Ventura arregimenta tropas para “Exército Popular Português”, chama “cobarde” a Marcelo e demarca-se de hostilidade contra imprensa
Ventura num comício drive-in em Leça da Palmeira
José Fernandes
A candidatura do líder do Chega começou o dia de campanha com um almoço-comício, ainda em ambiente tenso. Mas a cordialidade acabaria por imperar no trato com os jornalistas. O mesmo não se pode dizer quanto aos seus adversários: com Marcelo a assumir que exigirá um acordo escrito num eventual Governo social-democrata com o apoio do Chega, Ventura picou Rio mas este não lhe deu troco. Ainda se embrulhou com a questão dos “ciganos que não eram bem ciganos” e, no final, num inédito comício drive-in, voltou a evocar Sá Carneiro
Da noite para o dia, a candidatura presidencial de André Ventura demarcou-se do ambiente hostil do jantar-comício nos arredores de Braga. Não era ainda “a noite que o socialismo nos trouxe”. Disso o líder do Chega falaria mais tarde. Era mesmo para descolar o partido das vaias, insultos e ameaças que na véspera cerca de 170 militantes dirigiram aos jornalistas e que foram consentidas pela estrutura e, num momento, acicatadas pelo mandatário nacional e diretor de campanha.
“A candidatura de André Ventura não se revê no que aconteceu ontem à noite. Lamentamos o que sucedeu. Não nos revemos nesse comportamento. Quero deixar isso bem claro”, sublinhou esta segunda-feira Rui Paulo Sousa no final de um almoço-comício no restaurante Coral, em Viana do Castelo. O mesmo que na noite anterior, após a entrada dos jornalistas, disse: “Os nossos inimigos, os nossos adversários estão lá fora. Não estão todos lá fora, infelizmente. Alguns estão cá dentro”.
Ventura não se demarcou então das palavras do seu diretor de campanha, que é também membro da direção nacional do partido. Fê-lo esta segunda-feira a dois tempos, primeiro desautorizando-o e depois recuando. É “evidente” que condena o que se passou, garantiu. “Estou a demarcar-me agora”, disse ainda, à saída do restaurante. “Todos os atos de ameaça, insultos ou ofensas são condenáveis”, tal como o são os dirigidos a si, que descreveu como “ofensas lamentáveis, baixas e vis”. “O critério que aplico a mim aplico a vocês, que estão a fazer o vosso trabalho”, acrescentou. Pouco depois, numa visita à fábrica Meia Madeira, em Lordelo, emendou para: “Eu não ouvi o meu mandatário a dizer que os jornalistas são inimigos”, apesar de estar presente e de ter falado logo a seguir ao diretor de campanha.
O jantar, que não cumpria as regras de distanciamento, não foi autorizado pela Administração Regional de Saúde (ARS) mas Ventura disse que “não sabia”. “Tenho uma equipa distrital e nacional a tratar disso. Estou focado na campanha e tenho procurado que ela cumpra as regras difíceis em que estamos neste momento. O que não podemos ter é o que temos até agora. Informamos a Direção-Geral da Saúde (DGS) de todos os eventos, enviamos emails e não vem resposta nenhuma. Isso é que não pode continuar a acontecer. Para que é que serve a DGS então?”, questionou-se.
“Tanto quanto eu soube hoje, o que a ARS disse foi que como os eventos estão proibidos, esse está proibido. É o mesmo que eu dizer-lhe a si: o jornalismo está proibido, você não pode estar aqui. Nada vale nada, vale zero”, insistiu, reconhecendo, ainda assim, que “há aspetos a melhorar”. E deixou uma garantia: “A partir de hoje, se não recebermos resposta da DGS, não haverá mais nenhum evento de restauração”. O evento desta segunda-feira realizou-se, com cerca de 50 pessoas, e a questão com a comunicação social pareceu sanada. Os problemas de organização é que não: o discurso anunciado para depois do almoço sofreu um atraso de duas horas e meia, pontuadas por informações contraditórias: primeiro, o partido não ia pronunciar-se sobre o ambiente hostil da véspera, depois Ventura não responderia a perguntas por estar já muito atrasado para o evento seguinte e, por fim, o líder do partido acabou por responder, cordatamente, à saída do restaurante da cidade minhota.
