acontecimento.”
No filme, o pai de Buddy (Jamie Dornan) é forçado por radicais protestantes a escolher essa trincheira. A mãe (Caitríona Balfe) desespera de angústia e perde aquela alegria de viver que se vê nas primeiras cenas. E as desconfianças, os preconceitos, o ódio puro que vem da própria igreja — e que o filme fixa numa cena em grande plano com especial contundência — o momento da homilia é de longe a coisa mais forte que Branagh filmou aqui — começam a alastrar na vida do pequeno Buddy, que se descobre não ter para onde fugir. Contudo, ele tem uma escapatória e nem todos os meninos da sua idade se podem gabar disso. Restam-lhe os amigos, uma mãe que é anjo da guarda, e sobretudo resta-lhe aquela avó carinhosa que parece ter o condão de o proteger de todos os males — e aqui quem entra em cena é a grande atriz Judi Dench (nomeada para o Óscar de Melhor Atriz Secundária — e é concorrente de peso).
FUGA AO CONTEXTO HISTÓRICO
Kenneth Branagh filma tudo isto num preto e branco apaziguador que convida a nostalgia, é uma “cinememória monocramática lembrada por óculos cor-de-rosa, por mais contraditório que isto pareça”, escreveu justamente a revista “Indiewire”. De facto, “Belfast” tem recebido críticas que o acusam de ser mansinho face à realidade histórica. Branagh defender-se-á certamente desta observação com a candura que a infância (ou o final dela, é isso o que se passa no filme com Buddy) admite. Talvez por isso o terror neste filme seja muito mais uma coisa de rostos, de expressões, do que o de uma exposição documentada da violência tal como ela aconteceu na realidade. Branagh socorre-se de diversos aspetos para suavizar o tom que tem vindo a ser-lhe apontado e que o jornal “The Guardian” definiu com acerto tratar-se de uma “caixa de chocolates.”
Em primeiro lugar, o filme faz jus ao seu título e é antes de qualquer outra coisa uma ode a Belfast, passe o cliché, a cidade é mesmo a personagem principal do filme. Isto é bem patente na abertura (ainda a cores) em que correm os créditos, naquelas vistas aéreas engalanadas dos guindastes Harland and Wolff (expoentes do porto marítimo), o Museu Titanic (o mais famoso paquete do século XX foi construído naqueles estaleiros) e outras atrações costeiras, enquanto Van Morrison, o mais célebre troubadour da cidade, canta ‘Coming Down to Joy’. A banda sonora, de resto, está praticamente toda a cargo de Van Morrison, em nome de um entendimento, de uma harmonia, de uma superação da violência que ele também simboliza. A cena de dança entre os pais de Buddy já perto do desfecho vem no fundo sublinhar isso mesmo, que o amor é mais forte do que qualquer conflito, antes de o filme voltar à cor e aos famosos guindastes do porto.
E contudo, neste desvio acentuado à dramatização, há também em “Belfast” um filme que voluntariamente se perde e que se torna ilustrativo como a tal “caixa de chocolates”. O facto de Branagh ‘açucarar’ o assunto que tem nas mãos, e pese embora o favorável caminho das premiações que a obra parece estar a seguir, não agradará certamente a todos, porque a questão que se coloca, no fundo, é esta: tem afinal o cineasta o direito de ser apolítico e de evitar, por exemplo, qualquer menção direta às organizações paramilitares, qualquer debate de fundo, seja ele pró-irlandês ou pró-britânico, sobre o que neste filme está em causa?
Branagh dirá que sim, que tem esse direito, porque o quotidiano, a vida comum, diz-nos afinal muito do que existe à sua volta. E é nessa vida comum, na história das famílias irlandesas e no risco da sua dissolução, que “Belfast” incide sem a mais ambicionar, no exato momento em que se assinala o centenário da divisão da ilha após a Guerra Civil Irlandesa de 1922. No fundo, “Belfast” é um filme sobre um vulcão adormecido. Na cidade, na vida real, os protestos e os confrontos com a polícia continuam, vão-se regenerando como se regeneram as gerações, é esta a ordem do mundo. E quem se admirará se a Irlanda do Norte voltar a ser manchete pelas razões erradas, sobretudo em consequência de um “Brexit” que foi naquele território recebido com particular hostilidade? Mas esta é uma história que já não cabe no filme de Kenneth Branagh. O que o cineasta sugere é um drama histórico cheio de vontade de fechar um capítulo, ao passo que a História não deixa de lhe acrescentar novas páginas.