Marcelo “frente a frente” vs Marcelo “nas costas”
Lá dentro, acusou o Presidente recandidato, Marcelo Rebelo de Sousa, de cobardia por este, num debate radiofónico a seis, ter assumido que exigirá um acordo escrito na eventualidade de se formar um Governo com o apoio de incidência parlamentar com o Chega. Referindo-se a Marcelo como “um suposto Presidente de direita”, Ventura lembrou que o mesmo chefe de Estado “não exigiu um acordo escrito ao PS, CDU e Bloco de Esquerda” para a formação da ‘geringonça’. “Marcelo confia mais na extrema-esquerda do que nos partidos de direita em Portugal. Um Presidente cobarde! Quando não estou presente, ousa dizer coisas como esta, mas quando foi à televisão, no frente a frente, disse que o Chega era um partido democrático, que tinha a mesma legitimidade que todos os outros. Hoje, nas costas, diz que vai exigir acordo escrito porque não confia nem em Rui Rio nem em André Ventura”, atirou.
Face a isto, lançou dali “um apelo” ao líder do PSD para que “saia do confinamento em que se colocou para denunciar esta vergonha que foi dita por Marcelo Rebelo de Sousa”. “Não sei onde está Rui Rio hoje mas sei que tem de vir a jogo nestas eleições”, exortou, “ainda esta tarde”. “Se for preciso, ligo-lhe aqui à frente de toda a gente”, disse. Não ligou. E Rio saiu do suposto confinamento, sim, mas para desafiar o Governo a “impor um confinamento a sério”.
Ventura, que não participou no debate por ter ações de campanha marcadas, repudiou ainda que as rádios não tivessem autorizado a sua participação por videoconferência. E lembrou que no debate televisivo com os sete candidatos o Presidente pôde participar remotamente, concluindo que “para Marcelo tudo, para André Ventura nada”. O chefe de Estado participou virtualmente nesse debate por suspeita de infeção pelo novo coronavírus. Antes, já tinha havido uma outra acusação de cobardia, mas esta dirigida ao líder do Chega e feita pela candidata do Bloco de Esquerda, precisamente por Ventura não ter marcado presença no debate radiofónico. “Ainda bem para ela que eu não fui. Porque ia ser mais um dia de coça”, ripostou, antecipando para Marisa Matias uma votação de “3% ou 4%”.
“Se esta gente tivesse alguém a morrer em casa, não estava aqui”
O almoço-comício motivou um pequeno protesto de proprietários e funcionários de restaurantes. “Se esta gente tivesse alguém a morrer em casa, não estava aqui. Tenham vergonha, tenham respeito. Quanta gente nós vemos a cair ao chão, a dizer ‘assim não aguentamos’? E ninguém está a fazer nada por eles...”, queixou-se Deolinda Ferreira, proprietária de um restaurante vianense. “Não tenho nada contra o colega que está a trabalhar, que ganhe o pão dele, mas ou trabalhamos todos ou não trabalha ninguém. Eu não me importo de estar fechada mas, para eu estar fechada, têm todos de estar fechados”, insurgiu-se.
“Eu tenho de trabalhar, tenho impostos para pagar, tenho funcionários para sustentar, eles têm filhos em casa”, acrescentou, apelando a “que entre agora uma delegação de saúde, que entre agora uma ASAE”. José Vieira, cozinheiro num outro restaurante, secundou-a: “Por causa de uma campanha eleitoral, neste momento, está um estabelecimento aberto e os outros estão todos encerrados a cumprir as regras”. O protesto foi de curta duração e não houve contacto com os comensais, que já se encontravam no interior do Coral.
“O segurança do senhor Ventura agarrou-me por um braço e meteu-me para dentro”
Mas se Ventura não foi apanhado de surpresa por aquela dezena de manifestantes, mostrou-se “surpreendido com reportagens de que afinal aqueles ciganos não eram bem ciganos”, aludindo aos dois ‘ciganos’ que no sábado surgiram na sede de campanha de Bragança a apoiá-lo. “É extraordinário. Ninguém que nos apoie é bem aquilo que parece. Nós temos sido os maiores críticos da comunidade cigana e, quando vêm elementos dessa comunidade dizer que estão connosco porque trabalham, pagam impostos, cumprem as leis, vêm logo dizer que ele também não cumpre a lei. Só nos dão mais razão. É sinal que de facto são muito poucos os ciganos que cumprem a lei”, reforçou.
O candidato presidencial referia-se, em concreto, a Natanael André, que gravou um vídeo esclarecendo não ser cigano nem sobrinho de Fátima Gomes, com quem estivera na sede. “Estive ontem na sede do partido do André Ventura com a tia da minha mulher, Fátima. [Quero] deixar bastante claro que não sou cigano. Em nenhum momento disse que sou cigano. Nascido em Portugal, criado em Madrid. A minha mulher é cigana, a família dela também, a tia dela também é cigana. Convidaram-me a ir lá com ela quando já estava na cama”, começa por dizer.
Natanael não tencionava entrar na sede, pretendia apenas ficar à porta, relata ainda. “O segurança do senhor Ventura agarrou-me por um braço e meteu-me para dentro. Eu entrei porque me agarraram”, explica, apresentando um pedido de desculpas “a todas as pessoas que se sintam ofendidas”. No vídeo, cuja versão original foi entretanto encurtada, assegurava que não recebeu dinheiro por aquela encenação. “Oxalá me tivessem pago. Se eu soubesse que ia ter mil pessoas a ameaçarem-me no Facebook, tinha pedido cinco mil euros”, diz.
Fátima também recorreu às redes sociais para publicar um “comunicado”, falando de “um mal-entendido” e dizendo que “não queria ofender ninguém”. “Há gente honrada e trabalhadora tanto na nossa etnia como nas outras! Fui convidada a fazer essa entrevista, mas nunca com a intenção de ofender ninguém, devemos respeitar-nos uns aos outros”, acrescentou.
Em Bragança, Ventura apresentara-os desta forma: “Temos apoiantes, nomeadamente de etnia cigana, como os que estão aqui ao meu lado e que eu gostava de apresentar como exemplos de que são apoiantes do partido, estão perto das estruturas do partido aqui e de que percebem a mensagem de que a questão não é pertencer ou não a uma determinada etnia”. Trata-se “essencialmente de contribuir, fazer um esforço para haver uma integração social, contribuir para a sociedade, como acontece aqui, ter de cumprir todas as regras”, acrescentou.
Ventura abandonou a sede de Bragança depois de passar a palavra a Fátima e a Natanael, esclarecendo que “não os conhecia antes”, acusando algum desconforto e aparentando não ter sido ideia sua levá-los até lá. Questionado esta segunda-feira sobre um eventual atrito com a estrutura distrital, rejeitou essa ideia e justificou-se: “Vocês todos dizem que não há ciganos no Chega e nós quisemos mostrar-vos que há”. E saiu da sede, deixando-os a falar com os jornalistas para “não dizerem que os estava a condicionar”, acrescentou.
No comício de domingo, o candidato voltou a dizer que havia elementos da comunidade cigana no jantar, sem, no entanto, os apresentar. Na segunda-feira, depois de voltar ao assunto, confirmou que “estava lá um membro de etnia cigana”.
“Um homem crucificado todos os dias”: general sem medo ou “herdeiro de Sá Carneiro”?
No habitual corrupio de temas e paragens, Ventura ainda visitou, neste início de semana, o CEME – Centro Empresarial de Paços de Ferreira e encerrou o dia de campanha num comício drive-in junto à Praia do Aterro, em Leça da Palmeira. “A DGS vai ficar orgulhosa de nós. Estamos a portar-nos muito bem. Não vamos estragar isto. Entrem nas vossas viaturas. A pandemia é verdadeira”, dizia a speaker aos ocupantes dos cerca de 150 carros defronte. “Vamos apitar e acender essas luzes! Vamos acabar com essas baterias! Com os quatro piscas fica fenomenal!”, ia repetindo, enquanto “o nosso Presidente” não chegava.
Já com Ventura em cima do palco montado num camião, o presidente da distrital do Porto referiu-se-lhe como “um homem constantemente ostracizado desde que chegou à Assembleia da República”, “um homem crucificado todos os dias por uma imprensa impiedosa”, “um homem que sofre bullying constantemente”. “Meus caros, habituem-se, porque André Ventura é o nosso general Humberto Delgado, um homem sem medo, é feito da mesma massa”, acrescentou José Lourenço. O dirigente disse ainda que os militantes do Chega são “vítimas de ataques completamente pidescos, perseguições persecutórias constantes e devassa da vida privada”. E fulanizou os ataques, dirigindo-se à candidata Ana Gomes, que “teve a vergonha de apresentar Paulo Pedroso”. “Podem dizer o que quiserem. Eu sou pai, tenho dois filhos, não os entregava ao Paulo Pedroso. Só comigo por perto e muito perto”, reforçou.
O líder do Chega também não poupou o diretor de campanha da sua adversária. “Doutora Ana Gomes, eu até aceito que haja algumas vergonhas mas não tenho aqui nem à minha volta nenhuma vergonha chamada Paulo Pedroso”, gritou, apesar de o dirigente socialista ter sido ilibado e indemnizado pelo Estado no processo Casa Pia. Quanto à comparação com Humberto Delgado, Ventura disse não saber se é o general. “Mas há uma coisa que sei. É que nesta tão digna cidade do Porto eu quero ser o herdeiro daquele enorme projeto de transformação que teve o nome de Francisco Sá Carneiro”, declarou. “Se ele nos estivesse a ouvir nesta noite fria de janeiro, tenho a certeza de que no seu coração estaria a enorme força transformadora que somos nós. Tenho a certeza de que onde quer que esteja, ele sabe que o que desejo é entregar, como ele, toda a minha vida ao vosso serviço e ao serviço desta enorme nação que é Portugal”, garantiu ainda.
“O dia 24 de janeiro será o nosso 25 de novembro”
Fitando uma bandeira que cobria o capot de um dos carros na primeira fila, Ventura afirmou ter “o dever de ser a voz que quer que aquela bandeira da Venezuela nunca seja içada aqui em terras de Portugal”. Enquanto “a noite que o socialismo nos trouxe nos ensombra cada vez mais”, o exército do Chega aumenta “dia após dia, engrossando de comunistas a católicos, de todas as raças, etnias e religiões”, assegurou, antes de anunciar serem “o Exército Popular Português”. Desta vez, prosseguiu, “não chegou só um inverno de frio, chegou um inverno das nossas vidas, um inverno de destruição de negócios, de famílias e de empresas, um inverno de uma sombra enorme que paira sobre Portugal e sobre a Europa”. E rematou, dizendo: “A noite do dia 24 tem de ser nossa, tem de ser deste exército popular que se levantou para salvar Portugal. O dia 24 de janeiro será o nosso 25 de novembro”.
O presidente da distrital assumiu depois o microfone para pedir a todos os homens que abandonassem o palco, à exceção do líder, e chamou, uma por uma, 26 mulheres. “Só estão aqui 26 senhoras porque o André Ventura é mesmo muito machista”, ironizou o dirigente portuense. E juntos cantaram o hino nacional. A campanha vai andar esta terça-feira por Aveiro e Coimbra.